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    O Problema do Livre-Arbítrio aplicado à Encarnação

    A doutrina da encarnação de Deus levanta várias questões filosóficas interessantes. Em anos anteriores já tratamos puzzles sobre a consistência interna desta doutrina, sobre se pode ou não haver múltiplas encarnações, sobre se há boas razões para haver encarnação. Neste ano queremos analisar as relações entre a encarnação e o livre-arbítrio. Nomeadamente pretendemos examinar se, dada a verdade da cristologia tradicional, faz sentido dizer que Cristo tem livre-arbítrio (ou livre-arbítrio enquanto humano).

    De acordo com a cristologia tradicional, com raízes no primeiro Concílio de Niceia (no ano de 325), considera-se que Jesus Cristo tem duas naturezas e, por conseguinte, duas vontades: uma vontade divina e uma vontade humana. Esta ideia de que Cristo tem tanto uma vontade divina como humana foi claramente defendida no terceiro Concílio de Constantinopla. Além disso, nesse mesmo Concílio foi defendida a ideia de que a vontade humana de Cristo sujeita-se, não resistindo nem lutando, à sua vontade divina e omnipotente. Mas essa ideia pode originar duas questões filosóficas pertinentes: a vontade humana de Cristo pode ser realmente livre? Por outras palavras, pode Cristo ter um livre-arbítrio genuíno em relação à sua vontade humana? Se sim, como explicar isso?

    Antes de avançar com respostas para esse problema é necessário esclarecer o que se entende por livre-arbítrio. Seguindo a sugestão de um dos principais filósofos influentes no debate sobre o problema do livre-arbítrio, Peter van Inwagen (2008: 329), pode-se definir “livre-arbítrio” como a habilidade de agir de outra forma, ou seja, ter a capacidade de escolher agir de um modo diferente daquele que agimos. Neste sentido, possuir livre-arbítrio consiste em ter possibilidades alternativas. Daí van Inwagen defender o Princípio das Possibilidades Alternativas (PPA) nos seguintes termos:

    Temos livre-arbítrio (no sentido relevante para a responsabilidade moral) só se pudermos escolher agir de modo diferente daquele que agimos.

    Aqui estamos igualmente a supor que o livre-arbítrio é incompatível como o determinismo. Mas será que o Cristo encarnado, na sua natureza humana, tem este tipo de livre-arbítrio? Na cristologia tradicional tipicamente defende-se que Cristo tem livre-arbítrio com respeito à sua vontade humana. Isto porque advoga-se que Cristo, dada a encarnação, era como nós meros humanos em todos os sentidos (menos no pecado). Ora, se em geral a vontade humana é livre, assim também a vontade humana de Cristo. Contudo, pode-se construir um argumento em que se mostra que há um conflito entre as seguintes teses que tipicamente os Cristãos aceitam:

    • Tese da cristologia tradicional (TCT): A vontade humana de Cristo foi sujeita à vontade divina e seguiu a vontade divina em todas as coisas sem se esforçar ou resistir.
    • Tese da liberdade humana (TLH): Cristo, em virtude da sua assumida vontade humana, tem livre-arbítrio.

    Tendo em conta essas teses podemos construir o seguinte argumento na forma de uma redução ao absurdo:

    1. Suponha-se que a conjunção de TCT e TLH é verdadeira. [Suposição da reductio]
    2. Para quaisquer duas vontades, x e y, se y for submetida a x e segue x em todas as coisas sem se esforçar ou resistir, então y não tem livre-arbítrio (no sentido relevante do princípio das possibilidade alternativas [PPA]). [Premissa]
    3. ∴ A vontade humana de Cristo não tem livre-arbítrio (no sentido relevante do PPA). [De 2 e TCT]
    4. Se Cristo, em virtude da sua assumida vontade humana, tem livre-arbítrio, então a vontade humana de Cristo tem livre-arbítrio (no sentido relevante do PPA). [Premissa]
    5. ∴ É falso que Cristo, em virtude da sua assumida vontade humana, tem livre-arbítrio. [De 3 e 4]
    6. ∴ Contradição! (Em 5 e TLH).
    7. ∴ A conjunção de TCT e TLH é falsa. [De 1-6, por redução ao absurdo]

    O argumento para a conclusão 7 é formalmente válido. Assim, se o Cristão apologista da premissa 1 deseja evitar a contradição, deve rejeitar a verdade de pelo menos uma premissa. Mas qual?

