Social

  • Domingos Faria Avatar

    Um puzzle filosófico sobre a encarnação de Deus

    No Natal celebra-se a encarnação de Deus. Ora, a doutrina cristã da encarnação é a alegação de que Jesus Cristo foi Deus encarnado. Tal como é tradicionalmente entendida, isto não significa que Jesus foi um profeta especial nomeado por Deus ou que ele foi adotado por Deus. Pelo contrário, a doutrina da encarnação é a alegação de que o ser humano Jesus de Nazaré foi e é Deus. Esta doutrina foi defendida no concilio de Niceia (no ano de 325), e está bem explícita no credo que aí surgiu, onde se evidencia a divindade de Cristo e igualmente a sua humanidade. Mais tarde no concílio de Calcedónia (no ano de 451) procurou-se defender que Jesus Cristo é inteiramente Deus e inteiramente humano, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

    No entanto, esta doutrina da encarnação é suscetível a interessantes paradoxos ou puzzles filosóficos. Por exemplo, pode-se argumentar que é uma verdade necessária que Deus é omnipotente e omnisciente. Esta verdade advém do próprio conceito de Deus, ou seja, um ser que não tenha esses atributos não pode ser qualificado como divino. Ora, também parece uma verdade necessária que nenhum ser humano pode ter conhecimento e poderes infinitos; ser humano é ser finito. Com isto pode-se ver por que razão parece impossível haver um ser que é inteiramente divino e simultaneamente inteiramente humano. Pois, ser inteiramente divino é reunir todas aquelas condições necessárias para a divindade, tal como ser omnipotente e omnisciente. Mas, por outro lado, ser inteiramente humano exige que uma pessoa seja limitada no poder e conhecimento. Deste modo, uma pessoa que é inteiramente divina e inteiramente humana será, por um lado, um ser omnipotente e omnisciente e, por outro lado, será simultaneamente um ser limitado em poder e conhecimento. Ora, esta é uma descrição logicamente inconsistente. Portanto, daqui parece que se pode concluir que a doutrina da encarnação nem sequer é possivelmente verdadeira; por outras palavras, esta doutrina representaria, se este raciocínio estiver correto, uma impossibilidade metafísica. Seguindo Thomas Senor (2007), para se ver melhor o puzzle que está aqui em causa vale a pena formalizar explicitamente o argumento:

    1. Suposição: É possível que Jesus Cristo seja simultaneamente divino e humano. [Suposição para a reductio].
    2. Necessariamente, qualquer coisa que é Deus (i.e. divina) é omnipotente. [Premissa]
    3. Necessariamente, qualquer coisa que é humana não é omnipotente. [Premissa]
    4. É possível que Jesus seja simultaneamente omnipotente e humano. [De 1 e 2]
    5. É possível que Jesus seja simultaneamente omnipotente e não omnipotente. [De 3 e 4].
    6. Mas não é possível que Jesus seja simultaneamente omnipotente e não omnipotente. [Premissa]
    7. Logo, não é possível que Jesus Cristo seja simultaneamente divino e humano. [De 1, 5 e 6].

    Este é um argumento válido. Mas será sólido? As premissas (2) e (3) parecem verdades necessárias que derivam respetivamente dos conceitos de Deus e humanidade. Pode-se conceder que tais premissas têm pelo menos uma certa plausibilidade “prima facie”. Quanto à premissa sobrante, a premissa (6), pode-se justificar que não expressa nada mais do que a “lei da não-contradição” que diz que nada pode ser simultaneamente verdadeiro e falso; numa linguagem lógica ¬(P∧¬P). Assim, se Jesus Cristo é inteiramente Deus e inteiramente humano, e se ser Deus implica ser omnipotente e ser humano implica não ser omnipotente, então a doutrina da encarnação está comprometida com uma contradição (Jesus é omnipotente e Jesus não é omnipotente), violando assim uma regra básica da lógica clássica: a lei da não-contradição. Deste modo, esta doutrina da encarnação seria inconsistente. Como resolver este puzzle?

