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    Será a doutrina do inferno logicamente consistente?

    Várias religiões defendem a existência do inferno. Por exemplo, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica (cf. 1035), “as almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, «o fogo eterno»”. O papa Bento XVI na sua encíclica Spe Salvi (cf. III, 44) afirma que “no fim, no banquete, eterno, não se sentarão à mesa indistintamente os malvados junto com as vítimas, como se nada tivesse acontecido”. Esta doutrina deu inspiração a obras de arte impressionantes e grotescas, tal como os frescos (que se vê acima) da cúpula da catedral de Florença. Mas será essa doutrina do inferno logicamente consistente? Será que um Deus justo e amoroso poderá condenar um ser humano a um inferno eterno?

    Penso que um Deus justo e amoroso que condene um ser humano a um inferno eterno é logicamente inconsistente. Explico porquê: Mesmo a criatura mais pecaminosa, tendo necessariamente um poder limitado, não pode causar males infinitos. Para uma criatura causar um mal infinito teria de ter pelo menos um poder ilimitado. Mas, como os seres humanos não têm poder ilimitado, segue-se que os seres humanos não podem causar males infinitos. Ora, se um qualquer Deus condena seres humanos finitos e com poderes limitados a um suplício de magnitude infinita, então isso seria incompatível com a proporcionalidade da justiça, pois qualquer punição infinita por males finitos, praticados por seres humanos com poderes limitados, seria infinitamente injusta. Assim, é logicamente inconsistente que tal Deus que pratique tais actos de condenação infinita seja simultaneamente bom, justo, e amoroso. Logo, quem acredita num tal Deus acredita numa impossibilidade lógica. Ou seja, para além desse Deus não existir no mundo actual, ele nem sequer poderia existir.

    Sustentar que Deus condena alguns a um suplício de magnitude infinita é, portanto, incompatível com a proporcionalidade da justiça. Ou seja, qualquer punição infinita por males finitos praticados seria infinitamente injusta. Todavia, ainda assim penso que pode ser coerente ou consistente Deus criar, não um inferno infinito, mas sim um inferno temporário proporcional ao acto cometido. Tal pode ser consistente e possível num sentido lógico com a justiça divina. Portanto, um inferno temporário pode ainda ser algo consistente.

    Além disso, deixando de lado o argumento da justiça proporcional e avançando para outro argumento bem diferente, podemos conceber que uma dada pessoa por sua livre-vontade quer viver eternamente no inferno. Ora, se Deus respeita a livre-vontade ou livre-arbítrio, então poderia criar um inferno eterno para essa pessoa. Assim, neste sentido um inferno eterno também poderia ser algo consistente (só não seria consistente no sentido punitivo ou de justiça proporcional). Ou seja, se Deus existe e dá livre-arbítrio às pessoas, e se uma das pessoas quer livremente viver eternamente no inferno, então é possível que Deus respeite essa liberdade.

    Penso que há uma paralelo entre o “problema do mal” e o “problema do inferno”, ou seja, entre a defesa da consistência entre o mal no mundo e Deus, tal como na defesa da consistência entre a doutrina do inferno (numa versão fraca não-punitiva) e um Deus amoroso. Penso que nos dois casos pode-se tentar apelar ao livre-arbítrio (ou, melhor, à sua possibilidade lógica) para se tentar estabelecer a consistência em questão. Por exemplo, dado o cristianismo, pode-se argumentar que:

    1. Deus escolheu soberanamente criar pessoas que são livres (no sentido libertista).
    2. Deus, sendo amor, deseja salvar toda a gente.
    3. Se somos livres no sentido libertista, podemos rejeitar a salvação (i.e. podemos escolher rejeitar eternamente Deus).
    4. ∴ É possível que nem todos sejam salvos. [de 1-3]