    Um dos aspetos que se poderá criticar neste argumento é precisamente a suposição de que o livre-arbítrio deve ser entendido de acordo com o PPA. Com base no artigo Responsabilidade Moral e o Princípio das Possibilidades Alternativas de Harry Frankfurt podemos conceber uma engenhosa experiência mental que constitui um contraexemplo ao PPA. Este tipo de experiência mental ficou conhecido como casos de Frankfurt. Num típico Caso de Frankfurt existe uma circunstância C tal que: (i) um agente, A, toma uma determinada decisão D; (ii) se A não decidir D, por si mesmo, Centra em ação e força A a decidir D; e (iii) C em nada contribui para que A decida D. Considerando esta estrutura, podemos imaginar o seguinte caso:

    Black é o chefe de uma poderosa organização criminosa e Jones é um dos mais eficientes assassinos dessa organização. Black quer matar o Presidente e sabe que Jones é a pessoa certa para o trabalho. No entanto, existem rumores de que Jones quer abandonar a profissão, razão pela qual o seu compromisso com a organização é incerto. Nesse momento, Black recorda-se de uma das invenções mais recentes dos cientistas da sua organização – o neuroscópio. O neuroscópio é um aparelho que, uma vez introduzido no cérebro de uma pessoa, permite vigiar e controlar os seus estados cerebrais. Black apercebe-se que o neuroscópio lhe permite resolver dois problemas de uma só vez. Se implantar secretamente o neuroscópio no cérebro de Jones, ficará a saber se este continua a ser um dos seus fiéis assassinos – pode acontecer que ele decida, por si mesmo, matar o Presidente, sem que seja necessária a intervenção do neuroscópio – ao mesmo tempo, que se certifica de que Jones cumpre a sua missão e mata o Presidente – porque se o neuroscópio detetar qualquer indício de que ele não o vai fazer, entra em ação e força-o a decidir nesse sentido.

    Imaginemos, agora, que no mundo atual Jones decide pelos seus próprios motivos matar o Presidente. Nesse caso temos um situação em que existe uma circunstância em que: (i) Jones toma, por si mesmo, a decisão de matar o Presidente; (ii) se Jones não decidisse, por si mesmo, matar o Presidente, o neuroscópio entraria em ação e forçaria Jones a tomar essa decisão; e (iii) a presença do neuroscópio no cérebro de Jones em nada contribui para a sua decisão de matar o Presidente. Neste caso parece intuitivo que Jones é moralmente responsável pela morte do presidente e, assim, podemos dizer que agente tem livre-arbítrio ainda que não tenha possibilidades alternativas. Ora, isto dá razões para acreditar que o PPA é falso, pois podemos ter livre-arbítrio (no sentido relevante para a responsabilidade moral), ainda que não possamos escolher agir de modo diferente daquele que agimos. De forma similar, Cristo encarnado, em virtude da sua assumida vontade humana, pode ter livre-arbítrio ainda que não tenha possibilidades alternativas e, dessa forma, evitamos a contradição entre TCT e TLH.

    Mas, se existirem boas objeções para a proposta compatibilista de Frankfurt (como as apresentadas por David Widerker, Robert Kane e Carl Ginet), haverá outras formas de evitar a contradição entre TCT e TLH supondo que PPA é verdadeiro? A discussão fica em aberto. Um Santo e Feliz Natal!

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    Haverá boas razões para se aceitar a doutrina da Imaculada Conceição?

    Hoje é feriado, não um feriado qualquer, mas sim um feriado para se celebrar a Imaculada Conceição. Mas haverá boas razões para se aceitar e levar a sério essa doutrina da Imaculada Conceição que, por vezes, contemporaneamente é tão ridicularizada? Vale a pena recordar que essa doutrina, que advoga que Maria – a mãe de Jesus Cristo – nasceu e viveu sem pecado original (i.e. sem inclinações desordenadas ou imorais), foi instituída como dogma ex cathedra pelo Papa Pio IX em 8 de dezembro de 1854 (com o documento Ineffabilis Deus).

