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    Hume, Fátima, e o Milagre do Sol

    Uma grande parte dos católicos acredita que em 13 de Outubro de 1917, na localidade de Fátima (em Portugal), aconteceu o “milagre do Sol” e que nossa senhora apareceu e transmitiu uma mensagem de fé relevante a três pastorinhos. Esse milagre do Sol foi testemunhado por uma grande multidão composta tanto por crentes e cépticos. É importante também referir que a Igreja Católica reconheceu oficialmente o “milagre de Fátima” em 13 de Outubro de 1930. No entanto, ao longo dos anos surgiram várias objecções interessantes ao milagre do Sol que vale a pena considerar e avaliar criticamente. Por exemplo, Richard Dawkins (ver aqui) defende o seguinte:

    “Por um lado, é-nos pedido que acreditemos numa alucinação em massa, num artifício de luz ou numa mentira colectiva envolvendo 70 000 pessoas. Isto é reconhecidamente improvável, mas é menos improvável do que a alternativa: que o Sol realmente se moveu. O Sol que estava sobre Fátima não era, afinal, um Sol privado: era o mesmo Sol que aquecia todos os outros milhões de pessoas no lado do planeta em que era dia. Se o Sol se moveu de facto, mas o acontecimento só foi visto pelas pessoas de Fátima, então teria de se ter dado um milagre ainda mais notável: teria de ter sido encenada uma ilusão de não-movimento relativamente a todos os milhões de testemunhas que não estavam em Fátima. E isso se ignorarmos o facto de que, se o Sol se tivesse realmente deslocado à velocidade referida, o sistema solar se teria desintegrado”.

    Com base nesta passagem, bem como no argumento de David Hume sobre os milagres, os autores de um dos blogues mais importantes e interessantes sobre o ensino da filosofia em Portugal, o blog “A Dúvida Metódica”, sustentam que “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade” (para ver o post completo clique aqui). Serão estas críticas plausíveis? Irei defender que estas objecções não são procedentes e que cometem falhas graves.

    Em primeiro lugar, o Richard Dawkins (como costuma fazer com alguma frequência) está a apresentar, nessa citação exposta acima, uma clara falácia do “homem de palha”. Isto porque ninguém que investigou seriamente e que procura defender racionalmente esse fenómeno de Fátima sustenta que “o Sol realmente se moveu”. Por exemplo, o padre e físico Stanley Jaki no livro “God and the sun at Fatima” (de 1999) afirma que muito provavelmente o fenómeno que ocorreu em 13 de Outubro de 1917 é de natureza meteorológica e não de natureza astronómica, sendo completamente passível de ser explicado de um ponto de vista naturalista (pela conjunção de nuvens do tipo cirro, de nuvens de baixa altitude, de ventos, etc…). Mas, então, onde está o milagre? Caso exista realmente milagre, ele parece estar na previsão impressionante desse fenómeno meteorológico (pois os pastorinhos anunciaram com antecedência e precisão o dia, hora, e local desse fenómeno; foi aliás por causa disso que estava tanta gente naquele local naquele dia). É claro que é muito disputável se isto, entendido desta forma, é realmente um milagre. Mas, dada a existência de Deus, isso não será impossível nem talvez bastante improvável. Mas quer tenha havido ou não milagre, é preciso salientar que a crítica do Dawkins falha completamente no alvo e que está, mais uma vez, a cometer uma falácia óbvia.

    Além disso, é importante questionar: será que de facto a Igreja Católica defende que no fenómeno de Fátima “o Sol realmente se moveu”? Onde é que a Igreja Católica (papa, bispos, padres que sejam crediveis) sustentam que o fenómeno de Fátima de 1917 é um fenómeno de natureza astronómica em vez de ser de natureza meteorológica? Aquilo que conheço da Igreja Católica (e se ela procura conciliar fé e a razão/ciência, como costuma alegar), então ela segue e defende aquilo que o padre e físico Stanley Jaki sustenta no seu livro “God and the sun at Fatima” (de 1999), ou seja, que muito provavelmente o fenómeno que ocorreu em 13 de Outubro de 1917 em fátima é de natureza meteorológica e não de natureza astronómica, sendo completamente passível de ser explicado de um ponto de vista naturalista (sendo que, a haver milagre, esse milagre não está nesse fenómeno meteorológico mas na previsão clara e precisa dos pastorinhos desse fenómeno). Aliás, esta versão do fenómeno de fátima (como evento meteorológico e não como astronómico) parece corresponder aos testemunhos escritos supostamente imparciais e objectivos de várias pessoas credíveis que presenciaram directamente a esse fenómeno, como o testemunho de Gonçalo Xavier de Almeida Garret que era professor de matemáticas e especialista de astronomia na Universidade de Coimbra. Portanto, mais uma vez realço que o Dawkins está a bater num espantalho (pelo menos não atinge minimamente a Igreja Católica e os crentes que procuram boas razões para a sua fé, bem como conciliar a fé com a ciência, mesmo neste fenómeno de Fátima).