    Ora, se este argumento for bem sucedido, a posição universalista será falsa (pois, o universalismo diz que é necessário, dada a concepção amorosa e soberana de Deus, que todos sejam salvos). Assim, se esta via de argumentação for de algum modo plausível, será falso que a única opção consistente para quem acredite em Deus é o universalismo. Com isto pode ser falso aquilo que alguns afirmam ao sustentarem que “só Deus, se acaso tivesse um criado algum inferno, poderia merecer habitá-lo”. Mas aqui há uma outra alternativa: é possível que uma pessoa com livre-arbítrio pretenda rejeitar livremente a salvação ou deseje viver toda a eternidade no inferno. Isso parece concebível e consistente ao contrário da versão punitiva do inferno eterno. Atenção: só estou a avaliar a consistência.

    Para quem desejar aprofundar filosoficamente este tema, recomendo a leitura do artigo “Heaven and Hell in Christian Thought” publicado na Stanford Encyclopedia of Philosophy (clique aqui) e do artigo “Hell” publicado na Internet Encyclopedia of Philosophy (clique aqui). Alguns livros recentes de filosofia tratam este problema, como o livro The Problem of Hell: A Philosophical Anthology (Routledge, 2010) editado por Joel Buenting; o livro The Inescapable Love of God (2014) de Thomas Talbott; o livro Destiny and Deliberation: Essays in Philosophical Theology (Oxford, 2011) de Jonathan Kvanvig.

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    O problema da ausência divina retratado no “Silêncio”

    problema da ausência divina é uma conjunção da forma mais intensa do problema da ocultação divina e da mais intensa versão do problema do mal. Este problema levanta um desafio para a crença em Deus através de um cenário em que crentes devotos têm experiências de dor e sofrimento cruel sem entenderem por que razão Deus permanece oculto e falha a responder à sua agonia desesperada e pedidos de ajuda. Este problema é descrito de forma vivida no romance Silêncio de Shusaku Endo e agora no filme do mesmo nome realizado por Scorsese.

    Neste romance, em que se relata alguns factos históricos, começamos por constatar que os cristãos escondidos no Japão (chamados Kakure Kirishitans) foram perseguidos. Muitos deles que eram apanhados pelos oficiais e que se recusavam a negar a sua fé (ao pisar um fumie com a imagem de Jesus) eram torturados cruelmente e mortos por decapitação, crucificação, ou executados ao serem queimados numa fogueira. Um dos métodos de tortura mais eficazes foi o chamado anazuri que consistia em pendurar a vítima, completamente amarrada, de cabeça para baixo dentro de uma fossa. Com tais torturas pretendia-se que os cristãos renunciassem à sua fé.

    Uma das personagem principais de Silêncio é Cristóvão Ferreira, uma figura história, que foi um padre jesuíta português missionário no Japão e renunciou à sua fé ao fim de cinco horas de tortura com o método anazuri. Depois ele teve um nome japonês, Chuan Sawano, e casou com uma mulher japonesa, publicando um livro criticando o cristianismo e contribuindo para a perseguição dos cristãos.

    Mas a personagem central é um discípulo de Ferreira, um jesuíta português chamado Sebastião Rodrigues, que vai de propósito ao Japão para convencer o antigo mestre a regressar à fé. Contudo, da mesma forma que Ferreira, Rodrigues é preso e cruelmente torturado. Inicialmente ele deseja experimentar um martírio glorioso, mas ao ouvir as vozes e gemidos de cristãos japoneses a serem torturados, começa a questionar-se: “por que razão Deus está continuadamente em silêncio perante tais gemidos”. Ao longo deste romance e filme, o silêncio de Deus atormenta Rodrigues e fá-lo questionar a existência de Deus. E essa profunda perplexidade sobre o silêncio de Deus aumenta à medida que testemunha uma série aparentemente interminável de mortes de cristãos japoneses. Ele não suporta tal situação e decide pisar o fumiede Jesus para renunciar à sua fé.

