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  • Domingos Faria Avatar

    A racionalidade moral da encarnação

    O filósofo Richard Swinburne, no seu livro “Was Jesus God?” (2008) inicia desta forma o seu terceiro capítulo que tem o título “Deus partilhou a nossa natureza humana”:

    É um facto geral óbvio sobre o mundo que os seres humanos não sofrem apenas, mas fazem muito mal. Como é que um Deus amor responderá ao sofrimento e pecado destas criaturas débeis, mas em parte racionais, que ele fez? Argumentarei que a priori seria de esperar que Deus responda ao nosso sofrimento e pecado ao viver ele mesmo uma vida humana. Deus iria viver uma vida humana por intermédio de uma pessoa divina que se torna humana (i.e. ‘tornando-se encarnada’). Argumentarei que Deus iria inevitavelmente viver uma vida humana de forma a partilhar o sofrimento humano; e argumentarei que, muito provavelmente, Deus utilizaria essa vida humana de forma a tornar disponível a remissão dos nossos pecados e para nos ensinar como viver.

    Swinburne para defender estas ideias apresenta um argumento de analogia que pode ser sintetizado desta forma:

    Suponha que o nosso país foi atacado injustamente e que o governo decidiu introduzir um serviço militar obrigatório de modo a organizar um exército para defender o país. As condições de recrutamento são as seguintes: todos os jovens entre os 18 e 30 anos são obrigados a servir no exército, enquanto que os homens mais velhos podem ser voluntário. Além disso, o governo permite que os pais possam vetar o recrutamento dos filhos que tenham entre os 18 e 21 anos (e na realidade tal veto é usado pela maioria dos pais).

    Imagine igualmente que tenho mais de 30 anos e que tenho um filho de 19 anos. Suponha também que recuso vetar o recrutamento do meu filho por causa da independência do nosso país estar em enorme ameaça (ou seja, devido a um bom propósito). Agora vem a parte crucial do argumento: plausivelmente, uma vez que estou a forçar o meu filho a suportar as dificuldades e perigos do serviço militar, eu tenho para ele uma obrigação moral de me voluntariar igualmente no serviço militar.

    Em analogia, parece plausível supor que, dada a quantidade de dor e sofrimento que Deus permite que os seres humanos suportem (devido a um bom propósito – como, por exemplo, haver livre-arbítrio, entre outros…), seria obrigatório Deus partilhar uma vida humana de sofrimentos. Ora, isto seria alcançado por uma pessoa divina que encarnasse como um ser humano e que vivesse uma vida que tenha muito sofrimento. Aliás, parece que uma forma óbvia de como esse Deus encarnado poderia partilhar os piores sofrimentos que os seres humanos suportam seria ele próprio viver uma vida que acabaria com uma morte dolorosa e injusta.

    Portanto, se Deus amor existe e cria um mundo e humanos com sofrimento, então Deus partilha (e tem obrigação moral de partilhar) da vida humana e desse sofrimento. Esta é a condicional que me parece estar presente na conclusão do argumento de Swinburne. Além disso, a inexistência de Deus não tornaria a condicional falsa e um ateu pode bem aceitar este argumento.

    A condicional só seria falsa caso exista um mundo possível em que (1) Deus amor existe e cria um mundo e humanos com sofrimento e (2) Deus não partilha (nem tem obrigação moral de partilhar) da vida humana e desse sofrimento. E isto parece ser algo que tanto judeus como muçulmanos aceitam (apesar dos judeus pensarem que Deus ainda não partilhou da vida humana, alguns pensam que no futuro vai partilhar). Agora seria preciso examinar que razões têm as outras religiões para negarem a condicional. Pelo menos, Swinburne apresenta três razões para se pensar que a condicional é verdadeira; a primeira foi o argumento que agora expus aqui, a segunda tem a ver com a remissão dos pecados e a terceira com um modelo moral de vida. Serão estes argumentos procedentes?