    Apesar de existir uma proclamação formal desta doutrina como dogma de fé, é importante salientar que existiu e ainda existe um longo debate controverso no cristianismo em relação à doutrina da Imaculada Conceição e os argumentos estão longe de ser consensuais (e ainda bem!). Nas origens desse debate temos, por um lado, Tomás de Aquino a apresentar argumentos contra a doutrina da Imaculada Conceição, pois tal doutrina sugere que Maria não precisa de ser redimida por Cristo (ameaçando a universalidade da redenção de Cristo) e, por outro lado, Duns Escoto (e outros franciscanos) construindo argumentos a favor desta doutrina e defendendo que tal doutrina não nega a universalidade da redenção. Curiosamente os argumentos da tradição de Duns Escoto receberam gradualmente uma maior aceitação pela Igreja Católica do que os de Tomás de Aquino.

    Mas que razões então existem para se acreditar na Imaculada Conceição? As razões tradicionais, na linha da tradição de Duns Escoto, prendem-se com a ideia de que uma das condições necessárias para se dar à luz um indivíduo sem pecado ou até filho de Deus é que a própria mãe não tenha qualquer mácula ou pecado original; daí Maria, para poder ser a mãe de Deus, não pode herdar o pecado original, sendo assim a “Imaculada Conceição” (i.e. nascida sem pecado original). Esta via tradicional foi questionada por vários filósofos e teólogos. A título de exemplo, Karl Barth procura argumentar que mesmo Jesus, para ser totalmente homem, herda a natureza pecaminosa que o resto de nós possui.

    Porém, quero aqui explorar uma outra possível linha argumentativa ligeiramente diferente da tradicional a favor da doutrina da Imaculada Conceição, com inspiração no filósofo Jack Mulder. Esta via argumentativa procura defender que se o cristianismo é verdadeiro, então é necessário que Maria, a mãe de Jesus, seja concebida imaculada de forma a dar um completo consentimento livre à Encarnação. Assim, dado o cristianismo, o argumento pode ser explicitamente formulado desta forma:

    1. Se Deus deseja fecundar uma mulher, então Ele fará tudo o que for necessário, removendo qualquer impedimento, para que tal mulher exerça um completo consentimento livre para dar à luz o Filho de Deus (caso contrário Deus seria um violador – o que seria contraditório com a sua perfeição moral).
    2. Deus deseja fecundar a Virgem Maria para a salvação do mundo.
    3. Portanto, Deus fará tudo o que for necessário, removendo qualquer impedimento, para a Virgem Maria exercer um completo consentimento livre para dar à luz o Filho de Deus. [de 1 e 2]
    4. Contudo, se Maria herda o pecado original, então isso impede-a de exercer um completo consentimento livre para dar à luz o Filho de Deus.
    5. Logo, Maria não herda o pecado original; ou seja, ela é a Imaculada Conceição. [de 3 e 4]

    Este argumento é válido; caso seja igualmente sólido e cogente, podemos aceitar racionalmente a condicional de que se o cristianismo for verdadeiro, então Maria é a Imaculada Conceição. As premissas que exigem mais fundamentação são a (2) e a (4). Quanto à premissa (2) já avaliei neste blog algumas razões para se aceitar essa premissa. Mas que razões podemos ter para aceitar (4)? Aqui a ideia a defender é que a herança de inclinações desordenadas (ou seja, o pecado original e a tendência para o mal) é suficiente para ameaçar um completo consentimento livre de Maria. Mas porquê?

