Lógica da Santíssima Trindade

O problema central sobre o mistério da trindade consiste em explicar a possibilidade que haja um só Deus, mas simultaneamente três pessoas em Deus, sem cair em contradição. As proposições centrais desta doutrina da trindade são, entre outras, as seguintes:

  1. Há um só Deus.
  2. O Pai é Deus.
  3. O Filho é Deus.
  4. O Pai não é o Filho.

Além destas proposições, podem-se acrescentar outras semelhantes sobre o Espírito Santo. Mas para o propósito de analisar a consistência basta as proposições de 1 a 4. Será esse conjunto de proposições consistente? Com recurso à lógica de predicados de primeira ordem (com identidade) pode-se derivar uma contradição e, se isso for correto, prova-se que a doutrina da trindade é falsa (bem como o cristianismo). Assim, traduzindo as proposições de 1 a 4 para lógica de predicados temos o seguinte resultado:

  1. ∃x(Dx∧∀y(Dy→(y=x)))
  2. Dp
  3. Df
  4. (p≠f)

Com base em simples regras de inferência, podemos derivar que:

  1. (Da∧∀y(Dy→(y=a))) de 1, E∃
  2. ∀y(Dy→(y=a)) de 5, E∧
  3. (Dp→(p=a)) de 6, E∀
  4. (p=a) de 2 e 7, MP
  5. (Df→(f=a)) de 6, E∀
  6. (f=a) de 3 e 9, MP
  7. (a=f) de 10, simetria
  8. (p=f) de 8 e 11, transitividade
  9. ((p=f)∧(p≠f)) de 4 e 12, I∧

Ou seja, a partir do conjunto de proposições de 1 a 4 derivamos uma contradição em 13 de que o Pai é o Filho e o Pai não é o Filho. Uma vez que se derivou uma contradição isto significa que a doutrina da trindade é logicamente inconsistente e, dessa forma, tal doutrina é falsa e o cristianismo não pode ser verdadeiro. Será possível resistir a esta conclusão?

Existem vários modelos (ver aqui) que visam afastar essa conclusão, apresentando uma interpretação em que as proposições de 1 a 4 não geram uma contradição lógica. Um desses modelos apela à noção, desenvolvida pelos filósofos católicos Peter Geach e Peter van Inwagen, de “identidade relativa”; ou seja, a identidade não é absoluta, mas é relativizada a tipos de coisas. Dessa forma, as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. Utilizando um exemplo fornecido por Michael Rea, uma estátua e um pedaço de bronze podem ser o mesmo objeto material, mas ainda assim são entidade diferentes. Com base neste modelo pode-se sustentar que o Pai é o mesmo Deus que o Filho e o Pai não é a mesma pessoa que o Filho. E isso é logicamente consistente. Assim, as proposições de 1 a 4 devem ser formalizadas da seguinte forma, em que “x=Sy” abrevia que “x é a mesma pessoa que y” e em que “x=Dy” abrevia que “x é o mesmo Deus que y”:

  1. ∃x(Dx∧∀y(Dy→(y=Dx)))
  2. Dp
  3. Df
  4. (p≠Sf)

Daqui pode-se derivar que:

  1. (Da∧∀y(Dy→(y=Da))) de 14, E∃
  2. ∀y(Dy→(y=Da)) de 18, E∧
  3. (Dp→(p=Da)) de 19, E∀
  4. (p=Da) de 15 e 20, MP
  5. (Df→(f=Da)) de 19, E∀
  6. (f=Da) de 16 e 22, MP
  7. (a=Df) de 23, simetria
  8. (p=Df) de 21 e 24, transitividade
  9. ((p=Df)∧(p≠Sf)) de 17 e 25, I∧

Como se pode constatar, do conjunto de proposições de 14 a 17 derivamos a proposição 26, a qual afirma que o Pai é o mesmo Deus que o Filho e o Pai não é a mesma pessoa que o Filho. Ora, isso não é uma contradição. Assim, embora isto não prove a verdade da doutrina da trindade, pelo menos mostra que esta doutrina é logicamente consistente caso se interprete as relações de identidade como relativas e não absolutas.

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