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    Demonstração lógica da existência do Pai Natal

    Afinal as crianças têm razão: o Pai Natal existe. Aqui está a prova lógica. Para começarmos a provar logicamente a existência do Pai Natal, considere-se a seguinte frase:

    (S) Se a frase S é verdadeira, então o Pai Natal existe.

    Ora, pode-se reescrever (S) da seguinte forma, em que S abrevia ‘a frase S é verdadeira’ e N abrevia ‘o Pai Natal existe’:

    (S) S → N

    Do mesmo modo, dizer que a frase (S) é verdadeira é equivalente a dizer-se que se a frase S é verdadeira, então o Pai natal existe. Por isso:

    S ↔︎ (S → N)

    A partir desta equivalência [designada como frase-V] podemos fazer a seguinte demonstração da existência do Pai Natal:

    1. S ↔︎ (S → N)                 [Frase-V para (S)]
    2. S → (S → N)                    [Simplificação, de 1]
    3. (S → N) → S                    [Simplificação, de 1]
    4. S → N                    [Contração, de 2]
    5. S                            [Modus Ponens, de 3 e 4]
    6. N                            [Modus Ponens, de 4 e 5]

    Portanto, o Pai Natal existe.

    No entanto parece haver algo de errado com isto; pois com esta demonstração conseguimos provar seja o que for que quisermos. Basta substituir Pai Natal por outra coisa qualquer para assim a provarmos. Deste modo, conseguimos demonstrar a existência de Deus, mas também conseguimos provar que a lua é feita de queijo verde, etc, tal como ilustra Arthur Prior (1955). De igual forma conseguimos provar o contrário: que o Pai Natal não existe, que Deus não existe, que a lua não é feita de queijo, tendo assim uma demonstração que leva a contradições. Este tipo de paradoxo foi inventado por Haskell Curry (1942) e é conhecido como o “paradoxo de Curry”.

    O que haverá então de errado nesta prova da existência do Pai Natal? Talvez se possa negar a regra da contração, tal como sugere Hartry Field, e assim não se pode derivar o passo (4). No entanto, pode-se recorrer a uma derivação alternativa que não utilize essa regra para chegar à mesma conclusão:

    (1’) S ↔︎ (S → N)                 [Frase-V para (S)]

    (2’) | S                                 [suposição, para prova condicional]

    (3’) | S → N                        [Modus Ponens, de 1’ e 2’]

    (4’) | N                                [Modus Ponens, de 2’ e 3’]

    (5’) S → N                    [prova condicional, de 2’-4’]

    (6’) S                        [Modus Ponens, de 1’ e 5’]

    (7’) N                        [Modus Ponens, de 5’ e 6’]

    Perante isto talvez se possa negar a regra do Modus Ponens, tal como Graham Priest propõe na sua lógica paraconsistente, e assim não se pode derivar os passos (6’) e (7’), nem o (3’) e (4’). Mas não será isso um custo demasiado alto? Então como resolver este problema???

    Para saber mais sobre este paradoxo pode clicar aqui. Com este paradoxo, desejo um Feliz Natal a todos os leitores deste blog 😉

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    A possibilidade lógica dos zombies contra o materialismo

    O materialismo (ou fisicalismo) é a perspetiva de que todos os factos sobre o mundo são físicos, que o mundo é inteiramente composto de factos físicos. Vários filósofos têm procurado refutar esta perspetiva (como Kripke, Chalmers, Plantinga, etc); por exemplo, David Chalmers formulou o seguinte argumento contra o materialismo:

    1. No nosso mundo, há experiências conscientes.
    2. Há um mundo logicamente possível que é fisicamente idêntico ao nosso, em que factos positivos sobre a consciência no nosso mundo não então incluídos.
    3. Assim, factos sobre a consciência são factos adicionais sobre o nosso mundo, além dos factos físicos.
    4. Se o materialismo é verdadeiro, então não há factos adicionais sobre o nosso mundo, além dos factos físicos.
    5. Logo, o materialismo não é verdadeiro.