    Para avançar com uma resposta positiva podemos oferecer uma experiência de pensamento. Considere-se que um agente hipotético, Marta, é um ser humano comum que herda e é infetado pelo pecado original (tal como defendido na cosmovisão cristã tradicional). Suponha-se igualmente que Marta é confrontada com algo semelhante à Anunciação, com a proposta de se tornar a mãe do Filho de Deus. O que fará ela nessa situação? Não estando livre do pecado original, é possível que a ação dela de consentimento seja de alguma forma guiada por interesses ou por medos, e não seja a expressão de um ato completamente livre. Ela poderá pensar em algo como o seguinte: “é melhor eu consentir pois conheço bem a forma como a fúria de Deus tem sido descarregada para com os rebeldes no passado” ou “é melhor eu aceitar a proposta, caso contrário poderei sofrer com consequências adversas da sua rejeição”. É duvidoso que um indivíduo com inclinações desordenadas tenha um completo consentimento livre pelas razões corretas. Ou seja, a deliberação ou consentimento não estará livre de alguma espécie e grau de coerção, tal como se afirma na premissa (4). Ora, no caso da Virgem Maria, para não haver esses problemas de coerção no consentimento, é possível que Deus faça tudo o que estiver ao seu dispor para que Maria não herde o pecado original ou as inclinações desordenadas, sendo dessa forma Imaculada Conceição.

    Será esta linha de argumentação plausível? Pretendo realçar uma limitação central a este argumento que tem a ver com a conceção de pecado original como herança (que tem origem em Santo Agostinho). A ideia de Agostinho é que a humanidade foi criada por Deus como um produto completo ou perfeito que seria corrompida pelo pecado, sendo esse pecado original herdado de geração em geração. Contudo, há uma tradição rival com raízes em Santo Ireneu que entende o pecado original de forma completamente diferente. De acordo com essa tradição baseada em Ireneu entende-se a humanidade criada por Deus não como um produto completo ou perfeito, mas sim como uma natureza imatura que precisa de se desenvolver gradualmente de forma livre e genuína, sendo o pecado (ou seja, o mal moral) uma consequência ou subproduto desse desenvolvimento gradual. Ora, nesta última perspetiva o pecado original não é algo que se herda e, dessa forma, a presente linha argumentativa a favor da conceção original perde a sua força. Mas será a tradição de Ireneu sobre o pecado original mais plausível do que a de Agostinho? Na minha tese de doutoramento (ver aqui), na secção 8.2.2.2, defendo que os dados das atuais Ciências Cognitivas da Religião favorecem a aceitabilidade da tradição de Ireneu em vez da tradição de Agostinho.

    Haverá outras limitações para este argumento? Haverá forma de ultrapassar essas limitações? Será possível conceber outras vias argumentativas a favor da Imaculada Conceição que sejam mais plausíveis? O debate filosófico e teológico continua… Bom feriado!

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    Quadrado da Oposição e o problema dos Termos Vazios

    No novo documento sobre as Aprendizagens Essenciais de Filosofia para o Ensino Secundário, um dos tópicos iniciais é a lecionação do quadrado da oposição, mais especificamente pretende-se que os alunos apliquem o quadrado de oposição à negação de teses. Todavia, dado que o quadrado da oposição pode ser alvo de algumas disputas e confusões, vale a pena fazer alguns esclarecimentos.

    O quadrado da oposição, que é uma tentativa de formalizar o que Aristóteles descreve em De Interpretatione (§7), consiste numa coleção de relações lógicas de proposições assertóricas tradicionalmente representadas num diagrama em formato quadrado. Nomeadamente, com o quadrado da oposição visa-se dar conta das relações lógicas das seguintes quatro proposições assertóricas:

    TipoFormaNome
    ATodo S é PUniversal Afirmativa
    ENenhum S é PUniversal Negativa
    IAlguns S é PParticular Afirmativa
    OAlgum S não é PParticular Negativa

    O diagrama para o tradicional quadrado da oposição é o seguinte:

    Resumindo este quadro, os pares de tipo de proposição {A,O}, {O,A}, {E,I}, {I,E} são entre si contraditórios. Os pares do tipo de proposição {A,E}, {E,A} são entre si contrários. Os pares de tipo de proposição {I,O}, {O,I} são entre si subcontrários. Por fim, a proposição de tipo I é uma subalterna da proposição de tipo A, e a proposição de tipo O é uma subalterna da proposição de tipo E. Essas relações são explicadas com as seguintes definições:

    • Duas proposições são contraditórias =df não podem ser ambas verdadeiras nem podem ser ambas falsas.
    • Duas proposições são contrárias =df não podem ser ambas verdadeiras, mas podem ser ambas falsas.
    • Duas proposições são subcontrárias =df não podem ser ambas falsas, mas podem ser ambas verdadeiras.
    • Uma proposição é subalterna de uma outra =df a proposição subalterna deve ser verdadeira se a superalterna é verdadeira, e a superalterna deve ser falsa se a subalterna é falsa.

