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  • Domingos Faria Avatar

    Será que Deus poderia encarnar múltiplas vezes?

    A ideia de uma divindade que encarna e se faz homem não é peculiar do Cristianismo. Na mitologia grega temos muitas instâncias de deuses que descem à terra com forma humana. De igual forma, alguns faraós do antigo Egipto por vezes diziam ser encarnações dos deuses Rá e Hórus. Nalgumas versões de Hinduísmo também se acredita que o deus Vishnu teve várias encarnações (mas não todas humanas). Então o que o Cristianismo tem de diferente? Uma das várias diferenças relevantes tem a ver com a singularidade da encarnação: o facto de que é suporto ter ocorrido só uma vez. É também essa singularidade que os cristãos celebram no Natal.

    Todavia, esta singularidade na doutrina da encarnação Cristã pode originar a seguinte objecção de carácter moral: se o propósito da encarnação foi Deus salvar a humanidade ao entrar numa maior e mais próxima relação com a humanidade do que foi até aí possível, então, ao escolher encarnar apenas uma vez, Deus falharia ao entrar numa relação próxima com toda a raça humana e em diversos momentos históricos, fazendo-o apenas com um particular grupo histórico. Parece que essa salvação seria mais efectiva caso houvesse encarnações múltiplas para diferentes grupos históricos e tempos.

    Por que resistir então à ideia de encarnações múltiplas? Haverá um bom argumento para se resistir a essa ideia? Um dos argumentos foi sugerido pelo filósofo Brian Hebblethwaite ao tentar mostrar que as encarnações múltiplas seriam lógica ou metafisicamente impossíveis. No seu livro The Incarnation: Collected Essays in Christology de 1987, Hebblethwaite argumenta que a encarnação de Deus requer identidade numérica entre Deus (mais precisamente, a segunda pessoa da Trindade) e o ser que é a encarnação de Deus na terra, e uma vez que tal identidade com Deus não pode ser multiplamente instanciada, segue-se que pode haver no máximo uma só encarnação. Seguindo Le Poidevin (2011), para se construir o argumento de forma mais rigorosa suponha-se, para a reductio, que Jesus e um outro humano, p.e. Josué, são ambos encarnações do Filho (i.e. da segunda pessoa da Trindade), com base nisso pode-se argumentar que:

    1. Se o Filho encarnou em x, então o Filho = x.
    2. A identidade é tanto simétrica como transitiva, assim ((x = y) & (x = z)) → (y = z).
    3. Se x e y são encarnações diferentes, então x ≠ y.
    4. ∴ Se o Filho encarnou tanto em Jesus como em Josué, então Jesus = Josué. [De 1 e 2]
    5. ∴ Mas como Jesus e Josué são encarnações diferentes, então Jesus ≠ Josué. [De 3]
    6. ∴ No máximo apenas um, Jesus ou Josué, é o Filho encarnado. [De 4 e 5]

    Ao generalizar-se a conclusão (6) pode-se deduzir que pode haver no máximo uma encarnação e, dessa forma, Deus não poderá encarnar várias vezes. Ou seja, a múltipla encarnação é impossível. Mas será este argumento válido e sólido? Ou seja, será que a conclusão se segue das premissas e serão as suas premissas verdadeiras? 

    Começando pela validade, caso se invoque a noção de “identidade relativa” que é por vezes utilizada para resolver problemas sobre a trindade, então o argumento contra as encarnações múltiplas será inválido. A ideia principal desta noção de identidade relativa é que as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. De um modo mais formal, a identidade relativa sustenta que:

    (IR) É possível que existam x, y, F, e G, tal que x é um F, y é um F, x é um G, y é um G, x é o mesmo F que y, mas x não é o mesmo G que y.

    Este princípio IR tem várias aplicação em filosofia, como no seguinte caso: considere-se uma estátua de bronze, A, que é derretida e moldada numa diferente estátua, B. Então, A é o mesmo pedaço de bronze que B, mas não a mesma estátua que B. O filósofo Peter Geach utiliza IR para resolver o problema consistência lógica da trindade: o Filho é o mesmo Deus que o Pai, mas não a mesma pessoa. Todavia, ao aplicarmos IR ao argumento em consideração temos as seguintes premissas:

    (1’) Se o Filho encarnou em x, então o Filho é a mesma pessoa que x.