    A premissa (1) está fora de disputa, na medida em que significa que pensamentos, sentimentos, perceções, etc, existem (sem assumir se eles são físicos ou não). A premissa (2) diz que um mundo exatamente como o nosso (que é fisicamente idêntico ao nosso), mas sem consciência, é logicamente possível. Ou seja, nós podemos conceber e descrever um tal mundo sem cair em contradição.

    Para a defesa desta premissa (2) Chalmers recorre, entre outros, ao argumento dos zombies. Chalmers define um zombie como ‘alguém ou alguma coisa fisicamente idêntica a mim (ou a qualquer outro ser consciente), mas em que lhe falta completamente experiências conscientes’. Ora, se os zombies são logicamente possíveis, então o mental não sobrevém logicamente sobre o físico e a premissa (2) é verdadeira, i.e., há um mundo possível fisicamente idêntico ao nosso mas sem consciência. Todavia, Chalmers concorda que, com toda a probabilidade, os zombies não são fisicamente possíveis (pois, é muito provável que haja lei naturais que conectem estados físicos e estados mentais pelo que nenhum ser poderia ter a minha exata constituição física e não ser consciente). Charmers concorda então que a consciência sobrevém naturalmente sobre físico. Deste modo, o ponto do Chalmers é apenas que tais conexões não são logicamente necessárias. Por isso, os zombies são logicamente possíveis (isso é uma descrição obviamente coerente e sem contradição) e, assim, a premissa (2) é verdadeira. O passo (3) segue-se das premissas (1) e (2). A partir daí e com a definição de materialismo, presente na premissa (4), pode-se concluir validamente em (5) que o materialismo é falso.

    Será este um argumento sólido? Toda a sua solidez parece residir na premissa (2) e na possibilidade lógica dos zombies. Serão então os zombies logicamente possíveis? Além disso, mesmo se eles forem logicamente possíveis (i.e. concebíveis), será que daí se segue que eles são metafisicamente possíveis?

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    A evolução natural é incompatível com o teísmo?

    Será que a evolução natural darwinista implica que não pode haver um Deus que guie o processo da evolução? Tanto os teístas criacionistas como os ateístas evolucionistas parecem responder afirmativamente a essa questão. Por um lado, os teístas criacionistas, como Michael Behe, alegam que o processo evolutivo é incapaz de produzir as complexas e irredutíveis características adaptativas que os organismos têm (como o caso dos cílios e dos flagelos) e que tais características têm de ser o resultado da direta intervenção de Deus na natureza. Por outro lado, os ateus evolucionistas, como Richard Dawkins, insistem que a evolução natural é um processo cego, inconsciente, sem qualquer propósito e por isso não há espaço para qualquer Deus. Apesar destas duas posições serem opostas, de forma geral tanto teístas criacionistas como ateístas evolucionistas concordam com a seguinte premissa, sendo ‘E’ a abreviatura de ‘evolução natural darwinista’ e ‘D’ a abreviatura de ‘Deus teísta existe’:

    (1) □(E→¬D)

    Ou seja, necessariamente, se num mundo há E, então não há D. Ou, por outras palavras, em todos os mundos possíveis a conjunção de E e D é falsa. No entanto, enquanto os teístas criacionistas fazem modus tollens a partir de (1) para concluírem que o evolucionismo é falso:

    (2) D

    (3) ∴ ¬E

    Os ateístas fazem modus ponens a partir de (1) para concluírem que Deus não existe:

    (2’) E

    (3’) ∴ ¬D

    Todavia, os teístas evolucionistas discordam das duas posições anteriores uma vez que negam a premissa (1); assim sustentam a seguinte premissa:

    (1*) ◊(E∧D)

    Ou seja, é (logicamente) possível a conjunção da evolução e de Deus. Mais concretamente os teístas evolucionistas sustentam que Deus fez os organismos e as suas complexas características adaptativas ao colocar o processo evolutivo em andamento. Neste caso, Deus produz os organismos indiretamente.

