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    Um puzzle sobre a omnisciência divina

    Para além da omnipotência, no teísmo defende-se a omnisciência divina (cf. Rom 11:33; Job 12:13; Heb 4:13). Mas em que consiste esse atributo? De forma simples, a omnisciência consiste em ter todo o conhecimento proposicional. Mas como apenas proposições verdadeiras podem ser conhecimento, assim todo o conhecimento é apenas conhecimento de todas as proposições verdadeiras. Deste modo, temos a seguinte definição de omnisciência:

    (D1) Um ser S é omnisciente =df para qualquer proposição p, se p é verdadeira então S sabe que p.

    Mas será que um ser omnisciente pode saber como é não conhecer que p? Por um lado, se a resposta é “SIM”, então há uma proposição p que um ser omnisciente não conhece e, assim, tal ser não é omnisciente. Se a resposta é “NÃO”, então há alguma coisa que esse ser não pode saber (i.e. “não pode saber como é não conhecer que p”) e, assim, tal ser não é omnisciente. Assim, a omnisciência é impossível de instanciar e, por isso, Deus não pode ser omnisciente. O puzzle pode ser resumido desta forma:

    1. Ou Deus pode saber como é não conhecer que p ou Deus não pode saber como é não conhecer que p.
    2. Se Deus pode saber como é não conhecer que p, então Deus não é omnisciente (uma vez que para saber como é não conhecer que p, terá de haver alguma proposição p que Deus não conhece).
    3. Se Deus não pode saber como é não conhecer que p, então Deus não é omnisciente (uma vez que há alguma proposição p que Deus não pode saber).
    4. Logo, de uma forma ou de outra, Deus não é omnisciente.

    Podemos instanciar este raciocínio a casos particulares como, por exemplo, aplicado ao caso de poder saber como é ser finito. Neste caso, o puzzle que temos é o seguinte:

    1. Ou Deus pode saber como é ser finito ou Deus não pode saber como é ser finito.
    2. Se Deus pode saber como é ser finito, então Deus não é omnisciente (uma vez que para saber como é ser finito, Deus terá de ser finito).
    3. Se Deus não pode saber como é ser finito, então Deus não é omnisciente (uma vez que há algo que Deus não pode saber, nomeadamente, como é ser finito).
    4. Logo, de uma forma ou de outra, Deus não é omnisciente.

    Será este um bom argumento? Como possível objeção pode-se alegar que “saber como é…” não é conhecimento proposicional, sendo antes um conhecimento de habilidades ou saber-fazer. Ora, uma vez que a omnisciência foi caraterizada em termos de conhecimento proposicional, não há problema em dizer que um ser omnisciente tem ainda máximo conhecimento proposicional (ainda que não tenha tal conhecimento de habilidades). Contudo, essa objeção pode ser criticada ao argumentar-se que um ser omnisciente presumivelmente deve ter conhecimento perfeito de todos os tipos; pois, restringir a omnisciência ao conhecimento proposicional parece arbitrário. Uma outra crítica relevante a essa objeção procura salientar que o “saber como é…” pode ser expresso em termos de conhecimento proposicional, tal como argumentado por Stanley e Williamson (2001); dessa forma, o puzzle original volta a constituir um desafio. Será então o puzzle da omnisciência um bom desafio para o teísta?

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    Uma reformulação do argumento ontológico de Descartes

    Peter van Inwagen (no livro Metaphysics de 2014) sugere que é possível reformular o argumento ontológico de Descartes para ultrapassar as críticas de Gaunilo e Kant. Nessa reformulação, de forma a afastar essas críticas, em vez do conceito de “existência,” considera-se o conceito de “existência necessária.” Uma coisa tem existência necessária se teria existido em todas as circunstâncias possíveis. Ou seja, uma coisa tem existência necessária se a sua não-existência fosse impossível. Por exemplo, coisas que não têm existência necessária: nós, Júlio César, Taj Mahal, monte Evereste, etc. Tais coisas poderiam não ter existido. Assim, podemos dizer que a existência necessária é uma propriedade, ainda que a mera existência não seja uma propriedade. Com essa ideia, o argumento de Descartes pode ser reformulado e apresentado desta forma:

    1. Um ser sumamente perfeito tem todas as perfeições.
    2. A existência necessária é uma perfeição.
    3. Logo, um ser sumamente perfeito tem existência necessária.
    4. Tudo o que tem existência necessária tem existência.
    5. Logo, um ser sumamente perfeito tem existência, ou seja, existe.