    (3’) Se x e y são encarnações (humanas) diferentes, então x não é o mesmo ser humano que y.

    Mas, assim, com tais premissas a conclusão (6) já não se segue e, por isso, com a IR o argumento contra as múltiplas encarnações é inválido. Em vez de (6), o máximo que se pode concluir é que Jesus e Josué são a mesma pessoa, mas seres humanos diferentes. Para resistir a isto ter-se-ia que rejeitar IR; o problema é que com isso também se rejeita formas elegantes para se defender a consistência trindade.

    Mas suponhamos que o argumento é válido. Serão as suas três premissas verdadeiras? Plausivelmente a premissa (2) não tem qualquer problema. Todavia, podem-se levantar algumas dúvidas com respeito às premissas (1) e (3). É verdade que a premissa (1) é implicada pela doutrina tradicional da encarnação em que tal é entendida em termos de identidade. Porém, essa premissa será falsa caso adoptemos um modelo composicional da encarnação que é bastante defendido actualmente, tal como o fazem Brian Leftow (2002) e Eleonore Stump (2002). Esse é um modelo da encarnação em que um único ser composto tem uma parte divina e uma parte humana. Isto permite resolver alguns paradoxos filosóficos sobre a natureza de Cristo uma vez que cada natureza residirá numa parte diferente de um todo composto, que em face disso não será mais contraditório do que uma maça que tem casca vermelha mas a sua parte interior branca. Contudo, dado este modelo, a premissa (1) é falsa, pois daí não se segue que o Filho é idêntico (no sentido de identidade numérica) com o que se torna encarnado. Para se resistir a isso terá de se negar esse modelo, mas tem um custo: também terá de se negar uma plausível resposta para alguns paradoxos sobre a consistência da encarnação.

    Quanto à premissa (3): será que temos de aceitar que encarnações diferentes seriam indivíduos diferentes? Uma forma de resistir a essa premissa seria adoptar um critério neo-lockeano de continuidade psicológica para a identidade pessoal. Por exemplo, considere-se a possibilidade de encarnações sucessivas. Mesmo se x e y não são psicologicamente contínuos entre si, eles podem ser psicologicamente contínuos com Deus, o Filho, e isso seria suficiente, dadas as propriedades lógicas da identidade, para garantir a identidade de um com o outro. Com esta estratégia, as encarnações sucessivas seriam logicamente possíveis, mas não as encarnações simultâneas (uma vez que o critério neo-lockeano de continuidade psicológica exclui casos de ramificação – para ver esse pormenor clique aqui). Como objecção talvez se possa dizer que esta estratégia de resposta só funciona com o critério da continuidade psicológica, mas que há várias objecções para esse critério, tal como explora Jeff McMahan (2002). Pode-se igualmente defender outro critério para identidade pessoal, como o animalista ou da mente incorporada que não seja susceptível de montar uma estratégia para negar a premissa (3). Portanto, a plausibilidade ou não da premissa (3) parece depender de uma longa discussão sobre os vários critérios de identidade pessoal.

    Tal como se pode constatar o Natal é fértil em problemas e puzzles filosóficos. Será que Deus poderia encarnar múltiplas vezes? Temos alguma boa razão para resistir à ideia de múltiplas encarnações de Deus? O problema continua em aberto. Feliz Natal 🙂