    Mesmo assim, quando falamos da teoria da evolução, para além da seleção natural, também falamos da mutação genética aleatória. Ora, a ideia de que as mutações são “aleatórias” pode parecer um ponto de conflito entre E e D; pois a mutação aleatória sugere “acaso cego”. Porém, de acordo com o teísmo, o que Deus causa não ocorre por acaso cego, uma vez que os teístas frequentemente pensam a evolução como sendo guiada por Deus. Mas como pode isto ser verdade se as mutações não são guiadas?

    Parece haver portanto aqui um conflito; mas tal conflito é ilusório uma vez que quando os evolucionistas dizem que as mutações ocorrem ao acaso ou aleatoriamente, eles não querem dizer que as mutações não são causadas. Em vez disso, como salienta o filósofo da ciência Elliott Sober (2011), “o seu ponto é que as mutações não ocorrem porque elas seriam úteis para os organismos nos quais elas ocorrem. É bem conhecido que há eventos físicos, como a radiação, que influenciam as probabilidades das mutações. Alguns desses eventos causam o aumento das taxas de mutação (…)”. Na mesma linha de raciocínio, Ernst Mayr (1988) alega que “quando é dito que a mutação ou variação é aleatória, a afirmação simplesmente significa que não há correlação entre a produção de novos genótipos e as necessidades adaptacionais de um organismo num dado ambiente”. Todavia, de acordo com este sentido, uma mutação pode ser aleatória e também pretendida e causada (indiretamente) por Deus, de tal forma que a teoria da evolução é compatível tanto com um Deus deísta como com um Deus teísta, tal como defende Sober:

    “Teístas evolucionistas podem claro ser deístas, sustentando que Deus coloca o universo em movimento e, depois, recusa-se sempre a intervir. Mas não há contradição em adotar um Deus mais ativo cujas interversões pós-criação passem sob o radar da biologia evolutiva. A intervenção divina não é parte da ciência, mas a teoria da evolução não implica que isso não ocorra”.

    O filósofo e ateu Michael Ruse também defende que o processo da evolução é aleatório, mas não no sentido de não-causado, sendo logicamente possível que, caso Deus exista, Deus pode causar por vezes as mutações num nível quântico ou sub-atómico. Ou seja, defende que a evolução natural e um Deus teísta que intervém é uma conjunção logicamente possível. Isto é igualmente defendido por cientistas, como Kenneth Miller ou Robert John Russell. Não são apenas os teístas que advogam a verdade de (1), mas também há vários ateístas insuspeitos que defendem que a premissa (1) é verdadeira ou plausível, como é o caso de Michael Ruse, Elliott Sober ou até mais recentemente Daniel Dennett.

    Sobre este tema vale a pena ler:

    • Elliott Sober (2008) Evidence and Evolution – the Logic Behind the Science.
    • Kenneth Miller (2007) Finding Darwin’s God: A Scientist’s Search for Common Ground Between God & Evolution.
    • Michael Ruse (2000) Can a Darwinian Be a Christian? The Relationship Between Science and Religion.
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    Um breve exame à ética sexual católica

    Na ética sexual católica defende-se que tanto os atos homossexuais, como a masturbação, ou ainda a contraceção artificial, etc, não são atos moralmente apropriados. Mais concretamente defende-se que “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados (…) não podem, em caso algum, ser aprovados” (Catecismo da Igreja Católica, 2357); além disso, advoga-se que “a masturbação é um ato intrínseca e gravemente desordenado” seja qual for o motivo (Catecismo da Igreja Católica, 2352); do mesmo modo, sustenta-se que a contraceção artificial (como preservativos ou a pílula) “é intrinsecamente má” (Catecismo da Igreja Católica, 2370). Mas qual é o argumento que se apresenta para se defender tais teses? Há várias linhas argumentativas, umas mais teológicas (como encíclicas como a Humanae Vitae) e outras mais filosóficas (como a argumentação apresentada pela filósofa Elizabeth Anscombe ou mais recentemente por Alexander Pruss). Mas no fundo penso que se podem resumir todas essas linhas argumentativas num único argumento que pode ser formulado do seguinte modo:

