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  • Domingos Faria Avatar

    Lógica da Santíssima Trindade

    O problema central sobre o mistério da trindade consiste em explicar a possibilidade que haja um só Deus, mas simultaneamente três pessoas em Deus, sem cair em contradição. As proposições centrais desta doutrina da trindade são, entre outras, as seguintes:

    1. Há um só Deus.
    2. O Pai é Deus.
    3. O Filho é Deus.
    4. O Pai não é o Filho.

    Além destas proposições, podem-se acrescentar outras semelhantes sobre o Espírito Santo. Mas para o propósito de analisar a consistência basta as proposições de 1 a 4. Será esse conjunto de proposições consistente? Com recurso à lógica de predicados de primeira ordem (com identidade) pode-se derivar uma contradição e, se isso for correto, prova-se que a doutrina da trindade é falsa (bem como o cristianismo). Assim, traduzindo as proposições de 1 a 4 para lógica de predicados temos o seguinte resultado:

    1. ∃x(Dx∧∀y(Dy→(y=x)))
    2. Dp
    3. Df
    4. (p≠f)

    Com base em simples regras de inferência, podemos derivar que:

    1. (Da∧∀y(Dy→(y=a))) de 1, E∃
    2. ∀y(Dy→(y=a)) de 5, E∧
    3. (Dp→(p=a)) de 6, E∀
    4. (p=a) de 2 e 7, MP
    5. (Df→(f=a)) de 6, E∀
    6. (f=a) de 3 e 9, MP
    7. (a=f) de 10, simetria
    8. (p=f) de 8 e 11, transitividade
    9. ((p=f)∧(p≠f)) de 4 e 12, I∧

    Ou seja, a partir do conjunto de proposições de 1 a 4 derivamos uma contradição em 13 de que o Pai é o Filho e o Pai não é o Filho. Uma vez que se derivou uma contradição isto significa que a doutrina da trindade é logicamente inconsistente e, dessa forma, tal doutrina é falsa e o cristianismo não pode ser verdadeiro. Será possível resistir a esta conclusão?

    Existem vários modelos (ver aqui) que visam afastar essa conclusão, apresentando uma interpretação em que as proposições de 1 a 4 não geram uma contradição lógica. Um desses modelos apela à noção, desenvolvida pelos filósofos católicos Peter Geach e Peter van Inwagen, de “identidade relativa”; ou seja, a identidade não é absoluta, mas é relativizada a tipos de coisas. Dessa forma, as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. Utilizando um exemplo fornecido por Michael Rea, uma estátua e um pedaço de bronze podem ser o mesmo objeto material, mas ainda assim são entidade diferentes. Com base neste modelo pode-se sustentar que o Pai é o mesmo Deus que o Filho e o Pai não é a mesma pessoa que o Filho. E isso é logicamente consistente. Assim, as proposições de 1 a 4 devem ser formalizadas da seguinte forma, em que “x=Sy” abrevia que “x é a mesma pessoa que y” e em que “x=Dy” abrevia que “x é o mesmo Deus que y”:

    1. ∃x(Dx∧∀y(Dy→(y=Dx)))
    2. Dp
    3. Df
    4. (p≠Sf)

    Daqui pode-se derivar que:

    1. (Da∧∀y(Dy→(y=Da))) de 14, E∃
    2. ∀y(Dy→(y=Da)) de 18, E∧
    3. (Dp→(p=Da)) de 19, E∀
    4. (p=Da) de 15 e 20, MP
    5. (Df→(f=Da)) de 19, E∀
    6. (f=Da) de 16 e 22, MP
    7. (a=Df) de 23, simetria
    8. (p=Df) de 21 e 24, transitividade
    9. ((p=Df)∧(p≠Sf)) de 17 e 25, I∧

    Como se pode constatar, do conjunto de proposições de 14 a 17 derivamos a proposição 26, a qual afirma que o Pai é o mesmo Deus que o Filho e o Pai não é a mesma pessoa que o Filho. Ora, isso não é uma contradição. Assim, embora isto não prove a verdade da doutrina da trindade, pelo menos mostra que esta doutrina é logicamente consistente caso se interprete as relações de identidade como relativas e não absolutas.