  • Domingos Faria Avatar

    Argumento ontológico modal válido em K

    Normalmente o argumento ontológico modal exige pelo menos o sistema B da lógica modal (em que se requer uma relação de acessibilidade reflexiva e simétrica entre mundos possíveis) para ser válido. Por exemplo, no artigo que escrevemos aquiavaliamos uma versão bastante conhecida do argumento ontológico modal que utiliza o sistema B ou S5. No entanto, pode-se argumentar que tais sistemas não são apropriados para lidar com modalidades metafísicas e, desse modo, o argumento ontológico modal não seria válido. Objecções contra B e S5 são apresentadas, entre outros, por Nathan Salmon (no artigo “The logic of what might have been” de 1989), Michael Dummett (no artigo “Could There Be Unicorns?” de 1993), e Yannis Stephanou (no artigo “Necessary beings” de 2000). Porém, apesar dessas disputas, conseguimos salvar a validade do argumento ontológico modal uma vez que podemos formular esse argumento no sistema mais fraco da lógica modal, ou seja, em K (de ‘Kripke’). O argumento é o seguinte:

    1. É possível que Deus exista.
    2. É necessário que Deus existe ou é necessário que Deus não exista.
    3. Logo, é necessário que Deus exista.

    Na sua forma lógica:

    1. ◊D
    2. □D ∨ □¬D 
    3. ∴ □D

    Para provarmos a validade desse argumento no sistema K de lógica modal podemos construir uma árvore de refutação, tal como a seguinte:

    1. ◊D, 0                [Premissa 1]
    2. □D∨□¬D, 0                [Premissa 2]
    3. ¬□D, 0                [Negação da conclusão]
    4. ◊¬D, 0                [de 3, negação da necessidade]
    5. 0r1                [de 1, eliminação da possibilidade]
    6. D, 1                [de 1 e 5, eliminação da possibilidade]
    7. 0r2                [de 4, eliminação da possibilidade]
    8. ¬D, 2                [de 4 e 7, eliminação da possibilidade]

                /                \

    (9’) □D, 0            (9’’)□¬D, 0                [de 2, simplificação da disj.]

    (10’) D, 2             (10’’) ¬D, 1                [de 9, 5 e 7, elim. da nec.]

                X                  X

    Por isso, mesmo que S5 e B não sejam os sistemas apropriados para a modalidade, podemos ainda ter um argumento ontológico modal válido em K. Assim, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão será verdadeira e, dessa forma, podemos concluir que Deus existe. Mas será que conseguimos provar que a premissa (1) é verdadeira? Ou seja, será que conseguimos defender a possibilidade metafísica de Deus?

    O ponto é que parece muito difícil defender isso. Por exemplo, Plantinga acha que não há bons argumentos a favor de (1) e também não há bons argumentos contra isso; ainda assim (mesmo sem as tais razões decisivas) acha racional acreditar nessa premissa. Peter van Inwagen de forma parecida diz que não há qualquer razão “a priori” (ou nenhuma acessível a qualquer intelecto finito) para pensar que é possível haver um Deus teísta. Contudo, ele acredita que essa premissa é verdadeira, mas apenas pelo facto de pensar que há de facto um Deus que existe necessariamente e porque aceita os dados da revelação divina. Nesse caso, aceita a premissa porque já está comprometido com a conclusão. Mas o ponto é igualmente difícil para o ateu. Pois, não parecem haver boas ou decisivas razões “a priori” para negar a possibilidade de Deus. Então em que ficamos?!

    Pode-se fazer aqui uma analogia com a conjectura de Goldbach (de que qualquer número par maior que 2 é igual à soma de dois números primos). Ora, podemos construir o seguinte argumento para a verdade da conjectura de Goldbach:

    1. ◊CG
    2. □CG ∨ □¬CG 
    3. ∴ □CG

    Será que com este argumento provamos que a conjectura de Goldbach é verdadeira? Diríamos que o argumento é claramente válido e a premissa (2) também parece claramente verdadeira. Mas ainda assim não consideramos que este argumento fornece uma boa razão para a verdade da conclusão. Qual é o problema? Novamente o problema reside na premissa (1). Parece que ninguém poderá ter uma razão para pensar que essa conjuntura é possivelmente verdadeira a menos que tenha já uma razão para pensar que tal conjuntura é de facto verdadeira. E é isso que parece acontecer com o argumento ontológico. Ou seja, o argumento ontológico modal parece apenas convencer quem já está convencido da existência de Deus e, por isso, não é cogente ainda que as suas premissas sejam verdadeiras e seja válido.