    1. Os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos são projetados pela evolução, ou por Deus, ou por ambos.
    2. Ora, um dos propósitos naturais ou biológicos dos órgãos sexuais é a abertura à reprodução.
    3. Um ato é moralmente apropriado só se tal ato realiza os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos.
    4. Portanto, um ato sexual é moralmente apropriado só se tal ato está aberto à reprodução. [De 1 a 3]
    5. Os atos sexuais X não estão abertos à reprodução.
    6. Logo, os atos sexuais X não são moralmente apropriados. [De 4 e 5]

    Onde se lê “atos sexuais X”, pode-se substituir X por qualquer ato homossexual, ou ato de masturbação, ou ato que utilize métodos contracetivos, ou outras práticas sexuais (como sexo oral ou anal). Assim, mostra-se que tais atos não são moralmente apropriados. O argumento é válido, mas será sólido?

    A fundamentação das duas primeiras premissas não parece muito problemática, pois o principal ponto dessas premissas consiste em reconhecer que os órgãos têm propósitos ou funções que são projetados pela evolução natural, ou talvez por Deus, (por exemplo, o propósito do coração é bombear o sangue, o propósito dos pulmões é oxigenar o sangue, etc) e que, além disso, um dos propósitos dos órgãos genitais ou sexuais é a reprodução.

    E quanto à premissa 3? Essa é a premissa central do argumento e quem defende que é verdadeira está a pressupor que a teoria ética da «lei natural» é melhor do que as teorias éticas rivais (como é o caso da deontologia, do utilitarismo do atos, do consequencialismo das regras, ou da teoria das virtudes). A lei natural é uma teoria ética, fundada por Tomás de Aquino, que vê os princípios morais básicos como objetivos, baseados na natureza, em vez de basearem na convenção, e que são passíveis de serem conhecidos por todos através da razão natural humana. Tomás de Aquino procura argumentar que através do nosso intelecto nós podemos conhecer os princípios básicos do certo e errado que são fixos e imutáveis (não precisando de ser baseados numa revelação especial de Deus). Além disso, para Tomás de Aquino, os nossos deveres morais são baseados na nossa natureza como seres racionais e biológicos; deste modo, devemos buscar bens do corpo (como comida, sobrevivência e reprodução), bens da mente (como conhecimento) e bens sociais (como a cooperação). Portanto, a moralidade humana é o que é por causa da nossa natureza humana. Ora, se isto é verdadeiro, então parece que será errado agir de forma contrária à natureza humana e aos seus propósitos; uma vez que um dos propósitos da relação sexual é a reprodução, será errado qualquer outro uso da sexualidade que impeça esse propósito natural e biológico dos órgãos sexuais.

