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    Um argumento contra o Princípio da Razão Suficiente

    O Princípio da Razão Suficiente (PRS) é a tese, tipicamente atribuída a Espinoza e Leibniz, de que nada pode ser o caso sem uma causa ou razão suficiente para o ser dessa forma. Assim, de acordo com PRS nenhuma proposição pode ser verdadeira sem uma razão suficiente. Pode-se formalizar esse princípio do seguinte modo:

    • (PRS) Para qualquer proposição P, há uma proposição Q, a que chamamos de razão suficiente para P, tal que o seguinte é o caso: (i) Q é verdadeira, (ii) Qimplica P, i.e., ├ P, e (iii) se P é uma proposição contingente, então não é o caso que ├ P e ├ Q.

    Este princípio PRS é bastante usado em algumas versões do argumento cosmológico para se provar a existência de Deus. Por exemplo: se PRS for um princípio plausível, cada coisa que existe explica-se por um outro ou por si próprio, mas não se explicaria por nada. Assim, todo o ser ou é dependente ou é auto-existe; mas nem todo o ser pode ser dependente, dado que o facto de haver e sempre ter havido seres dependentes requer explicação; logo, existe um ser auto-existente, que se explica por si próprio, i.e. Deus. Além disso, PRS também poderá ser aplicado num argumento a favor do determinismo, tal como aponta Peter van Inwagen no livro An Essay on Free Will (p. 202). No entanto, van Inwagen nesse mesmo livro (p. 203) sugere uma redução ao absurdo contra PRS. O argumento poderá ser formalizado deste modo:

    1. Seja P a conjunção de todas as proposições contingentes verdadeiras. [premissa]
    2. ∴ P é ela mesma uma proposição contingentemente verdadeira. [de 1]
    3. ∴ Há uma proposição verdadeira S que é uma razão suficiente para P. [de 2 e PRS]
    4. Ou S é necessariamente verdadeira ou é contingentemente verdadeira. [premissa]
    5. ∴ Se S é necessária, então P é necessária. [de PRS e necessidade da implicação]
    6. ∴ S não é necessária. [de 2 e 5, por modus tollens]
    7. ∴ S é contingente. [de 4 e 6, por silogismo disjuntivo]
    8. ∴ ├ S. [de 1 e 7]
    9. ∴ ├ P. [de 3 e PRS]
    10. ∴ ├ S ∧ ├ P. [de 8 e 9]
    11. ∴ ¬(├ S ∧ ├ P). [de 3 e PRS]
    12. ∴ ⊥. [de 10 e 11]

    A partir dessa contradição, van Inwagen sustenta que podemos concluir que PRS é falso. E “esse resultado segue-se na medida em que supomos que há uma tal coisa como P – isto é, a conjunção de todas as proposições contingentemente verdadeiras. E há uma coisa como essa se existem quaisquer proposições contingentemente verdadeiras. Portanto, se PRS é verdadeiro, (…) não há distinção a ser feita entre verdade e necessidade”. Esse argumento de van Inwagen é válido, mas será um argumento sólido e cogente? Será plausível defender que há uma conjunção de todas as proposições contingentemente verdadeiras?

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    Paradoxo da Cognoscibilidade e a Doutrina da Encarnação

    Um dos paradoxos mais interessantes em lógica epistémica é o paradoxo da cognoscibilidade. Esse paradoxo resulta da prova de Frederic Fitch (1963) de acordo com a qual um princípio aparentemente modesto da cognoscibilidade (PC), de que cada verdade é em princípio conhecível, implica uma alegação absurda de que somos omnisciente (O), de que de facto sabemos todas as verdades. Ou seja, o paradoxo da cognoscibilidade mostra que se segue da afirmação de que todas as verdades são cognoscíveis que todas as verdades são conhecidas. Ou de um modo mais formal:

    ∀p(p→◊Kp) ├ ∀p(p→Kp)

    prova é relativamente simples:

    (PC) ∀p(p→◊Kp) [princípio da cognoscibilidade]

    (¬O) ∃p(p∧¬Kp) [princípio de que não somos omniscientes]

    (1) ∴ p∧¬Kp [instância de ¬O]

    (2) ∴ (p∧¬Kp)→◊K(p∧¬Kp) [instância de PC, substituindo a linha 1 pela variável p em PC]

    (3) ∴ ◊K(p∧¬Kp) [de 1 e 2, por modus ponens]