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    A lógica silogística e o problema da noção de distribuição

    Na continuação dos problemas da leccionação da lógica silogística no ensino secundário, pretendo realçar agora um outro problema que tem a ver com a noção de distribuição dos termos. Quero desde já dizer que esta noção de distribuição dos termos não faz parte da teoria aristotélica original, mas sim é uma extensão medieval da lógica silogística criada, entre outros, por John Buridan (ver aqui). Por isso, tal como no post anterior volto a questionar: afinal que lógica silogística se deve dar no ensino secundário? A lógica silogística original de Aristóteles que não precisa da noção de distribuição ou a lógica silogística medieval que precisa da noção de distribuição dos termos?

    De forma simples, a noção de distribuição diz que “um termo está distribuído quando abrange todos os membros da classe a que se aplica”. Com isto pode-se dizer que nas quatro tradicionais proposições categóricas o termo sujeito apenas está distribuído nas proposições universais e o termo predicado apenas está distribuído nas proposições negativas. Ora, na lógica silogística medieval, mas não na aristotélica original, esta noção tem um papel fundamental para determinar se um silogismo é válido ou inválido. Isto porque um silogismo é válido se cumprir, entre outras, as seguintes duas regras: (i) o termo médio é distribuído em pelo menos uma premissa, (ii) cada termo distribuído na conclusão está distribuído nas premissas. No entanto, contra esta noção de distribuição, o Ricardo Miguel chamou-me atenção (ver aqui) para o seguinte problema. Considere-se a seguinte proposição:

    (1) Alguns números são primos pares.

    Como só há um primo par, temos de considerar todos os primos pares para avaliar a verdade de (1), logo, segundo a definição de termo distribuído, ‘primos pares’ está distribuído. Mas isto contradiz o cânone segundo o qual proposições do tipo I não têm termos distribuídos. E algo semelhante para:

    (2) Todos os mamíferos voadores são morcegos.

    Onde ao considerarmos todos o mamíferos voadores iremos estar a considerar todos os morcegos e, logo, ‘morcegos’ está distribuído, novamente contra o cânone. Portanto, a noção de distribuição não parece adequada.

    Penso que (1) e (2) podem levantar algumas dúvidas para a definição canónica de termo distribuído, tal como desenvolvido pelo medieval Jean Buridan. Como resposta talvez os medievais possam dizer que a regra da distribuição simplesmente não funciona quando se aplica a proposições com termos co-referenciais e a proposições que referem só uma entidade. Além disso, como é que se formularia (1) em lógica de predicados? Talvez se possa dizer que (1) é muito semelhante a dizer que “existe um x, e apenas um, tal que x é um número e x é par primo”; ou seja, ∃x [Nx ⋀ ∀y (Ny → y=x) ⋀ Px]. Mas os lógicos medievais podem disputar que essa não é realmente uma proposição do “tipo I”, sendo que para ser do tipo I a proposição terá simplesmente a seguinte forma lógica: ∃x [Nx ⋀ Px] de tal forma que N e P não são co-referenciais. Com essas restrições, a regra da distribuição parece funcionar e os medievais talvez escapem a essas objecções. Ou seja, pode-se dizer que a noção de distribuição simplesmente não funciona quando se aplica a proposições com termos co-referenciais e a proposições que referem só de uma entidade, nos outros casos parece funcionar.

    De qualquer forma, partindo da suposição de que esta objecção à noção de distribuição é forte (e tendo igualmente em conta que existem outras objecções para essa noção, como a de Geach no livro Reference and Generality: An Examination of Some Medieval and Modern Theories), é importante referir que Aristóteles na sua lógica silogística não precisa dessa noção, pois a lógica dele funciona e é consistente sem essa noção medieval de distribuição dos termos. Então, sem a noção de distribuição, como sabemos quais os silogismos válidos e inválidos? Para isso apenas precisamos do sistema dedutivo de Aristóteles com sete regras (as três regras de conversão mais os quatro silogismos perfeitos) para fazermos derivações directas e indirectas, determinando assim quais os silogismos válidos e inválidos. Portanto, se no ensino secundário faz por ventura sentido dar a lógica aristotélica, por que razão se prefere dar a extensão silogística dos medievais com a noção de distribuição em vez da lógica original de Aristóteles com o seu sistema dedutivo?