    Em segundo lugar, e filosoficamente mais relevante, é importante salientar que o argumento de Hume não é metafísico mas sim epistémico. Assim ele não está a argumentar que os milagres são falsos ou até impossíveis; pelo contrário, só está a argumentar que não é razoável ou racional acreditar em milagres apenas com base do testemunho. Por isso não entendo como os autores do blog “Dúvida Metódica” possam defender que, com base em David Hume, “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade”. No máximo o que se pode concluir com uma argumentação humeana é o seguinte: os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam em algo que é, do ponto de vista epistémico, irrazoável ou irracional. Mas daí não se segue que o milagre em questão seja falso ou sequer impossível. Para se mostrar isso seria necessário outro tipo de argumento. É também relevante salientar que o argumento do Hume está a pressupor uma concepção reducionista do testemunho. Agora a questão interessante a discutir é a de saber se o argumento continua a correr com uma concepção não-reducionista do testemunho (na linha de Thomas Reid). E já agora é importante discutir que concepção de testemunho será a mais plausível (a reducionista, ou não-reducionista, ou uma híbrida, ou ainda uma abordagem pluralista do testemunho caso-a-caso). Cada uma destas concepções terá consequências diferentes para se aceitar um dado testemunho(s) como racional ou irracional.

    Mas, afinal, qual é o argumento de David Hume? No seu argumento (presente na secção 10 do livro “Enquiry Concerning Human Understanding”), Hume está comprometido com a tese epistémica de que não é razoável acreditar em milagres apenas via testemunho uma vez que é mais razoável acreditar, dada a evidência ou indícios de que dispomos, que as testemunhas estão equivocadas do que o contrário. Vale a pena reler o livro do Hume e tentar formular com precisão e clareza o seu argumento, avaliando se é um argumento cogente ou não. Aqui fica uma proposta de formulação que me parece bastante rigorosa:

    1. Em qualquer caso em que estamos perante o testemunho que um milagre M ocorreu, devemos pesar essa evidência testemunhal a favor da ocorrência de M contra a nossa evidência que M não ocorreu.
    2. Mas se M é um milagre, então (dada a definição humeana de milagre) M deve entrar em conflito com uma lei da natureza L, para a qual a nossa evidência deve ser excelente. (E a nossa evidência para L deve ser excelente, caso contrário L não seria uma evidente lei da natureza).
    3. Todavia, a nossa evidência testemunhal a favor da ocorrência de M será sempre menor do que excelente. (Isto porque o testemunho a favor de milagres tem tudo menos um histórico excelente: por exemplos, conhecemos muitos casos onde o testemunho que algum milagre ocorreu foi fraudulento, em que as testemunhas se enganaram ou foram desonestas, etc).
    4. Portanto, em qualquer caso em que estamos perante o testemunho que algum M ocorreu, a nossa evidência testemunhal a favor da ocorrência de M será sempre mais fraca do que a nossa evidência inductiva contra a ocorrência de M. (De 1 a 3).
    5. Logo, será sempre irrazoável acreditar, meramente com base da evidência testemunhal, que um milagre ocorreu. (De 4).

    Acho que esta formulação é uma boa reconstrução do argumento de Hume. Mas caso se aceite a reconstrução proposta do argumento de Hume, não se pode concluir que “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade”. O que se pode concluir é que “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima, meramente com base da evidência testemunhal, acreditam nalgo irrazoável”. Essa é uma diferença relevante. Além disso, vale a pena considerar e levar a sério possíveis objecções a esse argumento humeano. Por um lado, é possível criticar a premissa (2), atacando a definição humeana de milagre como violação de uma lei da natureza, mostrando-se que essa condição não é necessária nem suficiente para algo ser milagre. Por outro lado, é possível criticar a premissa (3), pois para essa premissa ser verdadeira a concepção reducionista de testemunho terá de ser a mais plausível. Mas será a mais plausível? Isso é muito disputável na epistemologia do testemunho contemporânea. Ora, se a concepção não-reducionista do testemunho for a mais plausível, como muitos epistemólogos actuais procuram defender, então já não será nada claro nem evidente que essa premissa (3) é verdadeira. Por isso, não podemos dar de barato, como os autores do “Dúvida Metódica” parecem pressupor implicitamente no seu blog, que o argumento do Hume é o melhor ou é à prova de bala. Isso está muito longe de ser consensual e ainda hoje este é um argumento que continua a ser muito debatido com novas objecções e contra-objecções. Em suma, o problema e a discussão continua em aberto. Mas, apesar do problema continuar em aberto, parece que ficou claro que as críticas ao milagre do Sol, tanto de Richard Dawkins como dos autores da Dúvida Metódica, falham completamente o alvo.