    Contudo, pode ser mostrado independentemente que é impossível saber esta última conjunção. Ou seja, a linha 3 é falsa. Para isso considere-se o seguinte:

    (4) K(p∧¬Kp) [suposição para a redução ao absurdo]

    (5) ∴ Kp∧K¬Kp [de 4, dado que o conhecimento de uma conjunção implica o conhecimento dos seus conjuntos]

    (6) ∴ Kp∧¬Kp [de 5, dado que o conhecimento implica verdade (aplicado ao conjunto do lado direito)]

    (7) ∴ ¬K(p∧¬Kp) [de 4 a 6, por redução ao absurdo]

    (8) ∴ □¬K(p∧¬Kp) [de 7, pela regra de necessitação]

    (9) ∴ ¬◊K(p∧¬Kp) [de 8, dado que proposições necessariamente falsas são impossíveis]

    Tal como se pode constatar, a linha 9 contradiz a linha 3. Assim, segue-se de PC e ¬O uma contradição. Por isso, o defensor de PC, de que todas as verdades são cognoscíveis, deve negar ¬O, i.e., negar que não somos omniscientes:

    (10) ∴ ¬∃p(p∧¬Kp)

    E daqui se segue que todas as verdades são efectivamente conhecidas:

    (11) ∴ ∀p(p→Kp)

    Portanto, o defensor de PC, de que todas as verdades são cognoscíveis (ou possíveis de conhecer), é forçado absurdamente a admitir que todas as verdades são conhecidas, i.e., que somos omniscientes.

    Para escapar a essa conclusão absurda em vez de se negar ¬O pode-se negar PC, defendendo-se que não é o caso que todas as verdades sejam cognoscíveis ou possíveis de conhecer. Um dos problemas é que o Cristão tradicional em princípio não poderá enveredar por essa manobra, tal como defendido por Jonathan Kvanvig (2010), dado que entra em conflito com a doutrina da encarnação.

    Para se ver isso, suponha-se que a solução de Thomas Morris (1986) para o puzzle lógico sobre a encarnação é a mais plausível e, do mesmo modo, que a doutrina da encarnação exige que não haja conflito nas propriedades essenciais da divindade e nas propriedades essenciais da humanidade plena. Ora, se Morris tem razão, então uma propriedade essencial de qualquer ser plenamente humano é que todas as verdades são cognoscíveis, ou possíveis de conhecer, para um tal ser. Mas porquê? Isto porque Deus é essencialmente omnisciente; mas a propriedade essencial de ser omnisciente é incompatível com a propriedade essencial de haver verdades incognoscíveis – desse modo, nada poderia ser divino e plenamente humano, tal como Cristo, sem que haja uma propriedade essencial de seres plenamente humanos de que todas as verdades são cognoscíveis por eles. Deste modo, o Cristão tradicional aparentemente não pode escapar ao paradoxo da cognoscibilidade ao negar PC. Como resolver, então, esse paradoxo?

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    Ceticismo sobre o mundo exterior

    Não sabemos que temos duas mãos. Aqui está a prova, em que M é a proposição ‘eu tenho duas mãos’, HC é a proposição descrita por alguma hipótese céptica (como a de que somos enganados por um génio maligno, ou de que somos um cérebro numa cuba, etc), e Ksϕ é a abreviatura de ‘eu sei que ϕ’:

    1. [KsM ∧ Ks(M→¬HC)] → Ks¬HC
    2. Ks(M→¬HC)
    3. ¬Ks¬HC
    4. ∴ ¬[KsM ∧ Ks(M→¬HC)] (de 1 e 3, por modus tollens)
    5. ∴ ¬KsM (de 2 e 4, por silogismo conjuntivo) QED

    Se não queremos aceitar a conclusão ¬KsM, que premissa devemos negar e com que fundamento?

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    Um argumento cosmológico modal

    Richard Gale e Alexander Pruss em 1999, no artigo “A New Cosmological Argument”, formularam um novo argumento cosmológico numa versão modal. Esse novo argumento baseia-se numa série de conceitos e distinções que precisam ser previamente clarificados. Em primeiro lugar, introduz-se um domínio fixo de proposições abstratas. Uma conjunção de proposição abstratas é máxima se, e só se, para cada proposição abstrata p, ou p ou não-p é um conjunto da conjunção. Além disso, um conjunto de proposições abstrata é compossível se, e só se, é conceptualmente ou logicamente possível que todos os conjuntos sejam verdadeiros simultaneamente.