    Será então esse argumento sólido? Penso que não; para sustentar isso apresento as seguintes razões: o primeiro problema no argumento da ética sexual católica é que não é nada claro que a teoria da lei natural (tal como defendida por Tomás de Aquino ou mais recentemente por John Finnis ou pela Igreja Católica) seja a teoria ética mais plausível quando comparada com as teorias éticas rivais. Uma das principais críticas que se pode apontar à teoria da lei natural é que parece confundir o “ser” com o “dever ser”; por exemplo, do facto do sexo produzir frequentemente bebés daí não se segue que o sexo deve ser praticado para esse propósito; pois, uma coisa são os factos e outra são os valores. Em segundo lugar, mesmo que se admita alguma plausibilidade a essa teoria, daí não se segue facilmente que a premissa 3 seja verdadeira. O próprio Tomás de Aquino admite que a aplicação da sua ética a situações específicas é frequentemente muito difícil (e vale a pena realçar que existem adeptos da lei natural que não aceitam a premissa 3 como verdadeira). Em terceiro lugar, existem muito contraexemplos para as premissas 3 e 4 que mostram que não há nada de moralmente errado em usar os órgãos para outra função que não são o seu propósito natural ou biológico. Por exemplo, mesmo que o propósito biológico dos pés seja para nos permitir caminhar, correr e saltar, não há nada de errado na ação de chutar uma bola ou em usar o pé para carregar no travão do carro. Além disso, mesmo que o propósito dos nossos olhos seja para ver, nada há de moralmente errado em usá-los para piscar um olho ou “fazer olhinhos” a uma rapariga. Ou mesmo que a finalidade natural dos nossos dedos seja para pegar em coisas, é absurdo alegar que seria imoral estalar os nossos dedos para fazer música. Também não há nada de errado em andar por aí a assobiar mesmo se esse não é o propósito natural e biológico dos lábios e da boca. Do mesmo modo, mesmo que o propósito biológico dos órgãos sexuais seja a reprodução, não há nada de moralmente errado ao usá-los para promover o prazer ou para fortalecer uma relação de amor. Assim, é falsa a ideia de que não podemos usar os nossos órgãos para outras finalidade ou propósitos que não são biológicas ou naturais. Portanto, toda a argumentação da ética sexual católica assenta em duas premissas falsas, nomeadamente a 3 e a 4. Ou seja, tal como tentei ilustrar, um ato pode ser moralmente apropriado e não realizar qualquer propósito biológico ou natural.

    Outros problemas com o argumento em análise evidenciam-se com as suas consequências absurdas. Para isso suponha-se que o argumento é sólido. Ora, se esse argumento é sólido, não são apenas os atos sublinhados em cima que são imorais mas também aqueles atos sexuais permitidos pela ética sexual católica. Por exemplo, a ética sexual católica sustenta que não é imoral recorrer aos métodos contracetivos naturais (como o método Billings) em situações em que é pertinente por exemplo espaçar o nascimento dos filhos; mas ao utilizar-se esses métodos está a fugir-se ao períodos fecundos e, por isso, pessoas que se relacionam sexualmente ao utilizarem tais métodos estão a ter outro propósito que não é o reprodutivo. Assim, seria imoral recorrer aos métodos naturais. Mas, pela mesma linha de raciocínio, seria imoral um casal que é biologicamente infértil ter relações sexuais, pois tais atos sexuais não estão abertos à reprodução. O mesmo sucede com as mulheres que têm atos sexuais depois da menopausa ou até mesmo com casais que utilizam por exemplo a masturbação ou o sexo oral como foreplay (preliminares) ou como afterplay: em todos esses atos sexuais não há abertura à reprodução e, por isso, são imorais caso o argumento fosse sólido. Já agora talvez se possa alegar que os próprios padres e bispos estariam a ter atos imorais, pois têm ações de sexualidade (a castidade é uma forma de agir sexualmente) que não é aberta à reprodução nem realizam os propósitos naturais e biológicos dos seus órgãos sexuais. Mas, perante todas estas consequências absurdas o argumento da ética sexual católica não é sólido e parece claramente mau.

    Uma nota final: a Igreja Católica continua a insistir neste tipo de ética sexual que parece ser cada vez mais irrelevante para uma percentagem significativa de católicos, para não falar da sociedade em geral (e já agora qual é a relação deste tipo de ética sexual com a ética geral proposta por Jesus por exemplo no Sermão da Montanha?!). E apesar de uma linguagem mais acolhedora do Papa Francisco, os problemas de fundo permanecem uma vez que continuam a basear-se numa ética normativa muito questionável (i.e. a teoria da lei natural) e a considerar que as premissas 3 e 4 são verdadeiras. Isto faz-me pensar que o sketch humorístico “Every sperm is sacred” (ver aqui) dos Monty Python ainda permanece bem atual.