    Contudo, alguns filósofos defendem que este quadrado da oposição é inconsistente, nomeadamente quando se pensa em termos vazios no lugar do sujeito. Por exemplo, Peter Geach no artigo “Subject and predicate” (publicado na revista Mind em 1950) defende o seguinte:

    Se ‘S’ é um pseudo-nome como ‘dragão’ ou ‘quadrado redondo’, e não nomeia nada, nenhuma das quatro formas aristotélicas tem um valor de verdade e, assim, o ‘quadrado da oposição’ torna-se não apenas inválido mas também inaplicável (p. 480).

    O lógico polaco Lukasiewicz no livro Aristotle’s Syllogistic, publicado em 1957, defende algo similar ao sustentar na página 4 que “ao construir a sua lógica, Aristóteles não deu conta de termos singulares nem dos vazios”. Mas afinal qual é o argumento para sustentar a tese de que o quadrado da oposição não consegue lidar com termos vazios? O filósofo William Kneale, no livro The Development of Logic de 1962 (pp. 55-60), apresenta o seguinte argumento simples: suponha-se que ‘S’ é um termo vazio e, por isso, ‘S’ não é verdadeiro de coisa alguma. Então, a proposição do tipo I ‘Algum S é P’ é falsa. Mas, assim, a sua contraditória do tipo E ‘Nenhum S é P’ deve ser verdadeira. Por sua vez, a sua subalterna do tipo O ‘Algum S não é P’ deve ser verdadeira. Mas isso é incorreto, uma vez que não há qualquer S.

    Talvez seja por causa dessas razões que o professor Aires Almeida escreveu, num recente e bom documento publicado a propósito das novas Aprendizagens Essenciais de Filosofia (ver aqui), que o quadrado da oposição “foi originalmente pensado para referir coisas que realmente existem. Assim, o quadrado da oposição funciona (…) apenas porque não tem em conta termos vazios como ‘marcianos’, ‘sereias’, ‘lobisomens’, ‘pessoas com mais de 3 metros de altura’, etc”.

    Mas será plausível afirmar que o quadrado da oposição não funciona com termos vazios? Muitos filósofos contemporâneos procuram argumentar que o quadrado da oposição lida bem com os termos vazios e que se consegue uma interpretação consistente que preserva todas as relações lógicas do quadrado. Seguindo as melhores interpretação da teoria aristotélica, a partir de filósofos como Moody (em Truth and Consequence in Mediaeval Logic de 1953), Prior (em Formal Logic de 1962), Parsons (em Things that are right with the traditional square of opposition de 2008), Read (em Aristotle and Lukasiewicz on Existential Import de 2015), entre outros, pode-se salientar que o cerne da questão está na interpretação das proposições do tipo A e do tipo O. A ideia fundamental é que para Aristóteles as proposições do tipo A têm implicação existencial, enquanto que as do tipo O não têm tal implicação existencial. Ora, tendo em conta esse pormenor, consegue-se ter uma leitura consistente do quadrado da oposição que pode incluir sem problema os termos vazios. Nessa interpretação, as quatro proposições assertóricas são entendidas desta forma:

    • Tipo A = ∀x(Sx → Px)  ∧  ∃xSx
    • Tipo E = ∀x(Sx → ¬Px)
    • Tipo I = ∃x(Sx ∧ Px)
    • Tipo O = ∃x(Sx ∧ ¬Px)  ∨  ¬∃xSx