    Esta formulação parece ser mais plausível do que o argumento original de Descartes. Nomeadamente a premissa 2 parece plausível, pois ao passo que os contingentes dependem de outras coisas para existir, tal não acontece com os necessários. Por isso, não há problema em dizer que a existência necessária é uma perfeição, uma propriedade, e um verdadeiro predicado.

    Ainda assim, esta reformulação do argumento continua a ser problemática. Nomeadamente porque a premissa 1 (“Um ser sumamente perfeito tem todas as perfeições”) é ambígua entre duas leituras:

    • Leitura 1A: Tudo o que seja um ser sumamente perfeito tem todas as perfeições.
    • Leitura 1B: Há um ser sumamente perfeito que tem todas as perfeições.

    Por um lado, na leitura 1A a conclusão do argumento, para ser válido, será que “tudo o que seja sumamente perfeito terá existência” e isso é trivial. Pois, o que se afirma na conclusão, é apenas uma condicional, nomeadamente: para todo o x, se x é sumamente perfeito, então x tem existência. Mas daí não se pode concluir que existe um ser sumamente perfeito. Por outro lado, na leitura 1B o argumento comete petição de princípio. Isto porque na premissa 1 já se estaria a afirmar que existe um x tal que x é sumamente perfeito, o que é precisamente o mesmo que a conclusão.

    Para analisar com rigor esta objeção, podemos recorrer à lógica de predicados. Podemos utilizar três predicados – SPT – e duas constantes ne. Assim, ‘n’ representa a propriedade da existência necessária, ‘e’ representa a existência, ‘Sx’ abrevia ‘x é sumamente perfeito,’ ‘Px’ abrevia ‘x é uma perfeição,’ e ‘Txy’ abrevia ‘x tem y.’ Com base nessas abreviaturas, o argumento na leitura 1A tem a seguinte formalização:

    1. ∀x(Sx → ∀y(Py → Txy))
    2. Pn
    3. ∴ ∀x(Sx → Txn)
    4. ∀x(Txn → Txe)
    5. ∴ ∀x(Sx → Txe)

    Este argumento é válido. Contudo, na conclusão não se diz que existe um ser sumamente perfeito, mas apenas uma condicional. Por sua vez, para se afirmar na conclusão que existe um ser sumamente perfeito temos de utilizar a leitura 1B:

    1. ∃x(Sx ∧ ∀y(Py → Txy))
    2. Pn
    3. ∴ ∃x(Sx ∧ Txn)
    4. ∀x(Txn → Txe)
    5. ∴ ∃x(Sx ∧ Txe)

    Neste caso o argumento, além de ser válido, conclui que existe um ser sumamente perfeito. O problema neste caso é que na premissa 1 já se está a afirmar que existe um ser sumamente perfeito. Por isso, o argumento nesta segunda leitura comete petição de princípio. Portanto, de uma forma ou de outra, a reformulação do argumento de Descartes não é plausível, ainda que consiga ultrapassar as críticas de Gaunilo e de Kant.

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    Falácia Modal, Validade, e Fatalismo

    A falácia modal é um tipo de falácia que ocorre na lógica modal; mais concretamente é a falácia de confundir o âmbito do operador da necessidade. Ou seja, é o erro de tratar condicionais modais como se a modalidade se aplicasse apenas ao consequente da condicional quando ela se aplica de forma mais adequada a toda a condicional. Por exemplo, considere-se as seguintes proposições:

    1. Necessariamente, se o Henrique está em Guimarães, então está em Guimarães.
    2. Se o Henrique está em Guimarães, então está necessariamente em Guimarães.