  • Domingos Faria Avatar

    A lógica silogística e o problema dos termos singulares

    Ainda a propósito da discussão sobre a possível revisão do programa de filosofia para o ensino secundário, outro problema que tenho notado tem a ver com a leccionação da própria lógica aristotélica, o que pode constituir mais uma razão para abandonar a opção por leccionar esta lógica ou antes por pensar seriamente em reformular o modo como é leccionada. Por exemplo, já recebi e-mails em que que me dizem que alguns professores usam nos testes casos como o seguinte:

    “O Sócrates é mortal porque todos os homens são mortais e o Sócrates é homem”.

    A pergunta no teste é a de colocar este argumento na sua forma canónica, bem como a de determinar se é válido ou inválido. Como correcção deste exercício dizem que a resposta é a seguinte: “(1) Todo o homem é moral, (2) Todo o Sócrates é homem, (3), Logo, todo o Sócrates é mortal. O argumento é do modo AAA da primeira figura e, por isso, é válido”. Mas, em primeiro lugar, quero salientar que a lógica aristotélica, pelo menos como está apresentada nos “primeiros analíticos”, parece trabalhar apenas com termos gerais e não com termos singulares. Ou seja, rigorosamente na lógica de Aristóteles não há termos singulares, como “Sócrates”, mas apenas termos gerais. Por isso, não é apropriado usar termos singulares quando se está a leccionar a lógica original de Aristóteles. Já agora, quanto à lógica aristotélica, o lógico poláco Lukasiewicz sublinha o seguinte no seu livro Aristotle’s Syllogistic:

    “Aristotle does not introduce into his logic singular or empty terms or quantifiers. He applies his logic only to universal terms, like ‘man’ or ‘animal’ (…) Singular, empty, and also negative terms are excluded as values” (p. 130).

    Em segundo lugar, é verdade que na época medieval alguns lógicos tentaram adaptar a lógica aristotélica para tratar termos singulares; mas para essa extensão da lógica funcionar, em vez de se interpretar “Sócrates” como um termo singular deve-se interpretar como um termo geral. Assim, quando se vê “Sócrates é mortal” deve ler-se “Todo o Sócrates é mortal”. Mas quero ressaltar que isto é apenas um manobra da lógica medieval e não da lógica original de Aristóteles. Assim, se o professor de filosofia está a dar apenas a lógica de Aristóteles e não uma extensão medieval da lógica silogística, então não deveria colocar estes casos de termos singulares que são interpretados como termos gerais. Além disso, com esta manobra surgem problemas como o seguinte: se “Sócrates é mortal” é uma proposição do tipo A, qual é a negação dessa proposição? Talvez a resposta mais natural seja dizer que a sua negação é uma proposição do tipo O (que é a contraditória da proposição do tipo A). Mas, nesse caso, por que razão “Sócrates é mortal” é uma proposição universal e “Sócrates não é mortal” é uma proposição particular? No primeiro caso estamos a falar da totalidade do Sócrates mas no segundo caso já não estamos a falar da totalidade do Sócrates? Esta parece ser uma manobra bastante ad hoc. (O Ricardo Miguel também sublinha esse problema aqui e o Desidério Murcho aponta para esse problema aqui).

    Mais recentemente, e em terceiro lugar, alguns filósofos contemporâneos tentaram fazer uma expansão da lógica silogística para lidar apropriadamente com os termos singulares. O caso que melhor conheço é o do filósofo Harry Gensler que acrescenta à lógica silogística as constantes individuais; assim, para além das tradicionais proposições categóricas: “todo A é B”, “nenhum A é B”, “algum A é B”, e “algum A não é B”, temos igualmente as seguinte fórmulas lógicas: “x é A”, “x não é A”, “x é y”, e “x não é y”. Com isto já podemos tratar de forma apropriada os termos singulares e é mais plausível que o método medieval que expus em cima. O Gensler explica como o seu método funciona numa entrevista que lhe fiz recentemente e que se pode ler aqui.