    Para se tentar resolver o puzzle e, assim, para se defender a coerência da doutrina da encarnação pode-se recorrer a várias estratégias. Uma dessas estratégias é negar a premissa (2). Por exemplo, o filósofo católico Peter Geach (1973) defende que “um cristão não deve acreditar que Deus pode fazer tudo: pois ele não pode acreditar que Deus poderia possivelmente quebrar a sua própria palavra. Nem sequer pode um cristão acreditar que Deus pode fazer tudo o que é logicamente possível; pois quebrar a sua própria palavra é certamente um feito logicamente possível”. A ideia de Geach é substitui o atributo de “omnipotente” (omnipotent) pelo atributo de “todo poderoso” (almighty), pois enquanto o primeiro atributo significa habilidade para fazer tudo e é suscetível a paradoxos, o segundo atributo significa o poder de Deus sobre todas as coisas e aparentemente não tem tais consequências paradoxais. Outra via de negar a premissa (2), que é conhecida na teologia como “kenosis”, pode consistir em argumentar-se que de modo a se torna humano, Deus teria de abandonar (pelo menos temporariamente) aquelas qualidades da divindade que são inconsistentes com a sua encarnação humana. Deste modo não seria uma verdade necessária que Deus é sempre e em todas as circunstâncias um ser omnipotente ou omnisciente. Ora, isto parece que vai ao encontro do que São Paulo afirma na carta aos filipenses (2, 6-7): “Ele [Jesus Cristo], que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens”. Assim, uma vez apropriadamente «esvaziado» de certos atributos, parece que já não há inconsistência em Deus assumir a natureza humana. Agora a questão interessante é argumentar em que medida ao «esvaziar-se» ou ao abandonar (ainda que temporariamente) certas qualidades paradigmáticas divinas, Jesus continuaria a ser “inteiramente divino”.

    Uma outra alternativa para se tentar solucionar o puzzle é negar a premissa (3). Por exemplo, filósofos como Thomas Morris (1986) e Richard Swinburne (1994) procuram argumentar que “não se ser omnipotente” é extremamente comum entre os seres humanos, mas daí não se segue que isso é uma propriedade essencial da humanidade, da mesma forma que ser “o líquido incolor, inodoro e insípido, que enche os rios e os oceanos, que serve para matar a sede” é extremamente comum entre as coisas que são água, mas daí não se segue que isso é uma propriedade essencial da água. Além disso, argumentam que aquilo que atualmente sabemos sobre a natureza humana não pode excluir de forma óbvia a possibilidade da natureza humana torna-se intimamente associada com uma natureza divina e com tudo o que isso envolve. Outra via diferente de argumentação de Morris e Swinburne, igualmente para negar a premissa (3), consiste em defender a possibilidade de “duas mentes” em Jesus Cristo, ou seja, Jesus Cristo tem uma mente humana e uma mente divina (embora a primeira tivesse primazia). Ora esta perspetiva parece que pode explicar como Cristo poderia ser ignorante em algumas coisas (Cf. Mt 24, 36) e noutras coisas omnisciente; assim, a ignorância seria uma função de uma mente humana consciente enquanto a omnisciência seria uma função da mente divina consciente. Porém esta perspetiva da dualidade de mentes tem as suas dificuldades: de acordo com a definição de Calcedónia não há senão uma única pessoa na encarnação; ora, a questão interessante é a de saber se duas mentes podem ser uma só pessoa.

    De forma a se tentar resolver o puzzle da encarnação de Deus pode-se ainda procurar negar a premissa (6). Tal como vimos acima, esta premissa está fundamentada numa das mais importantes regras da lógica clássica: a lei da não-contradição. Então, como se poderá negar esta premissa? Uma hipótese seria rejeitar a própria lei da não-contradição, tal como faz p.e. Graham Priest (2000), ao adotar-se uma perspetiva dialeteísta e uma lógica paraconsistente, mostrando-se que é melhor do que a lógica clássica. Segundo o dialeteísmo uma afirmação e a sua negação são por vezes ambas verdadeiras, ou seja, algumas contradições são verdadeiras, o que permite tentar resolver entre outros o “paradoxo do mentiroso”. Ora, se esta perspetiva lógica for plausível, talvez se possa negar (6) nessa base. Uma outra hipótese seria continuar a aceitar a lei da não-contradição, bem como a lógica clássica, e ainda assim negar a premissa (6). Mas como fazer isso? Para se fazer isso pode-se argumentar que Jesus Cristo difere do resto da humanidade num aspeto muito importante: ele tem duas naturezas, uma divina e outra humana. Assim, quando dizemos que Jesus é omnipotente, o que estamos realmente a afirmar é que Jesus Cristo, enquanto natureza divina, é omnipotente; e quando dizemos que Jesus não é omnipotente, o que estamos realmente a dizer é que Jesus Cristo, enquanto natureza humana, não é omnipotente. É verdade que se Jesus Cristo tivesse uma única natureza, então a afirmação que ele é simultaneamente omnipotente e não omnipotente violaria a lei da não-contradição. Todavia, não há contradição ao dizer que enquanto natureza divina Jesus Cristo é omnipotente e enquanto natureza humana ele não é omnipotente, tal como não há contradição ao dizer-se p.e. que uma maça é vermelha enquanto casca e não é vermelha enquanto parte interior. Esta linha de argumentação foi desenvolvida por filósofos como Eleonore Stump (2004) e Brian Leftow (2004) que conceberam, com inspiração em Tomás de Aquino, um modelo composicional da encarnação no qual Deus encarnado é uma entidade composta de propriedades divinas e propriedades humanas. No entanto esta perspetiva composicional também tem os seus desafios, pois na doutrina da encarnação afirma-se que embora Jesus Cristo tenha duas naturezas, não há senão uma única pessoa e, portanto, um único sujeito de predicação. Ora, mesmo que concedamos que a parte divina é omnipotente e a parte humana não é omnipotente, a questão interessante é a de saber se o “Deus composicional encarnado” é ou não omnipotente.

