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  • Domingos Faria Avatar

    O problema dos dois Barbaras

    Na obra “Analíticos Anteriores” Aristóteles não só desenvolveu a lógica silogística assertórica, como também concebeu a lógica silogística modal. Em 1.9-11 da sua obra, Aristóteles analisa silogismos com uma das premissas assertórica e a outra necessária. Neste esquema de inferência, alguns desses pares de premissas implicam uma proposição necessária como conclusão. Por exemplo, ele considera que o seguinte esquema, conhecido como BarbaraNXN, é válido:

    AanB

    BaxC

    ∴ AanC

    Ou seja, BarbaraNXN permite-nos inferir uma proposição necessária a partir de uma premissa maior necessária e de uma premissa menor assertórica. Todavia, Aristóteles nega que a proposição necessária possa ser inferida quando a premissa maior é assertórica; ou seja, considera que BarbaraXNN é inválido:

    AaxB

    BanC

    ∴ AanC

    Aristóteles, em 30a23-32 dos “Analíticos Anteriores”, rejeita a validade deste último silogismo ao apresentar um contraexemplo, em que A representa o termo “estar em movimento”, B o termo “animal” e C o termo “homem”. Assim:

    1. Estar em movimento pertence a todo o animal.
    2. Animal necessariamente pertence a todo o homem.
    3. Logo, estar em movimento necessariamente pertence a todo o homem.

    Para Aristóteles este silogismo é inválido, pois é possível conceber uma circunstância em que ambas as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. Ou seja, mesmo que seja verdade que todo o animal está em movimento e que necessariamente todo o homem é animal, pode não ser verdade que necessariamente todo o homem está em movimento.

    No entanto, o tratamento que Aristóteles dá a estes dois silogismos tem sido muito disputada desde da antiguidade e sujeito a imensa controvérsia até aos dias de hoje. Por exemplo, os alunos de Aristóteles, como Teofrasto e Eudemo, começaram logo a negar a validade do BarbaraNXN. Para mostrarem isso, conceberam alguns contraexemplos para essa estrutura silogística e argumentaram que nenhuma proposição necessária pode seguir-se a partir de um par de premissas em que uma delas seja uma proposição assertórica; isto é, rejeitam os dois Barbaras. A ideia é que se o BarbaraXNN é inválido, então pelo mesmo raciocínio o BarabaraNXN também é inválido. Aliás, o que Teofrastro faz é usar os mesmos termos do contraexemplo de Aristóteles para BarbaraXNN e aplica-os ao BarbaraNXN. Deste modo, sendo A “animal”, B “homem” e C “estar em movimento”, obtemos o seguinte silogismo:

    (2) Animal necessariamente pertence a todo o homem.

    (1’) Homem pertence a tudo o que está em movimento.

    (3’) Logo, animal necessariamente pertence a tudo o que está em movimento.

    Ora, de acordo com Teofrasto, podemos imaginarmos uma situação em que as premissas (2) e (1’) são verdadeiras e a conclusão (3’) falsa – isto é, mesmo se supusermos que é verdade que necessariamente todo o homem é animal e que, além disso, é igualmente verdade que tudo o que está em movimento é homem, daí não se segue que necessariamente tudo o que está em movimento é animal (pois, em [1’], pode ser apenas contingente que aquilo que está em movimento é homem); por isso, esse silogismo também não seria válido. Esta crítica à validade de BarbaraNXN foi muito influente e foi aceite por neoplatonistas como Temístio, Siriano e Proclo. Mas, por outro lado, alguns Peripatéticos tentaram defender Aristóteles contra essas objeções.Todavia esta discussão, tal como quase todos problemas filosóficos, não ficou apenas na antiguidade, mas continuou contemporaneamente. Por exemplo, argumentou-se que para salvar Aristóteles, isto é, para se considerar válido BarbaraNXN e inválido BarbaraXNN, é preciso fazer uma leitura “de re” das proposições necessárias, como proposto por Albrecht Becker (1933) e outros. Aqui é preciso, então, fazer a distinção entre proposições necessárias interpretadas “de re” e “de dicto”. Por um lado, numa leitura “de re”, a proposição “AanB” é verdadeira se, e só se, para todo o indivíduo x, se x satisfaz B, então x satisfaz necessariamente A. Por outro lado, numa leitura “de dicto”, a proposição “AanB” é verdadeira se, e só se, necessariamente, para todo o indivíduo x, se x satisfaz B, então x satisfaz A. Desta forma:

    Leitura de re: “AanB” é verdadeira sse ∀x(Bx→□Ax)

    Leitura de dicto: “AanB” é verdadeira sse □∀x(Bx→Ax)

    Agora aplicando a leitura “de re” ao BarbaraNXN obtemos o seguinte resultado:

    ∀x(Bx→□Ax)

    ∀x(Cx→Bx)

    ∴ ∀x(Cx→□Ax)

    Como se pode constatar esse argumento é claramente válido. Do mesmo modo, esta leitura “de re” permite tornar inválido o BarbaraXNN:

    ∀x(Bx→Ax)

    ∀x(Cx→□Bx)

    ∴ ∀x(Cx→□Ax)

    Assim parece que se salvou Aristóteles, pois esta leitura “de re” permite ir ao encontro daquilo que Aristóteles defendeu, nomeadamente considerar BarbaraNXN válido e BarbaraXNN inválido. Porém, fazer uma leitura “de re” das proposições necessárias é problemático. Em primeiro lugar, parece que trivializa a lógica modal, tendo esta o mesmo resultado do que a assertórica (porém, parece que Aristóteles quando se debruça na lógica modal não quer meramente repetir o que defendeu relativamente à lógica silogística assertórica). Mas, ainda mais problemático é o facto de que com a leitura “de re” as regras de conversão para as proposições necessárias tornam-se inválidas. Por exemplo, a conversão de “AenB” para “BenA” é inválida se interpretada “de re”, pois

    ∀x(Bx→□¬Ax) ∴ ∀x(Ax→□¬Bx)

    é uma inferência inválida. Para essa regra de conversão ser válida é preciso uma leitura “de dicto”, ou seja,

    □∀x(Bx→¬Ax) ∴ □∀x(Ax→¬Bx)

    Em suma, parece que para se salvar Aristóteles, por um lado, é preciso fazer uma leitura “de re” das formas silogísticas, como o BarbaraNXN, mas por outro lado as regras de conversão para as proposições necessárias não são válidas com a leitura “de re”, mas apenas com a “de dicto”. Ora, isto obrigaria a tratar as proposições necessárias com duas leituras diferentes, o que seria incoerente. Ou seja, a validade de BarbaraNXN não é consistente com as regras de conversão das proposições necessárias. Como resolver isto? Portanto, o desafio e o problema filosófico é o seguinte: será possível tornar a lógica modal silogística coerente? É possível defender com coerência que o BarbaraNXN é válido e o BarbaraXNN é inválido, bem como a validade das regras de conversão? Estes e outros problemas levaram alguns filósofos a afirmar, como Lukasiewicz (1957), que “a silogística modal de Aristóteles é quase incompreensível por causa das suas muitas faltas e inconsistências”; ou como mais recentemente Robin Smith (1995) alega que “os intérpretes têm gasto muita energia no esforço para encontrar alguma interpretação da silogística modal que seja consistente e, no entanto, preserve todos (ou quase todos) os resultados de Aristóteles; geralmente, o resultado de tal tentativa tem sido dececionante – acredito que isto simplesmente confirma que o sistema de Aristóteles é incoerente e que nenhum tipo de ajuste pode salvá-lo”.

    Mas, será que a lógica silogística modal tem salvação? Haverá uma solução plausível para o problema dos dois Barbaras? A resposta promete ser muito positiva depois do lançamento dos livros “Aristotle’s Modal Proofs: Prior Analytics A8-22 in Predicate Logic” (2011) de Adriane Rini, e “Aristotle’s Modal Syllogistic” (2013) de Marko Malink em que se procura defender que a lógica silogística modal é totalmente coerente e consistente. No caso concreto de Malink, abandona a leitura “de re”/“de dicto” e adota uma nova e poderosa interpretação para a silogística modal baseada na teoria da predicação e das categorias apresentada por Aristóteles nos “Tópicos”.

  • Domingos Faria Avatar

    Filosofia da Ressurreição

    Na Páscoa os cristãos celebram a ressurreição de Jesus. E os cristãos acreditam que a ressurreição de Jesus serve como um modelo para a ressurreição das pessoas no futuro. Se a doutrina cristã da ressurreição dos mortos for verdadeira, então haverá num futuro distante muitas pessoas que serão ressuscitadas. Mas surge um problema filosófico: cada uma destas pessoas ressuscitadas será numericamente a mesma que aquela que vivia antes de morrer? Com esta questão não se está a perguntar se elas são qualitativamente a mesma pessoa, mas sim se elas são numericamente idênticas a alguém que viveu no passado. Por um lado, a identidade numérica é aquela relação que cada coisa tem consigo mesma e com nenhuma outra coisa, apresentando uma relação reflexiva, simétrica e transitiva. Do mesmo modo, respeita o princípio da indiscernibilidade dos idênticos: ∀x ∀y (x=y → ∀P (Px ↔︎ Py). Por exemplo: Véspero e Fósforo são numericamente idênticos, pois são um e o mesmo objeto (i.e. o planeta Vénus). Por outro, existe identidade qualitativa entre x e y quando x e y são fortemente semelhantes com respeito a determinados aspetos. Por exemplo: dois exemplares do “Naming and Necessity” são qualitativamente idênticos, mas não numericamente idênticos, pois são dois e não um e o mesmo objeto.