    Portanto, os professores de filosofia que leccionam a lógica silogística devem-se perguntar: mas afinal que lógica silogística se deve ensinar? Apenas a lógica silogística original de Aristóteles que não lida com termos singulares? A extensão medieval da lógica silogística que trata os termos singulares como termos gerais? Ou alguma extensão mais contemporânea da lógica silogística que tem novas formas lógicas para proposições com termos singulares?

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    Swinburne e uma comunicação polémica sobre a homossexualidade

    No passado dia 23 de Setembro de 2016 o filósofo Richard Swinburne proferiu uma comunicação com o título “Christian Moral Teaching on Sex, Family, and Life” no encontro da Sociedade de Filósofos Cristãos (Society of Christian Philosophers [SCP])1que foi largamente contestada e algumas pessoas ficaram seriamente ofendidas. O motivo da polémica parece estar relacionado com o facto do Swinburne alegar que a homossexualidade é uma deficiência que precisa de ser prevenida e curada2. Isto foi por muitos interpretado como roçando a homofobia. Tal situação levou a que o presidente da SCP, o filósofo Michael Rea, escrevesse o seguinte comunicado no seu mural do facebook:

    “Quero expressar o meu pesar pela dor causada no recente encontro da Sociedade de Filósofos Cristãos. As opiniões expressas no discurso do Professor Swinburne não são as da própria SCP. Embora a nossa sociedade seja amplamente unida pelo meio da fé religiosa, as opiniões dos nossos membros são diversificadas. Como presidente da SCP, estou empenhado a promover a vida intelectual da nossa comunidade filosófica. Consequentemente (entre outras razões), estou comprometido com os valores da diversidade e da inclusão. (…)”.

    Mas afinal qual é o argumento do Swinburne que criou toda esta polémica? Não posso dizê-lo com precisão, uma vez que não assisti a essa comunicação. Contudo essas ideias de Swinburne já estão presentes no seu livro Revelation: From Metaphor to Analogy de 2007. Por exemplo, na página 303 desse livro podemos ler o seguinte:

    “A primeira coisa a reconhecer é que a homossexualidade é uma deficiência. Pois um homossexual é incapaz de entrar numa relação de amor em que o amor é como tal procriativo. É uma grande benção, a condição humana normal importante para a continuidade da nossa raça, ter filhos que são o fruto de actos amorosos dos pais entre si”.

    Na página seguinte, continua a dizer que “as deficiências precisam de ser prevenidas e curadas”. Daí, conclui que a homossexualidade deve ser prevenida e curada onde for possível e faz uma lista de algumas recomendações para se colocar em vigor essa conclusão. A estrutura geral do argumento pode ser formulada da seguinte forma:

    1. Os homossexuais são incapazes de entrar numa relação de amor em que o amor é como tal procriativo.
    2. É de grande valor ter filhos que são o fruto de actos amorosos dos pais entre si.
    3. A incapacidade de fazer alguma coisa de grande valor é uma deficiência.
    4. ∴ A homossexualidade é uma deficiência. [De 1 a 3]
    5. As deficiências precisam de ser prevenidas e curadas onde for possível.
    6. Em certa medida, é possível prevenir e curar a homossexualidade.
    7. ∴ Em certa medida, a homossexualidade deve ser prevenida e curada. [De 4 a 6]