    A proposição 1 é uma verdade lógica trivial, mas a proposição 2 é falsa uma vez que mesmo que o Henrique esteja em Guimarães poderia estar noutro lugar (por exemplo, em Lisboa). Assim, se colocarmos o operador da necessidade apenas no consequente da condicional estamos a cometer uma falácia modal. Este tipo de falácia ocorre em muitos manuais escolares de filosofia, por exemplo, quando apresentam a noção de validade dedutiva. Alguns desses manuais afirmam que num argumento válido “se as premissas são verdadeiras, a conclusão é necessariamente verdadeira.” De forma semelhante também dizem que “no caso dos argumentos dedutivos válidos (…) se as premissas são todas verdadeiras, é logicamente impossível que a conclusão seja falsa.” Ou seja, o que estas definições dizem é que a conclusão de um argumento válido é necessariamente verdadeira (ou, de forma equivalente, que a conclusão de um argumento válido é impossível de ser falsa). Mas isso é completamente errado; pois, nesse caso, de forma absurda, deixaria de haver proposições contingentes nas conclusões dos argumentos válidos. Considere-se o seguinte argumento:

    “O Henrique está em Lisboa ou está em Guimarães. Mas ele não está em Lisboa. Logo está em Guimarães.”

    Mesmo partindo da suposição de que as premissas são verdadeiras, a conclusão não é necessariamente verdadeira nem a conclusão é impossível de ser falsa. Isto porque, mesmo que as premissas sejam verdadeiras, é contingentemente verdadeiro que o Henrique está em Guimarães. Pelo contrário, o que é necessário é que se aquelas premissas forem verdadeiras, a conclusão também será verdadeira. Isto é, a necessidade deve aplicar-se ao âmbito de toda a condicional e não ao consequente. Deste modo, para não se cometer a falácia modal, uma boa definição de validade dedutiva afirma que num argumento válido:

    Necessariamente, se as premissas são verdadeiras, a conclusão também é verdadeira.

    A falácia modal surge também em alguns argumentos filosóficos interessantes, como no caso de algumas versões do argumento sobre o fatalismo teológico. Para se formular esse argumento, a favor da incompatibilidade entre presciência divina e livre-arbítrio humano, seja S qualquer pessoa e ϕ qualquer ação. O argumento para essa incompatibilidade é o seguinte:

    1. Se Deus sabe que S realizará ϕ, então S deve necessariamente fazer ϕ.
    2. Se S deve necessariamente fazer ϕ, então S não realizará ϕ livremente.
    3. Logo, se Deus sabe que S realizará ϕ, então S não realizará ϕ livremente.

    Uma vez que S e ϕ são qualquer pessoa e ação, este argumento pode mostrar que nenhuma ação humana é livre se Deus sabe de antemão tais ações, ou seja, se Deus for omnisciente de proposições sobre o futuro. Mas será esse um bom argumento? Uma boa forma de criticar este argumento é dizer que ele comete a falácia modal, nomeadamente na premissa 1. Por um lado, a forma apropriada de entender a premissa 1, para esta ser verdadeira, é com o operador de necessidade aplicado ao âmbito de toda a condicional e não ao consequente. Nesse caso, a premissa 1 seria claramente verdadeira, dado que necessariamente qualquer coisa que se sabe ser verdade é verdadeira. Contudo, com essa leitura o argumento seria inválido (pois, nesse caso já não teríamos um silogismo hipotético). Por outro lado, se o âmbito do operador da necessidade se aplicar apenas ao consequente, temos um argumento válido. O problema nesse caso é que a premissa 1 será falsa, pois pelo facto de Deus saber que uma proposição é verdadeira, daí não se segue que a proposição seja uma verdade necessária (ou seja, assumindo que Deus existe, há muitas verdades contingentes que Deus sabe; assim, Deus pode saber uma proposição sem ser necessária). Portanto, de uma forma ou de outra, o argumento não é bom; mas poderia parecer como bom precisamente por cometer esta falácia modal.