    Isto ilustra bem o problema da ausência divina que pode constituir um dos grandes desafios para a crença teísta. Pois, é um problema que começa por envolver mal horrendo. E enquanto podemos estar confortáveis a acreditar que Deus permite algum estado de coisas mau de forma a instanciar algum bem maior, é mais difícil acreditar que Deus permite um estado de coisas que envolve muita dor e sofrimentos absolutamente terríveis que aparentemente são gratuitos, sem sentido, e não servem para qualquer propósito aparente, tal como parecem todas aquelas torturas aos Kakure Kirishitans. Mas para além disso, o problema envolve em simultâneo a ocultação divina aos crentes devotos; e se o problema da ocultação divina para não-crentes que não sejam resistentes já é enigmático, muito mais o é com respeito a crentes devotos, alguns dos quais estão preparados para sacrificarem as suas vidas por Deus. E de facto o que Rodrigues considera intrigante é que Deus permaneça escondido mesmo dos Kakure Kirishitans devotos que estão preparados para morrer por Deus. Diante de tais situações, ele questiona-se por que razão Deus permanece em silêncio mesmo quando alguém está disposto a morrer por ele.

    É interessante ver que Ferreira não renunciou à fé porque não poderia suportar a tortura (o mal horrendo) ou a ocultação divina em geral. Pelo contrário, ele renunciou à fé porque não poderia suportar a ocultação de Deus com respeito ao mal horrendo que os crentes devotos, tal como ele próprio e os Kakure Kirishitans, tinham de amargurar. É a conjunção do horrendo mal com a ocultação divina que ele não consegue suportar.

    Na longa tradição teísta foram desenvolvidas muitas teodiceias em resposta ao problema do mal e pode-se examinar igualmente se essas teodiceias se podem aplicar ao problema da ausência divina. Por exemplo, uma das mais populares é a teodiceia do livre-arbítrio. Aplicada ao problema da ausência divina pode-se alegar que os seres humanos livres são responsáveis pelo mal horrendo e que se Deus não permanecesse oculto poderia colocar em causa um livre-arbítrio genuíno. Pode-se fazer o mesmo exercício para qualquer outra teodiceia que se considere plausível.

    Este tipo de resposta pode dar conta do aspecto intelectual da ausência divina que diz respeito à consistência lógica entre a existência de Deus e a ocorrência de ausência divina. Todavia, tais teodiceias não terão muita utilidade para resolver um outro aspecto relevante desse problema, pois demonstrar meramente a consistência lógica da existência de Deus com um estado de coisas que envolve ausência divina não elimina a parte experiencial desse problema. A ideia é que a questão “Por que razão Deus permanece silencioso perante a nossa dor e sofrimento?”, que Ferreira e Rodrigues colocam em agonia, não pode ser apenas interpretada como equivalente a uma questão de consistência, mas pode igualmente ser interpretada como um apelo por ajuda, ou até reclamação, a partir de uma perspectiva de primeira pessoa, ou seja: “Deus, por que razão estás em silêncio?! Se existes, não deverias estar em silêncio! Explica-nos pelo menos por que não nos podes ajudar!” É sobretudo este último problema que fica em aberto.

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    Será que Deus poderia encarnar múltiplas vezes?

    A ideia de uma divindade que encarna e se faz homem não é peculiar do Cristianismo. Na mitologia grega temos muitas instâncias de deuses que descem à terra com forma humana. De igual forma, alguns faraós do antigo Egipto por vezes diziam ser encarnações dos deuses Rá e Hórus. Nalgumas versões de Hinduísmo também se acredita que o deus Vishnu teve várias encarnações (mas não todas humanas). Então o que o Cristianismo tem de diferente? Uma das várias diferenças relevantes tem a ver com a singularidade da encarnação: o facto de que é suporto ter ocorrido só uma vez. É também essa singularidade que os cristãos celebram no Natal.