    Será este um bom argumento? O argumento é válido, mas não é sólido. Num outro texto, já defendi que argumentos deste estilo não são procedentes e levam a consequências contraintuitivas. Mas vale a pena agora levantar brevemente outras objecções. Em primeiro lugar, é surpreendente notar que Swinburne não dá razões que suportem as premissas 1, 2, e 5. Em segundo lugar, nas duas primeiras premissas, quando se diz que os homossexuais são incapazes de ter crianças que são o fruto dos seus actos de amor, o Swinburne parece estar a fundir os conceitos de amor e de sexo/procriação. Todavia, tais conceitos não são coextensionais; pois, há muitos actos sexuais que não são actos de amor, bem como há actos de amor que não são actos sexuais. Por exemplo, as carícias, olhares, ou até a partilha das tarefas domésticas não são afinal “actos de amor”? Mas terão esses actos de estar fundidos ou ligados com actos sexuais? Parece óbvio que não. Além disso, por que razão não devemos contar também como um acto de amor a adopção de crianças? Se tal for o caso, como é muito plausível, então a criança adoptada por duas pessoas do mesmo sexo seria, utilizando as palavras de Swinburne, “o fruto dos seus actos de amor”. Nesse caso, a conclusão 4 já não se segue das premissas, sendo a premissa 2 completamente falsa. Ou seja, se a adopção é um acto de amor, então os homossexuais são capazes de ter crianças que são fruto do seu acto de amor.

    Em terceiro lugar, se tal argumento fosse sólido, então teríamos igualmente de afirmar que os casais inférteis são deficientes, pois não são capazes de “de entrar numa relação de amor em que o amor é como tal procriativo”. Mas não seriam apenas os casais inférteis que seriam deficientes, mas também os celibatários que focam toda a sua atenção numa dada missão (seja ela científica, académica, caritativa, ou religiosa) uma vez que não seriam capazes de entrar nessa relação procriativa (biologicamente). Mas se uma tal consequência é intuitivamente inaceitável (pois, um casal infértil ou celibatário pode ainda a ser fértil de uma forma não biológica), então o argumento de Swinburne não é sólido.

    Em quarto lugar, se analisarmos com cuidado a premissa 1, constataremos que também é falsa. Isto porque nessa premissa diz-se que os homossexuais são incapazes de entrar numa relação procriativa. Todavia, no sentido comum de ser capaz de fazer algo (entendido num sentido modal), a maioria dos homossexuais é capaz de ter relações heterossexuais, de casar com alguém do sexo oposto, de ter filhos biológicos, etc. Por outras palavras, podemos imaginar um mundo possível ou uma situação contrafactual em que um homossexual entra numa relação procriativa. Uma analogia: pode-se imaginar que alguém tem mais satisfação ao saltar do que a andar lentamente e para ir de um sítio para o outro anda sempre a saltar. Mas daí não se segue que esse sujeito, que anda sempre a saltar, seja incapaz de andar lentamente.

    Em quinto lugar, relativamente ao conceito de deficiência utilizado na premissa 3, parecem haver grandes problemas. Pois, Swinburne define esse conceito como a incapacidade para fazer alguma coisa de grande valor. Mas assim caracterizado, o conceito de deficiência é bastante contraintuitivo, uma vez que há muitas actividades que são de grande valor e haverá sempre pessoas que serão incapazes de as realizar. Por exemplo, os homens são incapazes de dar à luz; desse modo, os homens são deficientes por causa do alto valor da gravidez de que não são capazes. Além disso, se fizermos uma conjunção dessa premissa 3 com a premissa 5, deduzimos que toda a incapacidade de fazer algo de grande valor precisa de ser prevenido e curado. Porém, seria tolo dizer que os homens precisam de ser curados para terem o grande valor da gravidez ou que são simplesmente deficientes por causa de não serem capazes de dar à luz. Isto indicia também que Swinburne está a utilizar na premissa 3 e 5 de forma diferente o conceito de “deficiência”; enquanto na premissa 3 está a utilizá-lo como incapacidade de fazer algo de grande valor, na premissa 5 parece que está a utilizá-lo antes como sinónimo doença grave (p.e. dolorosa ou letal) e que para tal precisa de ser prevenida e curada. Mas, assim, o argumento de Swinburne comete simplesmente a falácia da equivocidade e, por isso, é um mau argumento.

