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  • Domingos Faria Avatar

    O Desacordo e a Racionalidade do Teísmo

    Podemos notar que as várias religiões sustentam frequentemente perspetivas contraditórias. Essa observação gera um problema quando se pensa sobre a racionalidade da crença religiosa: poderá uma crença religiosa ser racional para aqueles que estão cientes deste desacordo generalizado entre religiões? Será que o conhecimento de várias comunidades religiosas que sustentam crenças incompatíveis enfraquece a racionalidade das crenças religiosas em geral? Para respondermos a este problema propomos investigar a mais recente literatura sobre a Epistemologia do Desacordo e analisar as consequências dessa investigação para a racionalidade das crenças religiosas.

    Introdução à epistemologia do desacordo

    As pessoas discordam de praticamente qualquer assunto (quer seja política, religião, moralidade, questões de facto, questões de gosto, etc). Esse desacordo acontece igualmente entre pares epistémicos; ou seja, interlocutores que estão igualmente familiarizados com os dados ou evidências relevantes e são igualmente inteligentes, talentosos, racionais, etc. A este propósito, Richard Feldman e Ted Warfield (2010: 1) salientam que:

    O desacordo é comum. Dois peritos em meteorologia não concordam com a previsão do fim de semana. Dois economistas igualmente bem informados não concordam com o movimento mais provável nas taxas de juros. Dois jogadores de xadrez com o mesmo ranking não concordam se as «brancas» estão em melhor posição num dado tabuleiro. Os exemplos disponíveis são ilimitados e variam largamente em quase todos os aspetos da vida.

    Como lidar com o desacordo? O fenómeno do desacordo levanta várias questões epistémicas: quando confrontados com um desacordo com um par epistémico, será que devemos manter as nossas crenças ou, pelo contrário, devemos revê-las ou até abandoná-las? Não cairemos em ceticismo radical se abandonarmos as nossas crenças sempre que elas forem contestadas por algum dos nossos pares? O que devemos nós racionalmente fazer quando nos encontramos numa situação desacordo epistémico entre pares? Em síntese, o desacordo levanta os seguinte problemas filosóficos:

    1. Devemos diminuir o grau de confiança que temos na nossa crença?
    2. Devemos suspender o juízo por inteiro, dado que um par epistémico está em desacordo connosco?
    3. Ou devemos, pelo contrário, manter o grau de crença que tínhamos antes de sermos confrontados com uma opinião divergente?

    Como resposta a esses problemas existem duas teorias principais na literatura filosófica. Por um lado, temos as teorias conciliatórias, em que filósofos como Christensen (2007), Feldman (2006), Elga (2007) e Kornblith (2010) argumentam que, quando discordamos de um par epistémico, devemos estar dispostos a rever (ou talvez abandonar) as nossas crenças relevantes – por outras palavras, não querer rever as nossas crenças e ignorar as opiniões divergentes de nossos pares parece profundamente dogmático e arrogante. Por outro lado, quanto às teorias inflexíveis, temos filósofos como Foley (2001), Kelly (2005), Wedgewood (2007) e Peter van Inwagen (2010) que argumentam que, quando confrontados com o desacordo entre pares, há momentos em que devemos estar dispostos a manter a nossa posição epistémica. Caso contrário, a atitude de simplesmente abandonar as nossas crenças cuidadosamente formadas em face do desacordo entre pares parece, pelo menos em muitos casos, irresoluto e epistemicamente ineficaz.

    Mas qual é a motivação para adotar essas teorias? Em relação às teorias conciliatórias, procura-se argumentar que grande parte das nossas crenças quotidianas são epistemicamente inócuas (como no caso da crença de que temos leite no frigorífico, etc). Embora acreditemos sinceramente nessas coisas, não as sustentamos tão carinhosamente ou firmemente, não lhes atribuímos todo o estatuto epistémico positivo, e certamente não perderíamos o sono se descobríssemos que estávamos enganados ou que um par epistémico não concorda connosco. Ora, a maior parte das nossas crenças quotidianas são tais que qualquer desacordo sobre elas deve conduzir a uma virtuosa revisão de tais crenças. A favor disso, considere-se o caso apresentado por Hilary Kornblith (2010: 32):