    Neste post não é possível explorar todas as tentativas de solução do puzzle da encarnação de Deus, bem como as suas objeções e contra objeções, com todo detalhe e rigor que elas merecem. De qualquer forma, para quem tiver curiosidade de entrar neste debate recomendo a leitura atenta do livro “The Metaphysics of the Incarnation”, de 2011, editado pelos filósofos Anna Marmodoro e Jonathan Hill. Neste livro vários filósofos exploram, a partir de diferentes pontos de vista, como um modelo rigoroso e coerente da encarnação de Deus pode ser filosoficamente defendido nos dias de hoje. Portanto, aqui fica o meu desafio para o natal: que tentativa de solução do puzzle da encarnação lhe parece mais plausível? Ou, pelo contrário, considera o puzzle insolúvel?

  • Domingos Faria Avatar

    Um desafio sobre lógica

    Para o dia mundial da filosofia, que este ano se celebra no dia 19 de Novembro, apresento um desafio de lógica. Assim, considere-se o seguinte argumento:

    Se o José está em Lisboa então está em Portugal, e se o José está em Madrid então está em Espanha. Logo, se o José está em Lisboa então está em Espanha, ou se ele está em Madrid então está em Portugal.

    Por um lado, este argumento parece válido, pois se o formalizamos terá a seguinte estrutura lógica:

    1. (P→Q)∧(R→S)
    2. ∴ (P→S)∨(R→Q)

    e se utilizarmos tabelas de verdade, dedução natural, ou árvores de refutação constataremos que é válido. Também constataremos que é válido se o formalizarmos em lógica de predicados ou até se utilizarmos predicados relacionais. Portanto, utilizando a lógica clássica, o argumento é válido. Além disso, a premissa parece claramente verdadeira. Mas, por outro lado, parece completamente contra-intuitivo aceitar a conclusão; a conclusão é falsa e parece que não se segue da premissa. Assim, dado a lógica clássica, o argumento parece válido, mas dado as nossas intuições, o argumento parece inválido. Como explicar isto? Será que isto evidencia que a lógica clássica tem problemas ou que deve ser substituída por uma lógica alternativa melhor? Ou, em vez disso, será que talvez isto mostra que nem todas as condicionais em português no indicativo da forma “se…então…” podem ser lidas como implicação material? Como resolver, então, este problema?

    Considere-se um outro argumento que padece do mesmo problema:

    Não é o caso que se há um Deus moralmente bom, as preces imorais serão atendidas. Logo, há um Deus moralmente bom.

    Novamente, por um lado, este argumento parece válido, pois se utilizarmos tabelas de verdade, dedução natural, ou árvores de refutação constataremos que é válido:

    1. ¬(P→Q)
    2. ∴ P

    Todavia, por outro lado, mesmo supondo que a premissa 1 é verdadeira, será que se pode concluir que Deus existe? Intuitivamente parece que a conclusão não se segue da premissa; ou seja, mesmo que se estabeleça cogentemente a verdade da premissa, parece um pouco forçado concluir daí que Deus existe. Novamente, como explicar este conflito entre a lógica clássica e as nossas intuições?

  • Domingos Faria Avatar

    Conhecimento a partir de falsidades?