    Em sexto lugar, a caracterização de deficiência utilizado por Swinburne difere em muito daquela que é utilizada comummente e que está mais relacionada com alguma deformação física ou insuficiência mental. Ainda sobre esta premissa 3 e conclusão 4, vale a pena salientar que a Associação Americana de Psiquiatria removeu em 1973 a homossexualidade do DSM (O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), sendo que essa decisão foi fundamentada por investigação científica que indicou que os homossexuais não são diferentes dos heterossexuais intelectualmente e psicologicamente; por isso, eles não têm nenhuma deficiência. Deste modo, a sugestão de Swinburne de que a homossexualidade é uma deficiência e até uma doença (como ele afirma na nota 21 da página 303) está em contradição flagrante com o consenso da comunidade científica.

    Talvez ainda mais grave são as recomendações de Swinburne para prevenir e curar a homossexualidade que se podem ver a partir da página 304, bem como no anexo final do livro a partir da página 361. As recomendações de Swinburne são tão surreais, como: discriminação legal contra a prática homossexual, mudança do clima social para que a homossexualidade não seja aceite, intervenção genética e biológica, terapia correctiva, etc. Por isso, as acusações daqueles que dizem que o Swinburne está a roçar a homofobia parecem acusações legítimas. Os danos psicológicos e físicos que tais recomendações produziriam nas pessoas com inclinações homossexuais seriam bastante graves e eticamente inaceitáveis (pense-se por exemplo nos casos conhecidos de Alan Turing, entre outros). Além disso, penso que tais discriminações contra os homossexuais são anti-cristãs; a mensagem central do Cristianismo (que está presente no Sermão da Montanha) parece ser completamente contra tais atitudes de discriminação, exclusão, e injustiça.

    Para terminar quero realçar que pessoalmente admiro muito o trabalho intelectual do Richard Swinburne, mas neste âmbito sobre a moralidade da homossexualidade reconheço que ele não tem qualquer razão e os seus argumentos envolvem falhas muito graves. Por causa desses equívocos de Swinburne que poderiam ser facilmente confundidos com a posição oficial da Sociedade de Filósofos Cristãos (SCP), penso que o Michael Rea (presidente da SCP) esteve muito bem ao demarcar a SPC daquilo que Swinburne estava a defender. Também a esse propósito a filósofa católica Eleonore Stump (uma especialista no tomismo analítico) comentou no seu mural de facebook que:

    “Ele [Swinburne] assumiu uma posição forte sobre um tema altamente controverso, que causa discórdia mesmo entre os Cristãos, e ele expressou os seus pontos de vista de uma forma incendiária, de tal modo que aqueles que não concordavam com ele ficaram feridos e irritados e, até mesmo, alguns daqueles que concordaram ficaram consternados. A Sociedade de Filósofos Cristãos não é uma igreja. Não tem um credo. (…) Mas uma série de comentários indignados após o discurso do Prof. Swinburne atribuiu os seus pontos de vista aos cristãos em geral ou à Sociedade de Filósofos Cristãos em particular. Nessas circunstâncias, cabia ao Presidente da SCP, Michael Rea, esclarecer a posição da SCP. (…) Ele lamentou somente a mágoa que a palestra do Prof. Swinburne causou”.

    Para além da mágoa causada, poder-se-ia lamentar igualmente do argumento completamente falacioso que Swinburne apresentou. Neste caso ele terá de repensar melhor as suas ideias e a forma como as apresenta.


    1. Para ver informações sobre este encontro, clique aqui.↩︎
    2. Um exemplo dessas críticas pode ler-se aqui, mas muitas outras críticas foram surgindo em vários murais do facebook de alguns filósofos que participaram nesse encontro.↩︎

    Actualização – 04/10/16:

    • Entretanto o texto e o vídeo da comunicação do Swinburne foram publicados online. O texto pode ser lido aqui e o vídeo pode ser visualizado aqui.
    • O que se pode ver no texto e no vídeo é muito parecido ao argumento que Swinburne apresentou no seu livro Revelation: From Metaphor to Analogy. Aliás, ele começa precisamente a comunicação a dizer que o que vai defender coincide largamente com o capítulo 11 daquele livro. Por isso, as críticas que fiz com base nesse livro podem-se aplicar igualmente ao texto e vídeo de Swinburne entretanto publicados online.