    Todavia, esta singularidade na doutrina da encarnação Cristã pode originar a seguinte objecção de carácter moral: se o propósito da encarnação foi Deus salvar a humanidade ao entrar numa maior e mais próxima relação com a humanidade do que foi até aí possível, então, ao escolher encarnar apenas uma vez, Deus falharia ao entrar numa relação próxima com toda a raça humana e em diversos momentos históricos, fazendo-o apenas com um particular grupo histórico. Parece que essa salvação seria mais efectiva caso houvesse encarnações múltiplas para diferentes grupos históricos e tempos.

    Por que resistir então à ideia de encarnações múltiplas? Haverá um bom argumento para se resistir a essa ideia? Um dos argumentos foi sugerido pelo filósofo Brian Hebblethwaite ao tentar mostrar que as encarnações múltiplas seriam lógica ou metafisicamente impossíveis. No seu livro The Incarnation: Collected Essays in Christology de 1987, Hebblethwaite argumenta que a encarnação de Deus requer identidade numérica entre Deus (mais precisamente, a segunda pessoa da Trindade) e o ser que é a encarnação de Deus na terra, e uma vez que tal identidade com Deus não pode ser multiplamente instanciada, segue-se que pode haver no máximo uma só encarnação. Seguindo Le Poidevin (2011), para se construir o argumento de forma mais rigorosa suponha-se, para a reductio, que Jesus e um outro humano, p.e. Josué, são ambos encarnações do Filho (i.e. da segunda pessoa da Trindade), com base nisso pode-se argumentar que:

    1. Se o Filho encarnou em x, então o Filho = x.
    2. A identidade é tanto simétrica como transitiva, assim ((x = y) & (x = z)) → (y = z).
    3. Se x e y são encarnações diferentes, então x ≠ y.
    4. ∴ Se o Filho encarnou tanto em Jesus como em Josué, então Jesus = Josué. [De 1 e 2]
    5. ∴ Mas como Jesus e Josué são encarnações diferentes, então Jesus ≠ Josué. [De 3]
    6. ∴ No máximo apenas um, Jesus ou Josué, é o Filho encarnado. [De 4 e 5]

    Ao generalizar-se a conclusão (6) pode-se deduzir que pode haver no máximo uma encarnação e, dessa forma, Deus não poderá encarnar várias vezes. Ou seja, a múltipla encarnação é impossível. Mas será este argumento válido e sólido? Ou seja, será que a conclusão se segue das premissas e serão as suas premissas verdadeiras? 

    Começando pela validade, caso se invoque a noção de “identidade relativa” que é por vezes utilizada para resolver problemas sobre a trindade, então o argumento contra as encarnações múltiplas será inválido. A ideia principal desta noção de identidade relativa é que as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. De um modo mais formal, a identidade relativa sustenta que:

    (IR) É possível que existam x, y, F, e G, tal que x é um F, y é um F, x é um G, y é um G, x é o mesmo F que y, mas x não é o mesmo G que y.

    Este princípio IR tem várias aplicação em filosofia, como no seguinte caso: considere-se uma estátua de bronze, A, que é derretida e moldada numa diferente estátua, B. Então, A é o mesmo pedaço de bronze que B, mas não a mesma estátua que B. O filósofo Peter Geach utiliza IR para resolver o problema consistência lógica da trindade: o Filho é o mesmo Deus que o Pai, mas não a mesma pessoa. Todavia, ao aplicarmos IR ao argumento em consideração temos as seguintes premissas:

    (1’) Se o Filho encarnou em x, então o Filho é a mesma pessoa que x.

    (3’) Se x e y são encarnações (humanas) diferentes, então x não é o mesmo ser humano que y.

    Mas, assim, com tais premissas a conclusão (6) já não se segue e, por isso, com a IR o argumento contra as múltiplas encarnações é inválido. Em vez de (6), o máximo que se pode concluir é que Jesus e Josué são a mesma pessoa, mas seres humanos diferentes. Para resistir a isto ter-se-ia que rejeitar IR; o problema é que com isso também se rejeita formas elegantes para se defender a consistência trindade.