    Actualização – 12/10/16:

    • Para além da recomendação do livro do físico e padre Stanley Jaki, recomendo também agora um artigo em português de 1960, do católico e professor universitário Diogo Pacheco de Amorim, que argumenta que temos a melhor evidência e indícios a favor da interpretação metereológica e que, a haver milagre, esse está apenas na impressionante previsão. O artigo pode ser consultado aqui entre as páginas 145-204. Este artigo do professor Diogo Pacheco de Amorim reúne do mesmo modo os mais importantes e credíveis testemunhos directos deste fenómeno de Fátima. E todos esses testemunhos indiciam que o que ocorreu foi de natureza meteorológica e não astronómica.
    • Além disso, se lermos a “Documentação Crítica de Fátima em 13 volumes” que está presente no Santuário de Fátima veremos igualmente argumentação para esta mesma conclusão. Portanto, o Dawkins está completamente errado quando diz que a posição da Igreja é a de que o evento foi de natureza astronómica. Em suma, se a posição da Igreja é que o evento não é de natureza astronómica (e toda a bibliografia relevante da Igreja indica que o fenómeno foi de natureza meteorológica e não astronómica), e se o Dawkins diz que é de natureza astronómica, estão o Dawkins está a deturpar completamente a posição da Igreja e a cometer uma falácia do espantalho.
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    Problema Lógico da Trindade

    No cristianismo para além de se sustentar a crença de que Deus existe também se defende crenças mais particulares, como a crença na ressurreição, a crença na encarnação de Deus, a crença na trindade , entre outras. Todas estas doutrinas cristãs levantam problemas filosóficos interessantes e desafiantes, como tentar determinar se tais doutrinas são logicamente coerentes ou consistentes. Caso não sejam consistentes, então terão de ser abandonadas. Vou fazer um pequeno esboço sobre o problema lógico da trindade e sobre as principais respostas filosóficas que se têm construído. Ora, de acordo com a doutrina da Santíssima Trindade (veja-se o Credo de Niceia [380] e o de Atanásio [500]) temos o seguinte conjunto T de afirmações:

    (1) O Pai é Deus.

    (2) O Filho é Deus.

    (3) O Espírito Santo é Deus.

    (4) O Pai não é o Filho.

    (5) O Pai não é o Espírito Santo.

    (6) O Filho não é o Espírito Santo.

    (7) Há exactamente um só Deus.

    Este conjunto T suscita vários puzzles filosóficos e muita discussão filosófica (pelo menos desde os séculos IV e V). Um desses puzzles é o problema de saber se o conjunto T é consistente ou inconsistente. Há duas formas de mostrar que T é inconsistente. A primeira forma consiste em ler a cópula “é”, nas frases de (1) a (6), como identidade estrita (como “=”). Ora, a identidade é uma relação de equivalência em que se seguem as seguintes regras:

    Reflexividade: ∀x(x=x)

    Simetria: ∀x∀y(x=y→y=x)

    Transitividade: ∀x∀y∀z((x=y∧y=z)→x=z)

    A partir daí podemos obter uma inconsistência, pois podemos deduzir:

    (8) Deus é o Filho. [de 2, por simetria]

    (9) O Pai é o Filho. [de 1 e 8, por transitividade]

    (10) O Pai não é o Filho e o Pai é o Filho. [de 4 e 9]

    Ora, como a partir do conjunto T se originou uma contradição em (10), esse conjunto T é inconsistente. Uma outra forma de mostrar a inconsistência consiste em ler a cópula “é”, nas frases de (1) a (3), como predicação, i.e., usar o “é” para atribuir uma propriedade a um objecto. Por exemplo, a frase “O Snoopy é um cão” não é uma frase de identidade, pois ‘um cão’ não selecciona um tipo particular de objecto. Assim, nessa frase o que se diz é que o Snoopy tem a propriedade de ser um cão. Apliquemos então a leitura predicativa às frases (1), (2), e (3). Ora, a partir daí não se pode concluir que “o Pai é o Filho”, pois de “x tem P” e “y tem P” não se segue que ‘x é idêntico a y’. Portanto, as afirmações de (1) a (6) com esta leitura não são inconsistentes. Todavia, o conjunto T ainda assim é inconsistente, pois das afirmações de (1) a (6) segue-se que:

    (11) Deus é (pelo menos) três em número, nomeadamente o Pai, o Filho, e o Espírito Santo, cada um distinto do outro. [de 1-6]

    (12) Deus é um em número e Deus não é um em número. [de 7 e 11]

    Ou seja, das afirmações (1) até (6) podemos concluir que há pelo menos três Deuses. Todavia, isso é inconsistente com o monoteísmo cristão que sustenta que há apenas um Deus. Ora, como em (12) chegamos novamente a uma contradição, o conjunto T é inconsistente e, dessa forma, a doutrina da trindade não é coerente. Pelo menos não é coerente enquanto se ler as frases do conjunto T desta forma predicativa ou com a identidade estrita.