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    Inconsistência entre perfeição moral e liberdade divina

    Os teístas acreditam que Deus é absolutamente e perfeitamente bom. Mas em simultâneo acreditam que Deus é livre. Contudo, pode-se argumentar que há uma tensão entre perfeição moral e liberdade divina ao sustentar-se que se Deus é moralmente perfeito, então não é livre; e se ele é livre, então não é moralmente perfeito. Isto porque se Deus é moralmente perfeito, então deve, em todas as circunstâncias, fazer a melhor coisa que é possível para ele fazer. Assim, assumindo que há um melhor mundo possível, Deus deve criar esse mundo e não outro. Mas, assim, Deus não é livre com respeito à sua ação de criar.

    Porém, suponha-se que, não há o melhor mundo possível, mas uma série infinita de mundos cada vez melhores. Nesse caso, a situação é incompatível com a existência de um ser moralmente perfeito. Isto porque, por um lado, se Deus é um ser moralmente perfeito essencialmente, então não é possível que exista um ser moralmente melhor do que Deus. Contudo, por outro lado, se Deus cria um mundo quando há um mundo melhor que ele poderia criar (dado que a série de mundos é infinita), então é possível haver um ser moralmente melhor do que Deus. Desta forma, temos uma inconsistência. William Rowe desenvolve este argumento no livro Can God Be Free? e pode ser apresentado desta forma:

    1. Ou há ou não há o melhor de todos os mundos possíveis.
    2. Se há o melhor de todos os mundos possíveis, então Deus não é livre (uma vez que teria de criar esse mundo).
    3. Se não há o melhor de todos os mundos possíveis, então Deus não é perfeitamente bom (uma vez que seja qual for o mundo que ele crie, é possível criar um mundo melhor).
    4. Logo, Deus não é simultaneamente livre e perfeitamente bom.

    Será este um bom argumento? O argumento é logicamente válido, mas será sólido?

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    Inconsistência entre perfeição moral e omnipotência

    Críticos da conceção teísta de Deus por vezes argumentam que a perfeição moral é incompatível com a omnipotência. Isto porque se Deus é omnipotente, então ele deve ser capaz de fazer mal, ao passo que se Deus é moralmente perfeito necessariamente, ele não pode fazer mal. Este raciocínio foi bem desenvolvido por Wes Morriston no artigo “Omnipotence and necessary moral perfection: are they compatible?” (de 2001). O argumento de Morriston pode ser formulado desta forma: Considere-se alguns estados de coisas particularmente maus e completamente injustificados, E, tal como todo o ser senciente sofre dores agonizantes durante toda a sua vida. Assim:

    1. Se Deus é moralmente perfeito necessariamente, então não há mundo possível em que Ele atualiza E.
    2. Se Deus é omnipotente, Ele tem o poder de atualizar E.
    3. Se Deus tem o poder de atualizar E, então há um mundo possível em que Ele atualiza E.
    4. Logo, não é verdade que Deus é moralmente perfeito necessariamente e omnipotente.

    Será este um bom argumento? O argumento é logicamente válido, mas será sólido?

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    Dilema Discursivo

    A versão conservadora de deflacionismo sobre a epistemologia de grupos pode ser formulada desta forma:

    (DC) um grupo g tem a propriedade P só se a maioria dos membros de g têm a propriedade P.

    Contra (DC), podem-se apresentar vários contra-exemplos. Um desses contra-exemplos, formulado por Philip Pettit e Christian List, é conhecido como “Dilema Discursivo.” Assim, suponha-se que um painel de três especialistas sobre o clima devem entregar um relatório sobre se o aquecimento global irá aumentar nas próximas décadas (abreviando q). Suponha-se que o membro 1 acredita q, mas os membros 2 e 3 não acreditam q. Ou seja,

    Crençasq
    Membro 1acredita
    Membro 2¬ acredita
    Membro 3¬ acredita
    Grupo g¬ acredita

    Também ocorre que os membros 1 e 2 acreditam, mas o membro 3 não, que as emissões de dióxido de carbono dos combustíveis fósseis estão a aumentar (abreviando p). Isto é,