    Mas suponhamos que o argumento é válido. Serão as suas três premissas verdadeiras? Plausivelmente a premissa (2) não tem qualquer problema. Todavia, podem-se levantar algumas dúvidas com respeito às premissas (1) e (3). É verdade que a premissa (1) é implicada pela doutrina tradicional da encarnação em que tal é entendida em termos de identidade. Porém, essa premissa será falsa caso adoptemos um modelo composicional da encarnação que é bastante defendido actualmente, tal como o fazem Brian Leftow (2002) e Eleonore Stump (2002). Esse é um modelo da encarnação em que um único ser composto tem uma parte divina e uma parte humana. Isto permite resolver alguns paradoxos filosóficos sobre a natureza de Cristo uma vez que cada natureza residirá numa parte diferente de um todo composto, que em face disso não será mais contraditório do que uma maça que tem casca vermelha mas a sua parte interior branca. Contudo, dado este modelo, a premissa (1) é falsa, pois daí não se segue que o Filho é idêntico (no sentido de identidade numérica) com o que se torna encarnado. Para se resistir a isso terá de se negar esse modelo, mas tem um custo: também terá de se negar uma plausível resposta para alguns paradoxos sobre a consistência da encarnação.

    Quanto à premissa (3): será que temos de aceitar que encarnações diferentes seriam indivíduos diferentes? Uma forma de resistir a essa premissa seria adoptar um critério neo-lockeano de continuidade psicológica para a identidade pessoal. Por exemplo, considere-se a possibilidade de encarnações sucessivas. Mesmo se x e y não são psicologicamente contínuos entre si, eles podem ser psicologicamente contínuos com Deus, o Filho, e isso seria suficiente, dadas as propriedades lógicas da identidade, para garantir a identidade de um com o outro. Com esta estratégia, as encarnações sucessivas seriam logicamente possíveis, mas não as encarnações simultâneas (uma vez que o critério neo-lockeano de continuidade psicológica exclui casos de ramificação – para ver esse pormenor clique aqui). Como objecção talvez se possa dizer que esta estratégia de resposta só funciona com o critério da continuidade psicológica, mas que há várias objecções para esse critério, tal como explora Jeff McMahan (2002). Pode-se igualmente defender outro critério para identidade pessoal, como o animalista ou da mente incorporada que não seja susceptível de montar uma estratégia para negar a premissa (3). Portanto, a plausibilidade ou não da premissa (3) parece depender de uma longa discussão sobre os vários critérios de identidade pessoal.

    Tal como se pode constatar o Natal é fértil em problemas e puzzles filosóficos. Será que Deus poderia encarnar múltiplas vezes? Temos alguma boa razão para resistir à ideia de múltiplas encarnações de Deus? O problema continua em aberto. Feliz Natal 🙂

  • Domingos Faria Avatar

    Argumento ontológico modal válido em K

    Normalmente o argumento ontológico modal exige pelo menos o sistema B da lógica modal (em que se requer uma relação de acessibilidade reflexiva e simétrica entre mundos possíveis) para ser válido. Por exemplo, no artigo que escrevemos aquiavaliamos uma versão bastante conhecida do argumento ontológico modal que utiliza o sistema B ou S5. No entanto, pode-se argumentar que tais sistemas não são apropriados para lidar com modalidades metafísicas e, desse modo, o argumento ontológico modal não seria válido. Objecções contra B e S5 são apresentadas, entre outros, por Nathan Salmon (no artigo “The logic of what might have been” de 1989), Michael Dummett (no artigo “Could There Be Unicorns?” de 1993), e Yannis Stephanou (no artigo “Necessary beings” de 2000). Porém, apesar dessas disputas, conseguimos salvar a validade do argumento ontológico modal uma vez que podemos formular esse argumento no sistema mais fraco da lógica modal, ou seja, em K (de ‘Kripke’). O argumento é o seguinte:

    1. É possível que Deus exista.
    2. É necessário que Deus existe ou é necessário que Deus não exista.
    3. Logo, é necessário que Deus exista.