    Como se pode, então, defender racionalmente a coerência da doutrina da trindade? Para isso, primeiro, não se poderá usar aquelas leituras predicativas e de identidade estrita, que analisamos acima, no conjunto T (pois como vimos isso levará a inconsistências). Segundo, a coerência da doutrina da trindade será mostrada só se houver ou for possível uma estratégia ou modelo em que T seja consistente. Mas haverá um tal estratégia ou modelo que seja plausível? Ao longo da história surgiram algumas propostas interessantes. Uma resposta imediata e possível, conhecida como modalismo, seria defender que na trindade o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são diferentes aspectos ou manifestações de Deus, i.e., diferentes modo de apresentação pelos quais Deus se dá a conhecer. Dessa forma, dizer que Deus é Pai, Filho, e Espírito Santo seria bastante análogo a dizer que Clark Kent é o namorado de Lois Lane, o filho biológico do kryptoniano Jor-El, e o Super Homem. Todavia, pode-se objectar com bastante plausibilidade que essa estratégia não parece coerente com a doutrina da trindade que sustenta explicitamente que na trindade existem três pessoas mas um só Deus.

    Uma outra estratégia é adoptar um modelo social (que tem raízes em Gregório de Nissa e que é actualmente defendido por Richard Swinburne) que segue a analogia de uma família ou sociedade. Assim, há três pessoas (Pai, Filho, e Espírito Santo) mas considerados conjuntamente formam uma só família, um só Deus. Como não há contradição ao pensar numa família como três e, simultaneamente, como unidade, esta analogia parece resolver o problema. Além disso, de acordo com este modelo, a unidade entre as pessoas divinas é assegurada por vários factos, como o caso das pessoas divinas partilharem as mesmas características essenciais (omnipotência, omnisciência, perfeição moral), com vontades necessariamente harmoniosas, com relações de amor perfeito e necessária interdependência mútua. Assim, há um só Deus porque a comunidade das pessoas divinas é tão intimamente interconectada que, apesar de serem três pessoas distintas, formam uma só unidade (tal como uma família). Como crítica, pode-se procurar argumentar que nesta perspectiva o tipo de unidade descrito não é suficientemente forte para assegurar o monoteísmo, e fica igualmente por discutir se neste modelo é assegurada a consubstancialidade entre o Pai e o Filho que se defende na doutrina da trindade.

    modelo psicológico (com raízes em Agostinho e com uma defesa contemporânea por Thomas Morris e Trenton Merricks) constitui uma outra estratégia para lidar com o problema lógico da trindade. Neste modelo atende-se a características da mente humana para tornar coerente a doutrina da trindade. Por exemplo, sugere-se que podemos encontrar uma analogia para a trindade na condição psicológica conhecida como “transtorno da personalidade múltipla”; deste modo, tal como um único ser humano pode ter personalidades múltiplas, assim também um único Deus pode existir em três pessoas (embora no caso de Deus seja uma virtude cognitiva e não um defeito). Também é possível fazer uma analogia com a comissurotomia; assim, tal como um único ser humano pode, devido à comissurotomia, ter duas esferas distintas de consciência, de forma similar um único ser divino pode existir em três pessoas, sendo que cada qual é uma esfera distinta de consciência. Com isso o presente modelo permite bloquear a conclusão de que há mais que um Deus. Todavia, como crítica pode-se defender que não é plausível tratar centros distintos de consciência como pessoas distintas; em vez disso, parece mais plausível tratá-las como um mero aspecto de um único sujeito ou pessoa.

    Por fim vale a pena considerar o modelo de constituição (que começou a ser desenvolvido com Peter Geach e é defendido actualmente por Peter van Inwagen e Michael Rea) que invoca a noção de “identidade relativa”. A ideia principal desta noção é que as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. De um modo mais formal, a identidade relativa sustenta que:

    (IR) É possível que existam x, y, F, e G, tal que x é um F, y é um F, x é um G, y é um G, x é o mesmo F que y, mas x não é o mesmo G que y.

    Este princípio IR tem várias aplicação em filosofia, como no caso do problema da identidade pessoal (ver aqui). Mas IR também pode ser aplicado com plausibilidade ao problema lógico da trindade. Assim, se IR é verdadeiro, podemos dizer que o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são o mesmo Deus mas pessoas distintas; e isso é tudo o que é preciso para a doutrina da trindade ser consistente. Ora, de acordo com este modelo e aplicando IR, para haver uma interpretação adequada do conjunto T, então nas afirmações de (1) a (3) a cópula “é” deve ser lida como “é o mesmo ser que”, enquanto que nas afirmações de (4) a (6) o “não é” deve ser lido como “não é a mesma pessoa que”. Dessa forma não há qualquer inconsistência em T. 