    Em segundo lugar, apresenta-se a seguinte definição de mundo possível: um mundo possível é uma coleção de seres e eventos ou estados de coisas que verifica ou torna verdadeiro todos os conjuntos de alguma conjunção máxima, compossível de proposição abstratas. Essa conjunção é designada de Grande Facto Conjuntivo desse mundo possível. Portanto, o Grande Facto Conjuntivo para um dado mundo possível inclui todas as proposições que seriam verdadeira se esse mundo fosse atualizado ou efetivo; sendo que cada mundo possível tem um e apenas um Grande Facto Conjuntivo. Assim, cada mundo possível é individuado pelo seu Grande Facto Conjuntivo.

    Além disso, o Grande Facto Conjuntivo Contingente de algum mundo possível é a conjunção de todas as proposições contingentes que seriam verdadeiras se esse mundo fosse atual ou efetivo. Daí se segue imediatamente que o Grande Facto Conjuntivo Contingente de um mundo possível é máximo com respeito a proposições abstratas contingentes, sendo este incluído no seu Grande Facto Conjuntivo.

    Em terceiro lugar, com este novo argumento cosmológico procura-se estabelecer que há um ser necessário que de forma intencional trouxe “o universo” à existência. Segundo Gale e Pruss, um universo de um mundo é o que verifica ou torna verdadeiro todos os conjuntos do Grande Facto Conjuntivo Contingente nesse mundo. Deste modo, um universo de um mundo possível é uma parte desse mundo possível.

    Por fim, este novo argumento cosmológico baseia-se numa versão fraca do princípio de Leibniz da razão suficiente. De acordo com esse princípio, cada facto ou cada proposição verdadeira possivelmente tem uma explicação. Ou, por outras palavras, é a alegação de que para cada proposição p, se p é verdadeira, então é possível que exista uma proposição q tal que q explique p. Ou ainda de forma mais rigorosa:

    • (PRSF) Para qualquer proposição, p, e qualquer mundo, w, se p está no Grande Facto Conjuntivo de w, então há algum mundo possível, w1, e proposição, q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1 contém p e q e a proposição que q explica a p.

    Com base nestas distinções e clarificações, já podemos formular o argumento do seguinte modo:

    • 1. Se p1 é o Grande Facto Conjuntivo Contingente de um mundo w1 e p2 é o Grande Facto Conjuntivo Contingente de um mundo w2, e se p1 e p2 são idênticos, então w1 = w2. [Premissa]
    • 2. p é o Grande Facto Conjuntivo Contingente do mundo atual. [Definição]
    • 3. Para qualquer proposição, p’, e qualquer mundo, w, se p’ está no Grande Facto Conjuntivo de w, então há algum mundo possível, w1, e proposição, q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1 contém p’ e q e a proposição que qexplica a p’. [Premissa, (PRSF)]
    • 4. ∴ Se p está no Grande Facto Conjuntivo do mundo atual, então há algum mundo possível, w1, e proposição, q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1contém p e q e a proposição que q explica a p. [De 3]
    • 5. ∴ Há um mundo possível w1 e uma proposição q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1 contém p e q e a proposição que q explica a p. [De 2 e 3, por modus ponens]
    • 6. ∴ w1 = o mundo atual. [De 1, 2, e 5]
    • 7. ∴ Há no mundo atual uma proposição q, tal que o Grande Facto Conjuntivo do mundo atual contém p e q e a proposição que q explica p. [De 5 e 6]
    • 8. q é ou uma explicação pessoal ou q é uma explicação científica. [Premissa]
    • 9. q não é uma explicação científica (dado que todas as leis científicas relevantes estão contidas como conjuntas no explanandum, e as leis não são auto-explicativas). [premissa]
    • 10. ∴ q é uma explicação pessoal. [De 8 e 9, por silogismo disjuntivo]
    • 11. ∴ q reporta a ação intencional de um ser contingente ou q reporta a ação intencional de um ser necessário. [De 10]
    • 12. Não é o caso que q reporte a ação intencional de um ser contingente (dado que um ser contingente não pode produzir a sua própria existência). [Premissa]
    • 13. ∴ q reporta a ação intencional de um ser necessário. [De 11 e 12, por silogismo disjuntivo]
    • 14. ∴ q é uma proposição contingente que reporta a ação intencional de um ser necessário. [De 1, 2, e 13]
    • 15. ∴ q é uma proposição contingente que reporta a ação intencional de um ser necessário que explica a existência do universo no mundo atual (dado que o Grande Facto Conjuntivo Contingente reporta a existência do universo no mundo atual). [De 14]
    • 16. ∴ É contingentemente verdade que há um ser necessário que intencionalmente criou o universo no mundo atual. [De 15] (QED)

    Este argumento é válido. Mas será sólido? Temos alguma boa razão para rejeitar o princípio (PRSF)?