    Na sua forma lógica:

    1. ◊D
    2. □D ∨ □¬D 
    3. ∴ □D

    Para provarmos a validade desse argumento no sistema K de lógica modal podemos construir uma árvore de refutação, tal como a seguinte:

    1. ◊D, 0                [Premissa 1]
    2. □D∨□¬D, 0                [Premissa 2]
    3. ¬□D, 0                [Negação da conclusão]
    4. ◊¬D, 0                [de 3, negação da necessidade]
    5. 0r1                [de 1, eliminação da possibilidade]
    6. D, 1                [de 1 e 5, eliminação da possibilidade]
    7. 0r2                [de 4, eliminação da possibilidade]
    8. ¬D, 2                [de 4 e 7, eliminação da possibilidade]

                /                \

    (9’) □D, 0            (9’’)□¬D, 0                [de 2, simplificação da disj.]

    (10’) D, 2             (10’’) ¬D, 1                [de 9, 5 e 7, elim. da nec.]

                X                  X

    Por isso, mesmo que S5 e B não sejam os sistemas apropriados para a modalidade, podemos ainda ter um argumento ontológico modal válido em K. Assim, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão será verdadeira e, dessa forma, podemos concluir que Deus existe. Mas será que conseguimos provar que a premissa (1) é verdadeira? Ou seja, será que conseguimos defender a possibilidade metafísica de Deus?

    O ponto é que parece muito difícil defender isso. Por exemplo, Plantinga acha que não há bons argumentos a favor de (1) e também não há bons argumentos contra isso; ainda assim (mesmo sem as tais razões decisivas) acha racional acreditar nessa premissa. Peter van Inwagen de forma parecida diz que não há qualquer razão “a priori” (ou nenhuma acessível a qualquer intelecto finito) para pensar que é possível haver um Deus teísta. Contudo, ele acredita que essa premissa é verdadeira, mas apenas pelo facto de pensar que há de facto um Deus que existe necessariamente e porque aceita os dados da revelação divina. Nesse caso, aceita a premissa porque já está comprometido com a conclusão. Mas o ponto é igualmente difícil para o ateu. Pois, não parecem haver boas ou decisivas razões “a priori” para negar a possibilidade de Deus. Então em que ficamos?!

    Pode-se fazer aqui uma analogia com a conjectura de Goldbach (de que qualquer número par maior que 2 é igual à soma de dois números primos). Ora, podemos construir o seguinte argumento para a verdade da conjectura de Goldbach:

    1. ◊CG
    2. □CG ∨ □¬CG 
    3. ∴ □CG

    Será que com este argumento provamos que a conjectura de Goldbach é verdadeira? Diríamos que o argumento é claramente válido e a premissa (2) também parece claramente verdadeira. Mas ainda assim não consideramos que este argumento fornece uma boa razão para a verdade da conclusão. Qual é o problema? Novamente o problema reside na premissa (1). Parece que ninguém poderá ter uma razão para pensar que essa conjuntura é possivelmente verdadeira a menos que tenha já uma razão para pensar que tal conjuntura é de facto verdadeira. E é isso que parece acontecer com o argumento ontológico. Ou seja, o argumento ontológico modal parece apenas convencer quem já está convencido da existência de Deus e, por isso, não é cogente ainda que as suas premissas sejam verdadeiras e seja válido.

  • Domingos Faria Avatar

    A lógica silogística e o problema da noção de distribuição

    Na continuação dos problemas da leccionação da lógica silogística no ensino secundário, pretendo realçar agora um outro problema que tem a ver com a noção de distribuição dos termos. Quero desde já dizer que esta noção de distribuição dos termos não faz parte da teoria aristotélica original, mas sim é uma extensão medieval da lógica silogística criada, entre outros, por John Buridan (ver aqui). Por isso, tal como no post anterior volto a questionar: afinal que lógica silogística se deve dar no ensino secundário? A lógica silogística original de Aristóteles que não precisa da noção de distribuição ou a lógica silogística medieval que precisa da noção de distribuição dos termos?