    Suponha-se que tu e eu vamos a um restaurante com vários amigos. Depois de uma grande refeição, chega a conta e concordamos em dividir os custos de forma igual. Eu e tu somos bons em cálculo mental. Dou uma olhada na conta e calculo o que cada pessoa deve, e então coloco a minha quantia de dinheiro no meio da mesa. Tu olhas também para a conta, calculas o que cada pessoa deve e colocas a tua quantia de dinheiro no meio da mesa, então percebemos que colocamos quantias diferentes. Estamos cientes de todas as habilidades matemáticas do outro, e estamos cada vez mais convencidos da honestidade do outro. Pelo menos um de nós cometeu um erro. Não seria para mim razoável concluir que, uma vez que algum de nós cometeu o erro, deves ser tu o culpado. A coisa razoável a fazer nesta situação, e certamente o que a maioria das pessoas de facto faz nessa situação, é suspender a crença. Cada um de nós olha novamente para a conta e tenta recalcular o resultado correto.

    A maior parte dos nossos desacordos do dia-a-dia são como os que foram descritos aqui por Hilary Kornblith. E em todos esses casos, o desacordo pode ser facilmente resolvido. A coisa razoável a fazer nesses casos é rever a crença (ou suspender a crença ou, pelo menos, diminuir os estatuto epistémico positivo que se atribui a essa crença) até se ter mais dados ou evidências. Por exemplo, no caso de um desacordo sobre se há leite no frigorífico podemos simplesmente abrir e olhar para o frigorífico.

    Contudo, os filósofos das teorias inflexíveis procuram evidenciar que nem todas as formas de desacordo entre pares devem forçar a revisão das nossas crenças. Existem algumas crenças que nos são demasiado queridas, crenças que são também centrais ou demasiado fundamentais e, assim, demasiado importantes para permitir revisões, ajustes, ou suspensão. Como motivação para estas teorias, considere-se o caso seguinte:

    O José é um filósofo que está a trabalhar no seu escritório, quando uma das suas colegas, Maria, faz uma pausa para conversar. Ora, o José considera a Maria ser um seu par epistémico – ele não tem razão para suspeitar que Maria é de alguma forma menos inteligente, educada, hábil do que ele próprio. No entanto, hoje a Maria surpreende José com uma revelação chocante. A Maria confidencia ao José que ela parou recentemente de acreditar que 2+2=4. Contudo, se o José sabe alguma coisa, ele sabe que 2+2=4. Será que o desacordo da Maria com respeito a isso deverá forçar o José a reconsiderar a sua crença sobre a aritmética? Aparentemente não. Para todos os efeitos, o José não pode simplesmente abandonar ou modificar significativamente tais crenças. Tais crenças são muito importantes e com imensas consequências.

    Em casos semelhantes ao anterior podemos presumivelmente concordar que não é razoável forçar os interlocutores a suspender, modificar, ou rever as suas respetivas crenças quando estão perante um desacordo entre pares. Nesses casos, o desacordo é sobre crenças que são muito preciosas, queridas, centrais, fundacionais, etc, de tal forma que não parece razoável exigir uma revisão ou suspensão. Por exemplo, a crença que 2+2=4 presumivelmente tem o máximo (ou quase máximo) estatuto epistémico positivo. Assim, tais casos dão motivação para aceitar as teorias inflexíveis.

    Deste modo, por um lado, nesta discussão vemos que há casos de desacordo entre pares em que a coisa razoável a fazer é modificar, rever, suspender a nossa crença (no caso das teorias conciliatórias). Mas, por outro lado, há casos de desacordo epistémico em que a a coisa razoável a fazer é ser dogmático, manter-se firme, e não comprometer a nossa crença (no caso das teorias inflexíveis). O que devemos fazer então perante o desacordo entre pares?

    Uma possível solução pode ser adotar uma abordagem contextualista. Assim, em determinados contextos pode ser mais razoável seguir teorias conciliatórias e noutros contexto pode ser mais razoável seguir teorias inflexíveis. Mas em que contextos se deve ser mais conciliatório ou mais inflexível? Para responder a essa questão pode-se notar que há dois fatores que rastreiam os vários contextos:

    1. O estatuto epistémico positivo que se atribui à crença (consciente ou subconscientemente, antes do desacordo);
    2. O estatuto epistémico positivo que a crença realmente tem (antes do desacordo).

    Por um lado, se em determinados contextos o estatuto epistémico positivo que uma dada crença tem, relativamente a (1) e (2), é moderado (ou até escasso), então será razoável seguir as teorias conciliatórias. Por outro lado, se em determinados contextos o estatuto epistémico positivo que uma dada crença tem, relativamente a (1) e (2), está no grau máximo ou elevado, então será razoável seguir as teorias inflexíveis.