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    Um modelo da Eucaristia filosoficamente inteligível

    Tipicamente no Cristianismo entende-se a Eucaristia como um processo pelo qual Cristo se torna realmente presente nas espécimes do pão e do vinho consagrados. Essa presença de Cristo não é entendida metaforicamente, mas sim como real e objectiva. Esta ideia deu origem a muitos puzzles filosóficos difíceis de resolver: como pode o corpo e sangue de Cristo estar simultaneamente presente em múltiplos e desconexos lugares? Como pode estar Cristo todo presente em cada um dos lugares em que se celebra a Eucaristia? Haverá um modelo filosoficamente consistente e plausível para a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia? Começarei por apresentar o modelo da transubstanciação, como milagre metafísico, e as suas dificuldades. Por fim argumentarei que há um modelo mais simples e inteligível da Eucaristia: o modelo do facto institucional (baseado na ontologia social do filósofo John Searle).

    Começando pelo modelo de Tomás de Aquino, conhecido como modelo da transubstanciação, durante a consagração do pão e vinho ocorrem dois milagres para explicar como Cristo está realmente presente e como persistem as propriedades empíricas do pão e do vinho. O primeiro milagre consiste em substituir os elementos do pão e vinho por Corpo e Sangue de Cristo e o segundo consiste em manter todos os acidentes do pão e do vinho. Ou seja, no acto de consagração a substância muda, mas os acidentes permanecem. Designe-se a essa ocorrência por milagre metafísico, isto é, um evento que altera as características do mundo material sem fazer qualquer diferença empírica.

    O filósofo Alexander Pruss, no artigo “The Eucharist: real presence and real absence” de 2009, concebeu duas formas logicamente possíveis no qual esse modelo da transubstanciação, com o milagre metafísico, pode acomodar a ideia de que Cristo está totalmente localizado em múltiplas regiões que não se cruzam. Uma solução seria Deus deformar o espaço de tal forma que todas as regiões que parecem estar ocupadas pelo pão e vinho consagrados são a mesma região. Neste caso Cristo não está multiplamente localizado uma vez que as regiões do pão e vinho consagrados são de facto uma só região. Alexander Pruss procura defender que é logicamente possível que o espaço esteja dessa forma estruturado por Deus. Mas será que no mundo actual poderia ocorrer isso sem se fazer qualquer mudança empírica à forma como as coisas são? Uma outra solução apresentada por Alexander Pruss é a sugestão mereológica em que se sustenta que é logicamente possível que os objectos ocupem o espaço de diferentes formas, ou melhor, é possível que os objectos estendam as regiões em que estão localizados (tal como os fractais). Ora, Cristo seria um objecto desse tipo, permitindo-se sustentar que Cristo está totalmente localizado em cada região que se está a celebrar a Eucaristia. Contudo, não parece nada intuitivo entender Cristo como um objecto estendido desse tipo.

    Mas será a própria ideia de milagre metafísico possível? Ou seja, será a transubstanciação logicamente possível? Seguindo o filósofo católico Michael Dummett, no artigo “The intelligibility of eucharistic doctrine” publicado em 1987, o modelo da transubstanciação conduz a um dilema: Por um lado, suponha-se que é possível que Deus transforme um objecto de algum tipo F, num objecto de algum outro tipo, G, ao alterar a sua substância-F pela substância-G sem fazer qualquer outra alteração. Ora, nesse caso estamos a utilizar uma noção degenerada de substância que exclui qualquer critério para responder à pergunta “o que é isso?”. Além disso, não é nada claro que Deus possa transformar F em G ao substituir a sua substância-F pela substância-G mas sem haver qualquer mudança microfísica no objecto. Isto porque intuitivamente se uma coisa parece como café, sabe e cheira a café, e é uma réplica microfísica de um café, então estamos diante de um café. Contudo, pelo modelo de Aquino e Pruss é logicamente possível que não seja um café – o que parece muito controverso. Mas, por outro lado, suponha-se que não é possível que Deus transforme F em G ao substituir a substância-F pela substância-G; nesse caso a substância (se há uma tal coisa) não tem qualquer relevância para o problema filosófico em consideração. Por isso, de uma forma ou de outra, este modelo da transubstanciação enfrenta grandes dificuldades.