    Para este modelo de constituição ficar mais claro também é possível oferecer algumas analogias de forma a se perceber melhor o que significa dizer que Pai, Filho, e Espírito Santo estão numa relação de “identidade relativa”. Para isso podemos considerar casos de constituição material (como estátuas e os pedaços de matéria que as constituem) em que duas coisas podem ser o mesmo objecto material mas entidades diferentes. Por exemplo, considere-se a famosa estátua de bronze “O Pensador” de Rodin. Parece óbvio que é um único objecto material; mas também parece plausível descrevê-la como uma estátua (que é um tipo de coisa) e como um pedaço de bronze (que é outro tipo de coisa). É igualmente plausível dizer que a estátua é distinta do pedaço de bronze. Por exemplo, pense-se numa situação em que a estátua é derretida; nesse caso o pedaço de bronze permanece, apesar de ter uma forma diferente, mas “o Pensador” de Rodin já não existirá. Ora, isto parece mostrar que o pedaço de bronze é algo distinto da estátua (uma vez que uma coisa pode existir separada de outra só se são distintas). Assim, estamos perante um caso em que duas coisas distintas são o mesmo objecto material (por partilharem toda a sua matéria em comum). Mas, então, se isto está correcto, podemos dizer por analogia que o Pai, o Filho, e o Espírito Santo podem ser o mesmo Deus mas três pessoas diferentes, tal como uma estátua e o seu pedaço constitutivo são o mesmo objecto material mas ainda assim entidades diferentes. Como crítica pode-se questionar o modelo de constituição ao perguntar-se, no Pensador de Rodin, se existem apenas duas coisas (estátua e pedaço de bronze) ou existem muitas mais. E como se pode determinar quantas coisas existem? Um outro grande desafio deste modelo é mostrar que o princípio IR é coerente e plausível. 

    Em suma, tal como procurei deixar claro ao longo deste texto, há muita discussão filosófica relevante e interessante nos dias de hoje sobre o problema lógico da trindade. Por isso o leitor também se pode questionar: Será a doutrina da trindade consistente? Se sim, de que forma? E qual será o modelo mais plausível para defender a coerência da trindade divina? A discussão filosófica continua.

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    Argumento lógico do mal

    No argumento lógico do mal, como tentativa de se provar que Deus não existe, alega-se que as seguintes proposições são inconsistentes:

    (1) Há um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito;

    (2) Há mal.

    Mas para se mostrar que o conjunto {(1), (2)} é inconsistente, i.e. que os membros desse conjunto não podem ser ambos verdadeiros em qualquer circunstância ou mundo possível, será preciso mostrar que há uma contradição explícita nesse conjunto ou que daí se pode deduzir uma contradição explícita. P.e., considere-se o conjunto {P, ~Q, P→Q}. Ora, utilizando regras elementares da lógica, conseguimos chegar à contradição de P&~P ou de Q&~Q. Portanto, não basta afirmar que o conjunto {(1), (2)} é inconsistente; para se provar isso terá de se mostrar que esse conjunto tem uma contradição explícita, como P&~P, ou que desse conjunto se deduz uma contradição explícita. Ora, no conjunto {(1), (2)} não se tem uma contradição explícita, nem partindo apenas dos seus membros originais se deduz uma tal contradição. Deste modo, para se chegar a uma contradição será preciso acrescentar a esse conjunto outras proposições que sejam necessárias. Que proposições são essas? Uma proposta comum entre os ateus é acrescentar a seguinte proposição:

    (3) Um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito elimina todo o mal.

    Agora, o que se argumenta é que o conjunto {(1), (2), (3)} é inconsistente, pois leva a uma contradição explícita. Isto porque de (1) e (3) deduz-se que “não há mal” e juntamente com (2) deduz-se que “há mal e não há mal”, i.e., conclui-se uma contradição explícita. Mas será que isto mostra que o conjunto original {(1), (2)} é inconsistente? Só o mostrará se (3) for uma verdade necessária, pois (1) e (2) podem ainda assim ser ao mesmo tempo verdadeiras nas circunstâncias ou mundos possíveis em que (3) seja falsa. Assim, para se estabelecer a contradição no conjunto em questão, (3) terá de ser uma verdade necessária, i.e., a proposição (3) tem de ser tal que não seja possível uma circunstância, ou mundo possível, na qual ela seja falsa. 

    Mas será (3) uma verdade necessária? Parece que não, pois podemos facilmente conceber que há um estado de coisas bom B de tal forma relacionado com um estado de coisas mau M, e que supere esse mal, que é impossível que B exista e M não exista. Tal como, por exemplo, o ato de perdoar a alguém uma má acção pode ser um bem que supera o mal cometido que se perdoa, ou o ato de suportar corajosamente uma doença pode ser um bem que por vezes supera o mal dessa doença, entre outros. Ora, perante tais casos, se um ser bom e omnipotente eliminasse M, então eliminava B. Mas, é possível que um tal ser não pretenda eliminar B (pois esse B supera M, bem como pode suceder que seja melhor B existir do que não existir de todo); logo, um tal ser bom e omnipotente permite M. Com isto mostra-se que (3) não é uma verdade necessária e, assim, não fica provado que o conjunto original {(1), (2)} é inconsistente.