    Dualistas de substâncias, como Richard Swinburne [que no livro “The Resurrection of God Incarnate” (2003) aplica o teorema de Bayes a um argumento para mostrar que a probabilidade da ressurreição de Jesus ronda os 97%], respondem à questão inicial defendendo que a pessoa permanece a mesma, uma vez que aquilo que lhe dá a identidade é a alma. E a alma é numericamente a mesma antes e depois da ressurreição, mesmo que o corpo não seja igual ou mesmo que a alma exista sem corpo.

    Mas será que se rejeitarmos o dualismo de substâncias abandonamos a possibilidade da ressurreição? Um materialista pode sustentar a doutrina da ressurreição? De facto, parece que é mais difícil para um materialista explicar a identidade numérica da pessoa antes e depois da ressurreição. Para isso vamos imaginar, como sugere Peter van Inwagen, um manuscrito escrito pelo próprio Santo Agostinho. Além disso, vamos supor que este manuscrito foi queimado e destruído nalgum momento passado. Mas o que alguém pensaria de um monge que alega que está agora na posse do mesmo manuscrito de Agostinho que foi queimado e destruído no passado? Van Inwagen nega que o monge possa possuir um manuscrito numericamente igual ao que foi queimado e destruído, apesar do monge poder ter uma cópia qualitativamente igual do manuscrito. Mesmo que Deus reconstrua o manuscrito, o tal manuscrito será apenas um duplicado, sendo este qualitativamente igual ao original mas não numericamente igual.

    Agora podemos fazer uma analogia com as pessoas. Para o materialista as pessoas são objetos materiais, tal como o manuscrito. Deste modo, se o corpo de uma pessoa que morre entra em decomposição e é destruído, então Deus (apesar de omnipotente) não pode reconstruir o corpo da pessoa na ressurreição para ser numericamente igual à anterior (o máximo que pode fazer é uma cópia qualitativamente igual), tal como no caso do manuscrito. Portanto, se o materialismo for correto, então a ressurreição de pessoas numericamente iguais parece colocada em causa.

    No entanto, Peter van Inwagen no artigo “The Possibility of Resurrection” (1978) argumenta a favor da possibilidade metafísica da ressurreição que é compatível com o materialismo. Então, de que forma van Inwagen ultrapassa o problema que foi levantado ao materialismo? A solução passa por ser possível haver uma ressurreição dos corpos antes destes serem deteriorados ou destruídos. Assim, é lógica e metafisicamente possível que no momento da morte de cada pessoa, Deus remova o cadáver e substitui-lo por um simulacro (imitação), que é aquilo que entra em decomposição e é destruído. Despois na ressurreição dos mortos, Deus toma o cadáver que tem preservado e restaura-o à vida. Esta teoria funciona como a defesa do livre-arbítrio em Alvin Plantinga: não tem de ser verdadeira, mas apenas possível e consistente.

    Será esta teria de Peter van Inwagen plausível? Podemos objetar que nesta perspetiva Deus é um enganador, pois quando enterramos ou cremamos cadáveres pensamos que estes são os originais e não meros simulacros. Então, se estamos errados acerca disto, parece que Deus nos anda constantemente a enganar. Apesar disso, van Inwagen no Postscript em 1997 concede que pode haver outras maneiras de um ser omnipotente poder realizar a ressurreição dos mortos sem recurso ao simulacro.

    Uma boa forma de passar o dia de Páscoa é discutir estes assuntos filosóficos sobre a ressurreição. Por isso deixo em anexo o artigo do filósofo Peter van Inwagen para que os leitores possam examiná-lo criticamente, apresentando tanto objeções como outras alternativas. Convido a escreverem as vossas opiniões críticas sobre isto nos comentários. Uma boa Páscoa!

    [Anexo: “The Possibility of Resurrection” de Peter van Inwagen]

  • Domingos Faria Avatar

    Teste de Lógica

    Qual resposta nesta lista é a resposta correta para esta pergunta?

    1. Todas as respostas abaixo.
    2. Nenhuma das respostas abaixo.
    3. Todas as respostas acima.
    4. Uma das respostas acima.
    5. Nenhuma das respostas acima.
    6. Nenhuma das respostas acima.

    Há várias estratégias para resolver o problema. Uma delas é com recurso à lógica proposicional clássica. Vou usar as variáveis P, Q, R, S, T, U para representar as 6 proposições, da seguinte forma:

    1. (P↔(Q∧(R∧(S∧(T∧U)))))
    2. (Q↔(¬R∧(¬S∧(¬T∧¬U))))
    3. (R↔(P∧Q))
    4. (S↔((P∧(¬Q∧¬R))∨((¬P∧(Q∧¬R))∨(¬P∧(¬Q∧R)))))
    5. (T↔(¬P∧(¬Q∧(¬R∧¬S))))
    6. (U↔(¬P∧(¬Q∧(¬R∧(¬S∧¬T)))))

    Se tomarmos as proposições de 1 a 6 como premissas, a única conclusão válida que se pode retirar é aquela em que 5 é verdadeira e as restantes são falsas. Ou seja,

    (¬P∧(¬Q∧(¬R∧(¬S∧(T∧¬U)))))

    Um inspetor de circunstâncias mostra isso.