    Tipicamente sustenta-se que a verdade é uma condição necessária, embora não suficiente, para o conhecimento. Daí o conhecimento ser factivo, pois só se podem conhecer factos ou verdades. Além disso, tipicamente alega-se que, em inferências dedutivas, só se pode obter conhecimento a partir de verdades. Assim, costuma-se aceitar sem problemas o seguinte princípio: necessariamente, se (1) um sujeito S acredita numa proposição q apenas com base numa dedução válida a partir de uma proposição p, e (2) S sabe q, então p é verdadeira.

    No entanto, existem alguns contra-exemplos a este princípio intuitivamente plausível que procuram mostrar que é possível haver conhecimento de uma conclusão q a partir de uma premissa falsa p que implique q. Apresento um desses contra-exemplos, adaptado de Warfield (no seu artigo “Knowledge from falsehood”, p. 408, de 2005): Suponha-se que olho para o meu relógio e, com base disso, passo a acreditar que são 14h58m. Daqui dedutivamente infiro que não estou atrasado para a minha conferência das 17h00m. Ora, intuitivamente esta é uma conclusão de que tenho conhecimento mesmo se na realidade são 14h55m e não 14h58m. Portanto, de uma premissa falsa posso dedutivamente obter conhecimento. O que dizer deste contra-exemplo?

    Casos como este parecem mostrar que, num argumento dedutivo, o conhecimento de uma conclusão pode tolerar erro ou falsidade na premissa, na medida em que o erro ou falsidade não seja relevante ou suficientemente grande para ameaçar a verdade da conclusão. Assim, se o erro envolvido ao acreditar na premissa falsa é de pequena magnitude, a inferência dedutiva baseada na falsa premissa pode ainda assim fornecer uma via estável para a verdade da conclusão; porém, se o erro ou falsidade em questão for significativo, tal falsidade comprometerá a verdade da conclusão e, por conseguinte, não haverá conhecimento da conclusão. Portanto, respondendo à questão do título desde post, sim parece que é possível que se tenha conhecimento a partir de falsidades (desde que a falsidade não seja “grande” ou relevante).

  • Domingos Faria Avatar

    Argumento a favor da necessidade da identidade

    A tese da necessidade da identidade sustenta que se as afirmações de identidade são verdadeiras então são necessariamente verdadeiras. Uma afirmação de identidade é qualquer afirmação segundo a qual um objeto A é numericamente idêntico a um objeto B. Por exemplo, a afirmação de que Bernardo Soares é idêntico a Fernando Pessoa é uma afirmação de identidade deste género, tal como sucede com Túlio e Cícero, Véspero e Fósforo, Miguel Torga e Adolfo Correia da Rocha, ou água e H2O, etc. Ora, se é verdade que no mundo atual A e B são numericamente idênticos, então A e B são necessariamente idênticos; ou por outras palavras: são idênticos em todos os mundos possíveis em que existem. Mas se podemos conceber mundos possíveis em que A não é numericamente idêntico a B (e se isso for concebível, tal distinção é metafisicamente possível) e se essa concebilidade não se revelar ilusória, então por modus tollens concluímos que A não é de todo idêntico a B. Mas como justificar a tese da necessidade da identidade? Ou seja, como justificar a tese de que se A é idêntico a B, então necessariamente A é idêntico a B? Kripke no livro “O Nomear e a Necessidade” (p.42) procura justificar esta tese a partir de três premissas: o princípio da necessidade da auto-identidade, o princípio leibniziano da indiscernibilidade dos idênticos, e a suposição de que A é idêntico a B. Pode-se reconstruir o argumento de Kripke desta forma:

    1. Para qualquer objeto X, necessariamente X é idêntico a X. [Necessidade da auto-identidade]
    2. Para quaisquer objetos X e Y, se X é idêntico a Y, então tudo o que for verdade acerca de X é também verdade acerca de Y. [Lei de Leibniz]
    3. A é idêntico a B. [Suposição]
    4. Necessariamente A é idêntico a A. [De (1)]
    5. É verdade de A que é necessariamente idêntico a A. [De (4)]
    6. Se A é idêntico a B, então tudo o que for verdade acerca de A é também verdade acerca de B. [De (2)]
    7. Tudo o que for verdade acerca de A é também verdade acerca de B. [Modus ponens de (3) e (6)]
    8. É verdade acerca de B que este é necessariamente idêntico a A. [De (5) e (7)]
    9. Necessariamente A é idêntico a B. [De (8)]
    10. Logo, se A é idêntico a B, então necessariamente A é idêntico a B. [A partir de (3) e (9)].