    Crençaspq
    Membro 1acreditaacredita
    Membro 2acredita¬ acredita
    Membro 3¬ acredita¬ acredita
    Grupo gacredita¬ acredita

    Além disso, acontece que os membros 1 e 3 acreditam, mas o membro 2, não acredita que se p então q. (Ou seja, se as emissões de dióxido de carbono dos combustíveis fósseis estão a aumentar, então o aquecimento global irá aumentar nas próximas décadas). Desta forma, obtemos a seguinte tabela:

    Crençaspp→qq
    Membro 1acreditaacreditaacredita
    Membro 2acredita¬ acredita¬ acredita
    Membro 3¬ acreditaacredita¬ acredita
    Grupo gacreditaacredita¬ acredita

    As crenças dos membros, individualmente consideradas, são consistentes com a regra de modus ponens. Assim, os membros são nesse sentido racionais. Mas, pela mesma lógica, para o grupo ser racional, a crença de grupo exige também conformidade ao modus ponens. Por isso, se o grupo acredita p e acredita p→q, deveria acreditar q. Contudo, isso não acontece. Assim, as crenças do grupo g são inconsistentes e, por conseguinte, (DC) é falso. Para resolver a inconsistência deve-se adotar ou um procedimento baseado nas premissas (violando DC na conclusão), ou um procedimento baseado na conclusão (violando DC nas premissas). Mas dessa forma já não se terá um deflacionismo conservador sobre a epistemologia de grupos.

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    Cinco Livros de Filosofia (de 2020)

    A filosofia atual tem sido muito fecunda no desenvolvimento de novas teorias, argumentos, e na compreensão dos conceitos e problemas filosóficos. Nunca se publicou tanta filosofia, e com tão boa qualidade, como nos dias de hoje. A título de exemplo, quero salientar apenas cinco livros influentes publicados em 2020 que ilustram esse progresso atual da filosofia.

    The Epistemology of Groups, de Jennifer Lackey (Oxford University Press)

    Até recentemente, talvez devido à influência de Descartes, o estudo da epistemologia tinha um foco fortemente individualista. Contudo, alguns filósofos atualmente têm dado atenção à dimensão mais social do conhecimento. Uma das mais importantes filósofas que se tem dedicado a isso é a Jennifer Lackey e lançou recentemente um novo livro sobre a epistemologia de grupos. Como motivação Lackey começa por apresentar o conhecido escândalo da Volkswagen em que se manipulou os dispositivos das emissões poluentes. Neste caso quem é o responsável? A empresa ou os membros individuais? A resposta a essas questões está dependente da forma como se entende a responsabilidade coletiva e outros fenómenos do grupo. Por um lado, as teorias deflacionistas ou sumativistas sustentam que o fenómeno de grupo (tal como a crença ou responsabilidade de grupo) é inteiramente entendida em termos dos membros individuais e dos seus estados. Por outro lado, as teorias inflacionistas ou não-sumativista sustentam que o fenómeno de grupo é distinto dos membros individuais e dos seus estados. A Lackey neste livro desenvolve uma teoria intermédia, tendo como objetivo procurar algum progresso na compreensão das noções cruciais da epistemologia coletiva, como a crença de grupo, a justificação de grupo, o conhecimento de grupo, a mentira de grupo, o testemunho de grupo, etc, de forma a esclarecer se são apenas os grupos, ou só os seus membros, ou ambos que devem ser responsabilizados pelas ações coletivas. Sobre o fenómeno de testemunho de grupo escrevi recentemente um artigo que está disponível aqui.

    The Transmission of Knowledge, de John Greco (Cambridge University Press)

    Neste livro John Greco desenvolve uma nova teoria da justificação testemunhal. Tradicionalmente, tanto na tradição de Hume como na de Reid, considera-se que todos os casos de justificação testemunhal são epistemicamente homogéneos e prestam-se ao mesmo tratamento teórico. Contudo, Greco neste livro mostra que essa tradição está equivocada e apresenta uma teoria pluralista sobre o testemunho. De acordo com Greco a partilha de informação de qualidade dentro de uma comunidade epistémica envolve dois tipos de atividades: atividade de aquisição e atividades de distribuição que se traduz em dois tipos diferentes de justificação testemunhal. Assim, a justificação testemunhal por vezes requer inferência indutiva ou razões positivas da parte do ouvinte quando o testemunho funciona como fonte de aquisição de justificação, funcionando de forma a admitir informação numa comunidade relevante pela primeira vez. Contudo, noutras circunstâncias, o testemunho pode funcionar de forma a distribuir justificação através da comunidade relevante, fazendo-o sem exigência de inferência indutivas ou razões positivas da parte do ouvinte. Greco aplica esta teoria do testemunho à educação, ciência, e religião. Este filósofo discute este livro aqui.