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    Conceção epistemológica de analiticidade

    O quarto capítulo do livro The Philosophy of Philosophy de Tim Williamson é dedicado à conceção epistemológica de analiticidade. A principal questão que Williamson trata nesta parte é a seguinte: o que está epistemicamente disponível simplesmente com base da competência linguística e conceptual? Por outras palavras, o que podemos epistemicamente assentir simplesmente com base do entendimento e da apreensão? A resposta de Williamson é direta: Nada! Isto porque a ligação entendimento-assentimento falha. Assim, o seu principal objetivo é mostrar que essas ligações falham (mesmo para casos paradigmáticos de analiticidade).

    O que significa dizer que uma frase é analítica no sentido epistemológico? De forma rigorosa, a noção epistemológica de analiticidade definida para frases pode ser apresentada desta forma:

    Uma frase F é analítica se, e só se, necessariamente, quem quer que seja que entenda F assente F.

    Por exemplo, se a frase “Toda a raposa é uma raposa” é analítica neste sentido, então há uma ligação entendimento-assentimento da seguinte forma:

    (UA) Necessariamente, quem quer que seja que entenda a frase “Toda a raposa é uma raposa” assente essa frase.

    Contudo, se um agente A falha a assentir essa frase, então A falha a entendê-la. Ou seja, a falha de assentimento da frase é constitutivo da falha de entendimento de toda essa frase. Mas o que significa entender uma frase? De forma simples, consiste em ser linguisticamente competente; em perceber os constituintes de uma frase e a sua sintaxe, etc. E o que significa assentir a uma frase? Num contexto em que a frase F expressa a proposição p, assentir a F, para alguém que a entende, é algo como acreditar p sob a aparência de F. Por exemplo, assentir a frase “A relva é verde,” para alguém que a entenda, é algo como acreditar que a relva é verde sobre a aparência dessa frase.

    Esta ligação entendimento-assentimento tem aplicações, por exemplo, na lógica dado que podemos generalizar essa ligação para argumentos e regras de inferência. Além disso, seguindo Paul Boghossian, tal ligação entendimento-assentimento dá origem ao seguinte projeto natural da filosofia: tentar explicar a “metodologia de poltrona” da filosofia como baseada em algo como a ligação entendimento-assentimento. Ou seja, a nossa pura competência linguística e conceptual ordena o assentimento em algumas frases e inferências que formam o ponto de partida para a investigação filosófica.

    Será isto plausível? Tim Williamson argumenta que não, que esse projeto falha e que há contraexemplos para (UA). O seu argumento contra a ligação entendimento-assentimento começa com uma verdade lógica elementar:

    1. Toda a raposa é uma raposa. [∀x(Rx→Rx)]

    Suponha-se que um dado sujeito, Pedro, está convencido que (1) tem importação existencial. Assim, (1) é verdadeira só se existe ou existiu uma raposa. Assim, (1) implica logicamente:

    1. Há pelo menos uma raposa. [∃xRx]

    Além disso, devido a teorias da conspiração, o Pedro forma a crença bizarra que nunca existiu qualquer raposa. Desta forma, o Pedro tem a crença que (2) é falsa. Ora, uma vez que ele nega (2) e a considera como uma consequência lógica de (1), ele também nega (1) e, por isso, não assente (1). Contudo, o Pedro entende (1), sendo linguisticamente competente. Afinal, ele não tem perspetivas semânticas incorretas sobre “raposas,” apenas tem algumas perspetivas não-semânticas bastante invulgares sobre raposas. Deste modo, temos um contraexemplo que falsifica (UA). Para aprofundar este e outros argumentos sobre a conceção epistemológica de analiticidade, pode ver aqui um handout que escrevi com algumas ideias.

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    O que é a Filosofia da Religião?

    No seguinte vídeo são discutidas, entre outras, as seguintes questões: O que é a Filosofia da Religião? Quais são as principais questões da Filosofia da Religião? O que é a fé? A fé é racional? O que são ateu, agnóstico e teísta e deísta? Se Deus existe, como ele deve ser? O que é o Problema do Mal? A existência de Deus é compatível com a existência do mal? Deus criou o sofrimento animal? Deus é a melhor explicação para a origem do universo? Em que consiste o Argumento Ontológico para a existência de Deus? Ele é um bom argumento? A omnisciência de Deus é compatível com o livre arbítrio humano?