    Em suma, o argumento ou problema lógico do mal não parece funcionar uma vez que nem sequer se consegue mostrar com sucesso uma contradição explícita uma vez que a proposição (3) não parece uma verdade necessária. Isto porque há situações em que o mal é uma condição necessária para um determinado bem importante (como em casos de perdão, coragem, etc). Por isso, é falso dizer que Deus é incompatível com qualquer instância de mal ou sofrimento. Além disso, também se pode argumentar que Deus, se existe, pode ter uma razão moralmente justificada para permitir algum mal. Nesse caso, não é uma verdade necessária que Deus iria eliminar todo o mal. Assim, o argumento lógico do mal não é bem sucedido.

    É verdade que para contornar esta objecção ao argumento lógico do mal é possível que o ateu tente reformular o argumento e apresente uma nova proposição para se chegar à contradição, como a seguinte:

    (4) Um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito elimina todo o mal, a menos que tenha uma razão moralmente justificada para permitir o mal.

    Ora, esta proposição (4) leva à contradição explicita entre Deus e o mal só se a seguinte proposição é uma verdade necessária:

    (5) Não há uma razão moralmente justificada para um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito permitir o mal.

    Contudo, dada a nossa situação epistémica e dado o que sabemos, nada impede a possibilidade de que:

    (6) Há uma razão moralmente justificada para Deus permitir o mal, uma razão que nós não conhecemos e ele permite que, por essa razão, ocorram instâncias de mal.

    Note-se que (6) implica a negação de (5). Assim, nada do que sabemos impede a possibilidade que (5) seja falsa. Ora, se isto é o caso, então a incompatibilidade entre (1) e (2), i.e., entre Deus e o mal, não é provada por (4) e (5). Além disso, uma vez que nada do que sabemos impede a possibilidade de (1) e (6) serem ambas verdadeiras, e a conjunção de (1) e (6) implica (2), segue-se que nada do que sabemos impede a possibilidade de (1) e (2) serem ambas verdadeiras. Deste modo, dado a nossa situação epistémica e aquilo que sabemos, (1) e (2) são compatíveis. Se isto é o caso, então mais uma vez o argumento lógico do mal não é bem sucedido.

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    Um puzzle filosófico sobre a encarnação de Deus

    No Natal celebra-se a encarnação de Deus. Ora, a doutrina cristã da encarnação é a alegação de que Jesus Cristo foi Deus encarnado. Tal como é tradicionalmente entendida, isto não significa que Jesus foi um profeta especial nomeado por Deus ou que ele foi adotado por Deus. Pelo contrário, a doutrina da encarnação é a alegação de que o ser humano Jesus de Nazaré foi e é Deus. Esta doutrina foi defendida no concilio de Niceia (no ano de 325), e está bem explícita no credo que aí surgiu, onde se evidencia a divindade de Cristo e igualmente a sua humanidade. Mais tarde no concílio de Calcedónia (no ano de 451) procurou-se defender que Jesus Cristo é inteiramente Deus e inteiramente humano, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

    No entanto, esta doutrina da encarnação é suscetível a interessantes paradoxos ou puzzles filosóficos. Por exemplo, pode-se argumentar que é uma verdade necessária que Deus é omnipotente e omnisciente. Esta verdade advém do próprio conceito de Deus, ou seja, um ser que não tenha esses atributos não pode ser qualificado como divino. Ora, também parece uma verdade necessária que nenhum ser humano pode ter conhecimento e poderes infinitos; ser humano é ser finito. Com isto pode-se ver por que razão parece impossível haver um ser que é inteiramente divino e simultaneamente inteiramente humano. Pois, ser inteiramente divino é reunir todas aquelas condições necessárias para a divindade, tal como ser omnipotente e omnisciente. Mas, por outro lado, ser inteiramente humano exige que uma pessoa seja limitada no poder e conhecimento. Deste modo, uma pessoa que é inteiramente divina e inteiramente humana será, por um lado, um ser omnipotente e omnisciente e, por outro lado, será simultaneamente um ser limitado em poder e conhecimento. Ora, esta é uma descrição logicamente inconsistente. Portanto, daqui parece que se pode concluir que a doutrina da encarnação nem sequer é possivelmente verdadeira; por outras palavras, esta doutrina representaria, se este raciocínio estiver correto, uma impossibilidade metafísica. Seguindo Thomas Senor (2007), para se ver melhor o puzzle que está aqui em causa vale a pena formalizar explicitamente o argumento:

    1. Suposição: É possível que Jesus Cristo seja simultaneamente divino e humano. [Suposição para a reductio].
    2. Necessariamente, qualquer coisa que é Deus (i.e. divina) é omnipotente. [Premissa]
    3. Necessariamente, qualquer coisa que é humana não é omnipotente. [Premissa]
    4. É possível que Jesus seja simultaneamente omnipotente e humano. [De 1 e 2]
    5. É possível que Jesus seja simultaneamente omnipotente e não omnipotente. [De 3 e 4].
    6. Mas não é possível que Jesus seja simultaneamente omnipotente e não omnipotente. [Premissa]
    7. Logo, não é possível que Jesus Cristo seja simultaneamente divino e humano. [De 1, 5 e 6].