    Mas será esta uma fiável interpretação das proposições assertóricas aristotélicas? Stephen Read (2015) apresenta vários indícios de que há uma base textual para essa interpretação e para se concluir que, de acordo com Aristóteles, as proposições do tipo O ‘Algum S não é P’ não implicam que exista de facto um S. Ora, se isto for correto, temos uma forma de encarar o quadrado tradicional da oposição como sendo consistente e apropriado para lidar com termos vazios. Para além da proposta de Read, há muitas outras tentativas para tornar o quadrado da oposição consistente, como a solução apresentada por Marko Malink no livro Aristotle’s Modal Syllogistic de 2013, ao sugerir uma interpretação heterodoxa do dictum de omni et nullo e do dictum aliquo et aliquo non. De qualquer forma, não me parece apropriado afirmar sem qualquer argumento, como se fosse amplamente consensual, que “o quadrado da oposição funciona (…) apenas porque não tem em conta termos vazios”. O mais sensato será dizer que esse problema permanece em aberto e reconhecer que atualmente existem boas tentativas para tornar o quadrado tradicional da oposição consistente com os termos vazios.

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    Um argumento contra o Princípio da Razão Suficiente

    O Princípio da Razão Suficiente (PRS) é a tese, tipicamente atribuída a Espinoza e Leibniz, de que nada pode ser o caso sem uma causa ou razão suficiente para o ser dessa forma. Assim, de acordo com PRS nenhuma proposição pode ser verdadeira sem uma razão suficiente. Pode-se formalizar esse princípio do seguinte modo:

    • (PRS) Para qualquer proposição P, há uma proposição Q, a que chamamos de razão suficiente para P, tal que o seguinte é o caso: (i) Q é verdadeira, (ii) Qimplica P, i.e., ├ P, e (iii) se P é uma proposição contingente, então não é o caso que ├ P e ├ Q.

    Este princípio PRS é bastante usado em algumas versões do argumento cosmológico para se provar a existência de Deus. Por exemplo: se PRS for um princípio plausível, cada coisa que existe explica-se por um outro ou por si próprio, mas não se explicaria por nada. Assim, todo o ser ou é dependente ou é auto-existe; mas nem todo o ser pode ser dependente, dado que o facto de haver e sempre ter havido seres dependentes requer explicação; logo, existe um ser auto-existente, que se explica por si próprio, i.e. Deus. Além disso, PRS também poderá ser aplicado num argumento a favor do determinismo, tal como aponta Peter van Inwagen no livro An Essay on Free Will (p. 202). No entanto, van Inwagen nesse mesmo livro (p. 203) sugere uma redução ao absurdo contra PRS. O argumento poderá ser formalizado deste modo:

    1. Seja P a conjunção de todas as proposições contingentes verdadeiras. [premissa]
    2. ∴ P é ela mesma uma proposição contingentemente verdadeira. [de 1]
    3. ∴ Há uma proposição verdadeira S que é uma razão suficiente para P. [de 2 e PRS]
    4. Ou S é necessariamente verdadeira ou é contingentemente verdadeira. [premissa]
    5. ∴ Se S é necessária, então P é necessária. [de PRS e necessidade da implicação]
    6. ∴ S não é necessária. [de 2 e 5, por modus tollens]
    7. ∴ S é contingente. [de 4 e 6, por silogismo disjuntivo]
    8. ∴ ├ S. [de 1 e 7]
    9. ∴ ├ P. [de 3 e PRS]
    10. ∴ ├ S ∧ ├ P. [de 8 e 9]
    11. ∴ ¬(├ S ∧ ├ P). [de 3 e PRS]
    12. ∴ ⊥. [de 10 e 11]

    A partir dessa contradição, van Inwagen sustenta que podemos concluir que PRS é falso. E “esse resultado segue-se na medida em que supomos que há uma tal coisa como P – isto é, a conjunção de todas as proposições contingentemente verdadeiras. E há uma coisa como essa se existem quaisquer proposições contingentemente verdadeiras. Portanto, se PRS é verdadeiro, (…) não há distinção a ser feita entre verdade e necessidade”. Esse argumento de van Inwagen é válido, mas será um argumento sólido e cogente? Será plausível defender que há uma conjunção de todas as proposições contingentemente verdadeiras?