    Haverá um outro modelo da presença real de Cristo na Eucaristia que seja mais plausível e que não enfrente tantas dificuldades? Com base na ontologia social do filósofo John Searle podemos conceber um modelo minimalista, sem as noções metafisicamente controversas do modelo anterior, e que consegue acomodar a presença real e objectiva de Cristo na Eucaristia. Para isso, pode-se começar por uma ideia muito simples: Quando vamos à nossa carteira buscar uma nota de 5€ temos apenas um pedaço de papel e nada mais? Podemos fazer uma análise química muito rigorosa e só encontramos papel. Mas o que faz com que esse pedaço de papel nos permita comprar um café? Uma resposta plausível será dizer que por causa de convenções institucionais esse pedaço de papel é realmente 5€. Também por causa de convenções similares há realmente coisas que são casamentos, fronteiras geográficas, obras de arte, governos, países, etc, e até (imagine-se!) pode haver uma convenção (instituída por Cristo na última ceia) em que num pedaço de pão estárealmente presente Cristo na Eucaristia, tal como defendem os filósofos cristãos Michael Dummett e Harriet Baber, e que também me parece à primeira vista plausível.

    De acordo com esse modelo, a acção de consagração na Eucaristia é uma acção convencionalmente gerada p.e. de forma análoga ao acto de passar um cheque. Esse passar um cheque ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita convencionalmente (2) por um agente legitimamente credenciado (3) com a intenção de escrever um cheque (4) usando materiais apropriados (5) tal como requerido por convenções institucionais em que um cheque que reúne essas condições torna-se dinheiro. Quando eu passo um cheque para comprar alguma coisa digo verdadeiramente: “Aqui estão os meus 200€!”. Todavia, à luz das melhores investigações em físico-química, um pedaço de papel com números e letras não vale literalmente nada mais do que um pedaço de papel. Ainda assim, dadas certas condições constituídas por particulares convenções sociais e institucionais, uma cheque que alguém passa por 200€ é realmente 200€ (desde que respeite as condições 1-5 e não seja um “cheque em branco”). Por outras palavras, em determinadas circunstâncias o significado de um objecto está para além da sua composição ontológica.

    Quanto à Eucaristia podemos contar uma história muito similar. Ou seja, a Eucaristia e o momento da consagração ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita convencionalmente instituída por Cristo, (2) por um agente legitimamente credenciado pela Igreja, como um sacerdote, (3) com a intenção de fazer o que foi instituído na última ceia (4) usando materiais apropriados, como pão e vinho, especificados pela Igreja (5) tal como requerido por essa convenção instituída por Cristo na última ceia, na quinta-feira santa, em que pão e vinho que reúnem essas condições tornam-se na presença real de Cristo. Assim, na Eucaristia temos a presença do corpo de Cristo qua facto institucional que é similar a outras convenções sociais, tal como casamento, dinheiro, países, governos, etc. Até um ateu pode aceitar sem grandes problemas este modelo da Eucaristia.

    É verdade que Jesus Cristo poderia ter escolhido outro tipo de matéria para constituir a presença real de Cristo na Eucaristia. Todavia, o pão e o vinho são os elementos da Eucaristia porque ele declarou que seriam esses elementos. Do mesmo modo, o governo de Portugal ou a Comissão Europeia poderiam ter declarado que as conchas e as penas de águia como veículo para as transacções financeiras. Mas não o fizeram. Pelo contrário as moedas e notas específicas contam como dinheiro porque um dado governo declarou-as como dinheiro. Algo similar pode ocorrer com a Eucaristia: Cristo declarou o pão e vinho em circunstâncias apropriadas como a sua presença real. Portanto, na Eucaristia o pão e vinho contam como presença real de Cristo em virtude da sua própria declaração na última ceia na quinta-feira santa. E essa ideia de que factos institucionais são criados por declarações está bem defendido p.e. pelo filósofo John Searle no livro Making the social world (de 2009).