    Este é um argumento válido. Mas será sólido? As premissas (2) e (3) parecem verdades necessárias que derivam respetivamente dos conceitos de Deus e humanidade. Pode-se conceder que tais premissas têm pelo menos uma certa plausibilidade “prima facie”. Quanto à premissa sobrante, a premissa (6), pode-se justificar que não expressa nada mais do que a “lei da não-contradição” que diz que nada pode ser simultaneamente verdadeiro e falso; numa linguagem lógica ¬(P∧¬P). Assim, se Jesus Cristo é inteiramente Deus e inteiramente humano, e se ser Deus implica ser omnipotente e ser humano implica não ser omnipotente, então a doutrina da encarnação está comprometida com uma contradição (Jesus é omnipotente e Jesus não é omnipotente), violando assim uma regra básica da lógica clássica: a lei da não-contradição. Deste modo, esta doutrina da encarnação seria inconsistente. Como resolver este puzzle?

    Para se tentar resolver o puzzle e, assim, para se defender a coerência da doutrina da encarnação pode-se recorrer a várias estratégias. Uma dessas estratégias é negar a premissa (2). Por exemplo, o filósofo católico Peter Geach (1973) defende que “um cristão não deve acreditar que Deus pode fazer tudo: pois ele não pode acreditar que Deus poderia possivelmente quebrar a sua própria palavra. Nem sequer pode um cristão acreditar que Deus pode fazer tudo o que é logicamente possível; pois quebrar a sua própria palavra é certamente um feito logicamente possível”. A ideia de Geach é substitui o atributo de “omnipotente” (omnipotent) pelo atributo de “todo poderoso” (almighty), pois enquanto o primeiro atributo significa habilidade para fazer tudo e é suscetível a paradoxos, o segundo atributo significa o poder de Deus sobre todas as coisas e aparentemente não tem tais consequências paradoxais. Outra via de negar a premissa (2), que é conhecida na teologia como “kenosis”, pode consistir em argumentar-se que de modo a se torna humano, Deus teria de abandonar (pelo menos temporariamente) aquelas qualidades da divindade que são inconsistentes com a sua encarnação humana. Deste modo não seria uma verdade necessária que Deus é sempre e em todas as circunstâncias um ser omnipotente ou omnisciente. Ora, isto parece que vai ao encontro do que São Paulo afirma na carta aos filipenses (2, 6-7): “Ele [Jesus Cristo], que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens”. Assim, uma vez apropriadamente «esvaziado» de certos atributos, parece que já não há inconsistência em Deus assumir a natureza humana. Agora a questão interessante é argumentar em que medida ao «esvaziar-se» ou ao abandonar (ainda que temporariamente) certas qualidades paradigmáticas divinas, Jesus continuaria a ser “inteiramente divino”.

    Uma outra alternativa para se tentar solucionar o puzzle é negar a premissa (3). Por exemplo, filósofos como Thomas Morris (1986) e Richard Swinburne (1994) procuram argumentar que “não se ser omnipotente” é extremamente comum entre os seres humanos, mas daí não se segue que isso é uma propriedade essencial da humanidade, da mesma forma que ser “o líquido incolor, inodoro e insípido, que enche os rios e os oceanos, que serve para matar a sede” é extremamente comum entre as coisas que são água, mas daí não se segue que isso é uma propriedade essencial da água. Além disso, argumentam que aquilo que atualmente sabemos sobre a natureza humana não pode excluir de forma óbvia a possibilidade da natureza humana torna-se intimamente associada com uma natureza divina e com tudo o que isso envolve. Outra via diferente de argumentação de Morris e Swinburne, igualmente para negar a premissa (3), consiste em defender a possibilidade de “duas mentes” em Jesus Cristo, ou seja, Jesus Cristo tem uma mente humana e uma mente divina (embora a primeira tivesse primazia). Ora esta perspetiva parece que pode explicar como Cristo poderia ser ignorante em algumas coisas (Cf. Mt 24, 36) e noutras coisas omnisciente; assim, a ignorância seria uma função de uma mente humana consciente enquanto a omnisciência seria uma função da mente divina consciente. Porém esta perspetiva da dualidade de mentes tem as suas dificuldades: de acordo com a definição de Calcedónia não há senão uma única pessoa na encarnação; ora, a questão interessante é a de saber se duas mentes podem ser uma só pessoa.