    Será esta uma boa inferência para justificar a tese da necessidade da identidade? É possível defender que este argumento incorre na falácia de petição de princípio. Por exemplo, Jonathan Lowe no livro “A Survey of Metaphysics” defende que o passo (5) do argumento não se segue do (4) e que, além disso, em (5) assume-se que qualquer afirmação de identidade verdadeira acerca de A é uma verdade necessária (que é praticamente a conclusão que se quer provar). Mas o que realmente se segue de (4) é algo mais fraco, nomeadamente que:

    (5’) É verdade de A que é necessariamente idêntico a si mesmo.

    Isto porque o passo (4) resulta diretamente da premissa (1), ou seja, do princípio da necessidade da autoidentidade. Assim, é preciso substituir o passo (5) por (5’). E a partir deste último já não se pode concluir a tese da necessidade da identidade. Será esta uma boa objeção?

  • Domingos Faria Avatar

    Irracionalidade do Ateísmo

    O ateísmo é a tese metafísica de que Deus não existe nem qualquer outra divindade ou entidade sobrenatural. Normalmente os ateus alegam que o ateísmo é uma posição racional, talvez por causa do problema indiciário do mal, ou por causa do problema da ocultação divina, etc. Alguns ateus até acusam os teístas de serem completamente irracionais, alegando que a racionalidade ou as melhores explicações implicam ateísmo. Mas vale a pena analisar cuidadosamente e questionar tais suposições: será que o ateísmo é efectivamente uma crença racional? Baseando-me nas minhas críticas ao naturalismo metafísico, elaborei um pequeno esboço de argumento em que se procura concluir que o ateísmo é afinal autoderrotante e, por isso, irracional. O argumento que proponho, numa versão bastante simples e em rascunho, é o seguinte:

    1. Dado o ateísmo, praticamente todos os nossas antepassados que sobreviveram, e por isso que possuíam um comportamento adaptativo, tiveram faculdades que produziam geralmente crenças metafísicas falsas. [Isto porque as crenças metafísicas da maioria dos nossos antepassados nas sociedades antigas faziam referência a seres ou eventos sobrenaturais que dado o ateísmo são crenças falsas].
    2. Se 1 é verdadeira, então, dado o ateísmo, nas sociedades antigas as pessoas geralmente tinham faculdades cognitivas que não eram fiáveis com respeito a crenças metafísicas.
    3. Mas as nossas faculdades cognitivas não são significativamente diferentes comparativamente com as dos nossos antepassados.
    4. Assim, dado o ateísmo, geralmente as nossas faculdades cognitivas com respeito a crenças metafísicas não são fiáveis. [De 1 a 3]
    5. Se 4 é o caso, então quem aceita o ateísmo tem um anulador para a crença de que as suas faculdades são fiáveis com respeito a crenças metafísicas.
    6. Se 5 é o caso, então quem aceita o ateísmo tem um anulador para cada uma das suas crenças metafísicas.
    7. O ateísmo é uma crença metafísica.
    8. Portanto, quem aceita o ateísmo tem um anulador para o ateísmo. [De 4 a 7]
    9. Logo, o ateísmo é autoderrotante e, por isso, irracional. [De 8]

    Além disso, se este meu argumento for procedente, os ateus não podem utilizar racionalmente o argumento indiciário do mal ou o argumento da ocultação divina como tentativas de mostrar que Deus não existe e como forma de advogar uma suposta racionalidade do ateísmo. Pois, se o ateu tem um anulador para qualquer uma das suas crenças metafísicas, então tem igualmente um anulador para esses argumentos ateológicos uma vez que tais argumentos têm pelo menos uma premissa que expressa uma crença metafísica. Portanto, não seria racional o ateu recorrer a tais argumentos.

    Este argumento é válido e à primeira vista também parece sólido. Assim, parece que o ateísmo é irracional. Porém, quem não quiser aceitar a conclusão (9) terá de mostrar e explicar qual das premissas é falsa. Para um argumento mais sofisticado e melhor fundamentado a favor desta mesma tese, com resposta a algumas objecções, recomendo a leitura do meu recente artigo “Proposta de argumento contra o naturalismo metafísico”. Clique aqui para ler esse artigo.