    Além disso, penso que um modelo de “convenção institucional” que estamos a expor capta bem a ideia das passagem bíblicas da última ceia, p.e. em Lucas (22, 19-20), sem recorrer a noções metafísicas mais sofisticadas e possivelmente mais controversas. Afinal por que razão o acto de consagração na Eucaristia não poderá ser uma acção convencionalmente gerada com raiz na última ceia e instituída por Cristo? Por que razão não pode a presença real do corpo de Cristo qua facto institucional ser similar a muitas outras convenções sociais? Por que razão não se pode conceber a consagração como uma acção convencionalmente gerada que induz uma mera mudança Cambridge nos elementos da Eucaristia? É verdade que, de acordo com o filósofo católico Peter Geach (1969, p. 71), uma mera mudança Cambridge não é real no sentido que não envolve qualquer mudança nas propriedades intrínsecas dos objectos em que elas ocorrem. Por exemplo, a Xantipa casada é microfisicamente igual à Xantipa viúva; do mesmo modo a hóstia não-consagrada é microfisicamente igual à hóstia consagrada na Eucaristia. Mas, ainda assim, há um sentido em que tais mudanças são reais na medida em que não são meramente subjectivas nem dependem de estados psicológicos. Então, por que razão não pode haver na Eucaristia uma mera mudança Cambridge nas propriedades do pão e do vinho? Isso é bem possível e plausível.

    Pode suceder que um pessoa de uma tribo desconhecida venha ao mundo ocidental e não consiga identificar uma fronteira geográfica convencional, como um país ou uma cidade. Também posso deparar-me com duas pessoas e não saber se elas são casadas ou não. Para saber se elas são casadas precisava de saber se aquelas pessoas realizaram ou não um casamento válido. Por que razão o mesmo não se pode passar com a Eucaristia? Sim, se encontrarmos uma hóstia perdida, não conseguimos dizer se é hóstia-hóstia ou hóstia-presença-real-de-Cristo. Tudo bem! Mas quando me deparo com duas pessoas desconhecidas aos beijos também não sei se são casadas ou não. Não parece haver problema nisso. Como disse: tipicamente nos factos institucionais há uma mera mudança Cambridge (p.e. com respeito a uma pessoa casada ou viúva não iremos encontrar qualquer alteração nas propriedades intrínsecas, mas ainda assim são realidades diferentes). Por que razão não pode haver também uma mudança Cambridge no pão e vinho durante a consagração na Eucaristia?

    É importante salientar que com este modelo filosófico da Eucaristia não estou a dizer que o corpo de Cristo, no seu sentido mais literal do termo, é uma convenção social. Aliás, dado o cristianismo, Jesus Cristo não passou a existir na medida em que um conjunto vasto de pessoas convergiram em estabelecer que ele tinha um corpo. Contudo, o que estou a tentar defender é uma tese diferente. O que estou a defender é o seguinte: a presença de Cristo na Eucaristia, nos elementos do pão e do vinho, é um facto institucional que se obtém em virtude da sua instituição na última ceia pela declaração (para usar o termo de Searle) do próprio Cristo. E isso é um evento novo que não ocorria antes dessa declaração. Ou seja, só passou a haver presença de Cristo na Eucaristia nos elementos do pão e do vinho depois dessa convenção institucional. Assim, tal como o dinheiro “não existia antes da tal convenção social”, também podemos afirmar que a presença de Cristo nos elementos do pão e do vinho não existia antes da tal convenção institucional da Eucaristia. Assim parece que a analogia corre sem problemas.

    Com esta argumentação, se for plausível, temos um modelo filosoficamente inteligível da Eucaristia e evitamos compromissos com teorias metafísicas muito controversas. O objectivo é ter um modelo filosófica e religiosamente adequado, bem como ontologicamente minimalista. Mas será isto plausível?


    Agradecimentos: estou grato ao António Rodrigues Gomes por me provocar a tratar filosoficamente deste problema da Eucaristia. Também estou muito grato ao Ludwig Krippahl e ao Aires Almeida por me apresentarem algumas objecções que me permitiram clarificar e refinar melhor o modelo da Eucaristia como facto institucional que aqui defendo. Para um “estado da arte” sobre as teorias e modelos mais contemporâneos da Eucaristia vale a pena ler o artigo “Recent Philosophical Work on the Doctrine of the Eucharist”, publicado em 2016 na revista Philosophy Compass, do filósofo James Arcadi.