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    Paradoxo da Cognoscibilidade e a Doutrina da Encarnação

    Um dos paradoxos mais interessantes em lógica epistémica é o paradoxo da cognoscibilidade. Esse paradoxo resulta da prova de Frederic Fitch (1963) de acordo com a qual um princípio aparentemente modesto da cognoscibilidade (PC), de que cada verdade é em princípio conhecível, implica uma alegação absurda de que somos omnisciente (O), de que de facto sabemos todas as verdades. Ou seja, o paradoxo da cognoscibilidade mostra que se segue da afirmação de que todas as verdades são cognoscíveis que todas as verdades são conhecidas. Ou de um modo mais formal:

    ∀p(p→◊Kp) ├ ∀p(p→Kp)

    prova é relativamente simples:

    (PC) ∀p(p→◊Kp) [princípio da cognoscibilidade]

    (¬O) ∃p(p∧¬Kp) [princípio de que não somos omniscientes]

    (1) ∴ p∧¬Kp [instância de ¬O]

    (2) ∴ (p∧¬Kp)→◊K(p∧¬Kp) [instância de PC, substituindo a linha 1 pela variável p em PC]

    (3) ∴ ◊K(p∧¬Kp) [de 1 e 2, por modus ponens]

    Contudo, pode ser mostrado independentemente que é impossível saber esta última conjunção. Ou seja, a linha 3 é falsa. Para isso considere-se o seguinte:

    (4) K(p∧¬Kp) [suposição para a redução ao absurdo]

    (5) ∴ Kp∧K¬Kp [de 4, dado que o conhecimento de uma conjunção implica o conhecimento dos seus conjuntos]

    (6) ∴ Kp∧¬Kp [de 5, dado que o conhecimento implica verdade (aplicado ao conjunto do lado direito)]

    (7) ∴ ¬K(p∧¬Kp) [de 4 a 6, por redução ao absurdo]

    (8) ∴ □¬K(p∧¬Kp) [de 7, pela regra de necessitação]

    (9) ∴ ¬◊K(p∧¬Kp) [de 8, dado que proposições necessariamente falsas são impossíveis]

    Tal como se pode constatar, a linha 9 contradiz a linha 3. Assim, segue-se de PC e ¬O uma contradição. Por isso, o defensor de PC, de que todas as verdades são cognoscíveis, deve negar ¬O, i.e., negar que não somos omniscientes:

    (10) ∴ ¬∃p(p∧¬Kp)

    E daqui se segue que todas as verdades são efectivamente conhecidas:

    (11) ∴ ∀p(p→Kp)

    Portanto, o defensor de PC, de que todas as verdades são cognoscíveis (ou possíveis de conhecer), é forçado absurdamente a admitir que todas as verdades são conhecidas, i.e., que somos omniscientes.

    Para escapar a essa conclusão absurda em vez de se negar ¬O pode-se negar PC, defendendo-se que não é o caso que todas as verdades sejam cognoscíveis ou possíveis de conhecer. Um dos problemas é que o Cristão tradicional em princípio não poderá enveredar por essa manobra, tal como defendido por Jonathan Kvanvig (2010), dado que entra em conflito com a doutrina da encarnação.

    Para se ver isso, suponha-se que a solução de Thomas Morris (1986) para o puzzle lógico sobre a encarnação é a mais plausível e, do mesmo modo, que a doutrina da encarnação exige que não haja conflito nas propriedades essenciais da divindade e nas propriedades essenciais da humanidade plena. Ora, se Morris tem razão, então uma propriedade essencial de qualquer ser plenamente humano é que todas as verdades são cognoscíveis, ou possíveis de conhecer, para um tal ser. Mas porquê? Isto porque Deus é essencialmente omnisciente; mas a propriedade essencial de ser omnisciente é incompatível com a propriedade essencial de haver verdades incognoscíveis – desse modo, nada poderia ser divino e plenamente humano, tal como Cristo, sem que haja uma propriedade essencial de seres plenamente humanos de que todas as verdades são cognoscíveis por eles. Deste modo, o Cristão tradicional aparentemente não pode escapar ao paradoxo da cognoscibilidade ao negar PC. Como resolver, então, esse paradoxo?