    The Tools of Metaphysics and the Metaphysics of Science, de Ted Sider (Oxford University Press)

    Ted Sider procura neste livro contribuir para a metafísica da ciência ao estabelecer uma série de ferramentas para essa tarefa. Em particular, ele procura mostrar a utilidade de certos conceitos “pós-modais,” como o de fundamentalidade. Para ilustrar a sua tese de que as ferramentas “pós-modais” podem ajudar a entender as questões centrais da metafísica da ciência, Sider analisa vários argumentos. Um desses argumentos é sobre a rejeição de indivíduos. Por exemplo, o argumento tradicional é o seguinte: os indivíduos são totalmente distintos das suas propriedades; se isso é o caso, então os indivíduos não têm propriedades; mas, se isso é o caso, então indivíduos são um tipo de coisa misteriosa; logo, os indivíduos são um tipo de coisa misteriosa. Contudo, Sider procura mostrar que, com base nas ferramentas “pós-modais,” argumentos deste tipo não são sólidos. Uma recensão recente sobre este livro está disponível aqui.

    Suppose and Tell: The Semantics and Heuristics of Conditionals, de Tim Williamson (Oxford University Press)

    O pensamento hipotético é central à vida humana. Um sinal da sua importância é a frequência com que usamos a palavra “se” nas conversas quotidianas, bem como na ciência e na filosofia. Mas como entender o pensamento hipotético e as condicionais? Tim Williamson neste livro apresenta uma nova abordagem para se entender as condicionais. Nomeadamente ele desenvolve um tratamento heurístico das condicionais, segundo a qual se supõe o antecedente e, com base nisso, se chega a um julgamento sobre o consequente. Ou seja, na condicional “se A então C,” explora-se mentalmente as consequências relevantes da suposição que A, frequentemente ao imaginá-las. Assim, começa-se por supor A e desenvolve-se as suas consequências pelos meios apropriados disponíveis (como a imaginação restrita, conhecimento de fundo, dedução, etc). Se esse desenvolvimento leva a aceitar C condicionalmente, na suposição A, então aceita-se a condicional “se A então C” incondicionalmente. Pelo contrário se esse desenvolvimento leva a rejeitar C condicionalmente, na suposição A, então rejeita-se “se A então C” incondicionalmente. Uma vez que neste processo está envolvida um grau de incerteza, é apropriado teorizar sobre ela em termos de probabilidades condicionais. A filósofa Dorothy Edgington fez recentemente uma atualização da sua entrada na Stanford sobre as condicionais com uma breve recensão deste livro (está disponível aqui).

    Vagueness: A Global Approach, de Kit Fine (Oxford University Press)

    Kit Fine é um dos filósofos mais importantes a trabalhar o problema da vagueza. Ele é tradicionalmente conhecido por propor e defender a teoria supervalorativista (clique aqui para ver uma introdução). No entanto, neste novo livro, Fine rejeita o supervalorativismo e propõe uma nova teoria. Agora a ideia central de Kit Fine é que a vagueza é um fenómeno global em vez de ser local. Assim, uma série de sorites(como a de começar com um grão de areia e acabar com um enorme monte de areia) exibe vagueza embora nenhum dos seus membros a exiba por si mesmo. Por outras palavras, enquanto não se pode negar consistentemente uma instância singular da lei do terceiro excluído, dado que ¬(p∨¬p) é inconsistente, pode-se negar duas ou mais conjunções da lei do terceiro excluído, dado que ¬((p∨¬p)∧(q∨¬q)) é consistente na lógica de Fine (em que a transitividade falha). Tim Williamson fez recentemente uma excelente recensão a este livro e está disponível aqui.