    De forma simples, a noção de distribuição diz que “um termo está distribuído quando abrange todos os membros da classe a que se aplica”. Com isto pode-se dizer que nas quatro tradicionais proposições categóricas o termo sujeito apenas está distribuído nas proposições universais e o termo predicado apenas está distribuído nas proposições negativas. Ora, na lógica silogística medieval, mas não na aristotélica original, esta noção tem um papel fundamental para determinar se um silogismo é válido ou inválido. Isto porque um silogismo é válido se cumprir, entre outras, as seguintes duas regras: (i) o termo médio é distribuído em pelo menos uma premissa, (ii) cada termo distribuído na conclusão está distribuído nas premissas. No entanto, contra esta noção de distribuição, o Ricardo Miguel chamou-me atenção (ver aqui) para o seguinte problema. Considere-se a seguinte proposição:

    (1) Alguns números são primos pares.

    Como só há um primo par, temos de considerar todos os primos pares para avaliar a verdade de (1), logo, segundo a definição de termo distribuído, ‘primos pares’ está distribuído. Mas isto contradiz o cânone segundo o qual proposições do tipo I não têm termos distribuídos. E algo semelhante para:

    (2) Todos os mamíferos voadores são morcegos.

    Onde ao considerarmos todos o mamíferos voadores iremos estar a considerar todos os morcegos e, logo, ‘morcegos’ está distribuído, novamente contra o cânone. Portanto, a noção de distribuição não parece adequada.

    Penso que (1) e (2) podem levantar algumas dúvidas para a definição canónica de termo distribuído, tal como desenvolvido pelo medieval Jean Buridan. Como resposta talvez os medievais possam dizer que a regra da distribuição simplesmente não funciona quando se aplica a proposições com termos co-referenciais e a proposições que referem só uma entidade. Além disso, como é que se formularia (1) em lógica de predicados? Talvez se possa dizer que (1) é muito semelhante a dizer que “existe um x, e apenas um, tal que x é um número e x é par primo”; ou seja, ∃x [Nx ⋀ ∀y (Ny → y=x) ⋀ Px]. Mas os lógicos medievais podem disputar que essa não é realmente uma proposição do “tipo I”, sendo que para ser do tipo I a proposição terá simplesmente a seguinte forma lógica: ∃x [Nx ⋀ Px] de tal forma que N e P não são co-referenciais. Com essas restrições, a regra da distribuição parece funcionar e os medievais talvez escapem a essas objecções. Ou seja, pode-se dizer que a noção de distribuição simplesmente não funciona quando se aplica a proposições com termos co-referenciais e a proposições que referem só de uma entidade, nos outros casos parece funcionar.

    De qualquer forma, partindo da suposição de que esta objecção à noção de distribuição é forte (e tendo igualmente em conta que existem outras objecções para essa noção, como a de Geach no livro Reference and Generality: An Examination of Some Medieval and Modern Theories), é importante referir que Aristóteles na sua lógica silogística não precisa dessa noção, pois a lógica dele funciona e é consistente sem essa noção medieval de distribuição dos termos. Então, sem a noção de distribuição, como sabemos quais os silogismos válidos e inválidos? Para isso apenas precisamos do sistema dedutivo de Aristóteles com sete regras (as três regras de conversão mais os quatro silogismos perfeitos) para fazermos derivações directas e indirectas, determinando assim quais os silogismos válidos e inválidos. Portanto, se no ensino secundário faz por ventura sentido dar a lógica aristotélica, por que razão se prefere dar a extensão silogística dos medievais com a noção de distribuição em vez da lógica original de Aristóteles com o seu sistema dedutivo?