    De forma a se tentar resolver o puzzle da encarnação de Deus pode-se ainda procurar negar a premissa (6). Tal como vimos acima, esta premissa está fundamentada numa das mais importantes regras da lógica clássica: a lei da não-contradição. Então, como se poderá negar esta premissa? Uma hipótese seria rejeitar a própria lei da não-contradição, tal como faz p.e. Graham Priest (2000), ao adotar-se uma perspetiva dialeteísta e uma lógica paraconsistente, mostrando-se que é melhor do que a lógica clássica. Segundo o dialeteísmo uma afirmação e a sua negação são por vezes ambas verdadeiras, ou seja, algumas contradições são verdadeiras, o que permite tentar resolver entre outros o “paradoxo do mentiroso”. Ora, se esta perspetiva lógica for plausível, talvez se possa negar (6) nessa base. Uma outra hipótese seria continuar a aceitar a lei da não-contradição, bem como a lógica clássica, e ainda assim negar a premissa (6). Mas como fazer isso? Para se fazer isso pode-se argumentar que Jesus Cristo difere do resto da humanidade num aspeto muito importante: ele tem duas naturezas, uma divina e outra humana. Assim, quando dizemos que Jesus é omnipotente, o que estamos realmente a afirmar é que Jesus Cristo, enquanto natureza divina, é omnipotente; e quando dizemos que Jesus não é omnipotente, o que estamos realmente a dizer é que Jesus Cristo, enquanto natureza humana, não é omnipotente. É verdade que se Jesus Cristo tivesse uma única natureza, então a afirmação que ele é simultaneamente omnipotente e não omnipotente violaria a lei da não-contradição. Todavia, não há contradição ao dizer que enquanto natureza divina Jesus Cristo é omnipotente e enquanto natureza humana ele não é omnipotente, tal como não há contradição ao dizer-se p.e. que uma maça é vermelha enquanto casca e não é vermelha enquanto parte interior. Esta linha de argumentação foi desenvolvida por filósofos como Eleonore Stump (2004) e Brian Leftow (2004) que conceberam, com inspiração em Tomás de Aquino, um modelo composicional da encarnação no qual Deus encarnado é uma entidade composta de propriedades divinas e propriedades humanas. No entanto esta perspetiva composicional também tem os seus desafios, pois na doutrina da encarnação afirma-se que embora Jesus Cristo tenha duas naturezas, não há senão uma única pessoa e, portanto, um único sujeito de predicação. Ora, mesmo que concedamos que a parte divina é omnipotente e a parte humana não é omnipotente, a questão interessante é a de saber se o “Deus composicional encarnado” é ou não omnipotente.

    Neste post não é possível explorar todas as tentativas de solução do puzzle da encarnação de Deus, bem como as suas objeções e contra objeções, com todo detalhe e rigor que elas merecem. De qualquer forma, para quem tiver curiosidade de entrar neste debate recomendo a leitura atenta do livro “The Metaphysics of the Incarnation”, de 2011, editado pelos filósofos Anna Marmodoro e Jonathan Hill. Neste livro vários filósofos exploram, a partir de diferentes pontos de vista, como um modelo rigoroso e coerente da encarnação de Deus pode ser filosoficamente defendido nos dias de hoje. Portanto, aqui fica o meu desafio para o natal: que tentativa de solução do puzzle da encarnação lhe parece mais plausível? Ou, pelo contrário, considera o puzzle insolúvel?

  • Domingos Faria Avatar

    Um desafio sobre lógica

    Para o dia mundial da filosofia, que este ano se celebra no dia 19 de Novembro, apresento um desafio de lógica. Assim, considere-se o seguinte argumento:

    Se o José está em Lisboa então está em Portugal, e se o José está em Madrid então está em Espanha. Logo, se o José está em Lisboa então está em Espanha, ou se ele está em Madrid então está em Portugal.

    Por um lado, este argumento parece válido, pois se o formalizamos terá a seguinte estrutura lógica:

    1. (P→Q)∧(R→S)
    2. ∴ (P→S)∨(R→Q)

    e se utilizarmos tabelas de verdade, dedução natural, ou árvores de refutação constataremos que é válido. Também constataremos que é válido se o formalizarmos em lógica de predicados ou até se utilizarmos predicados relacionais. Portanto, utilizando a lógica clássica, o argumento é válido. Além disso, a premissa parece claramente verdadeira. Mas, por outro lado, parece completamente contra-intuitivo aceitar a conclusão; a conclusão é falsa e parece que não se segue da premissa. Assim, dado a lógica clássica, o argumento parece válido, mas dado as nossas intuições, o argumento parece inválido. Como explicar isto? Será que isto evidencia que a lógica clássica tem problemas ou que deve ser substituída por uma lógica alternativa melhor? Ou, em vez disso, será que talvez isto mostra que nem todas as condicionais em português no indicativo da forma “se…então…” podem ser lidas como implicação material? Como resolver, então, este problema?

    Considere-se um outro argumento que padece do mesmo problema:

    Não é o caso que se há um Deus moralmente bom, as preces imorais serão atendidas. Logo, há um Deus moralmente bom.

    Novamente, por um lado, este argumento parece válido, pois se utilizarmos tabelas de verdade, dedução natural, ou árvores de refutação constataremos que é válido:

    1. ¬(P→Q)
    2. ∴ P

    Todavia, por outro lado, mesmo supondo que a premissa 1 é verdadeira, será que se pode concluir que Deus existe? Intuitivamente parece que a conclusão não se segue da premissa; ou seja, mesmo que se estabeleça cogentemente a verdade da premissa, parece um pouco forçado concluir daí que Deus existe. Novamente, como explicar este conflito entre a lógica clássica e as nossas intuições?