    Por exemplo, tendo em conta (1) e (2), podemos sustentar que no contexto do Caso Restaurante, o protagonista atribui uma quantidade moderada de estatuto epistémico positivo à sua crença, e a crença em questão (embora seja geralmente pouco provável que ela seja falsa), tem uma quantidade moderada de estatuto epistémico positivo. Por isso, nesse caso o mais adequado é seguir as teorias conciliatórias. Contudo, num contexto como o Caso da Aritmética, o protagonista sustenta a sua crença com firmeza absoluta (ou seja, é difícil pensar em qualquer coisa que ele possa acreditar mais do que em 2+2=4) e a crença em questão, estamos a supor, tem de facto a quantidade máxima de estatuto epistémico positivo. Por isso, neste último caso é mais apropriado seguir as teorias inflexíveis. Estes resultados permitem-nos traçar um mapa (pelo menos provisório) de respostas razoáveis ao desacordo entre pares.

    Casos difíceis de desacordo

    Até agora consideramos dois casos de desacordo epistémico entre pares em que geralmente podemos concordamos como lidar com eles razoavelmente. Contudo, como objeção, pode-se sublinhar que esses são casos fáceis de desacordo epistémico entre pares e que na vida diária muitas vezes somos confrontados com casos difíceisem que o desacordo é perene e aparentemente intratável. Um desses casos difíceis tem a ver com casos de fronteira. Tais casos são difíceis e geram perplexidade porque puxam simultaneamente as nossas intuições para duas direções opostas e, assim, ficamos sem saber se o mais razoável é seguir as teorias conciliatórias ou inflexíveis para lidar com tais casos. Considere-se o seguinte caso de “desacordo persistente” apresentado por Catherine Elgin (2010: 54):

    Suponha-se que dois paleontólogos, José e João, são pares epistémico que discordam sobre o destino dos Neandertais. O José acredita que os Neandertais eram um beco sem saída evolutivo. Incapazes de competir, simplesmente morreram. O João acredita que os Neandertais evoluíram para hominídeos posteriores, cujos descendentes estão hoje vivos. Porque o problema é complexo e a evidência é equívoca, eles chegam a conclusões diferentes sobre isso. O que eles deveriam (e nós) fazer com o seu desacordo? Em particular, deve o facto de um par epistémico discordar com o José ter algum efeito sobre o estatuto epistémico da sua crença? Será que o conhecimento de José desse facto deve ter algum efeito?

    Será que o José e o João devem rever as suas crenças? Ou eles podem razoavelmente manter as suas crenças? Elgin (2010) sublinha que aqui as opiniões divergem:

    Alguns filósofos, tais como Richard Feldman, Hilary Kornblith e David Christensen, alegam que a existência de um desacordo entre pares enfraquece o fundamento da crença. Se alguém com a mesma evidência, treino, conhecimento de fundo e habilidades de raciocínio chegou à conclusão oposta de José, isso é evidência de que os fundamentos de José são inadequados. Tais filósofos pensam que os agentes epistémicos devem moderar os seus pontos de vista perante o desacordo. Outros, tais como Thomas Kelly e Richard Foley, sustentam que é razoável um pensador manter a sua opinião em face de um desacordo com um par epistémico. Eles pensam que os agentes epistémicos devem ser firmes.

    Em suma, estamos perante um caso de fronteira, pois se (i) os resultados da paleontologia merecem uma atribuição de um grau bastante elevado de estatuto epistémico positivo (pelo menos mais do que um olhar superficial sobre uma conta no restaurante e menos do que o adulto médio com aritmética básica) e (ii) o José e o João estão a atribuir às suas crenças um estatuto epistémico positivo devido aos resultados da paleontologia, então somos puxados em duas diferentes direções. Não é claro se o José e João devem rever as suas crenças ou se devem razoavelmente manter o seu fundamento epistémico.

    Mas há outros casos problemáticos e desafiantes de desacordo entre pares que não são casos de fronteira. Há casos de desacordo entre pares que são intratáveis porque envolvem crenças que são extremamente pessoais, significativas e íntimas, crenças que são muito propensas de atribuição (consciente ou inconscientemente) de um estatuto epistémico positivo incomparável mesmo quando não o deveriam ser. Considere-se o seguinte caso:

    Manuel é um conservador comprometido. A maioria dos seus amigos são conservadores. Ele frequenta blogs e sites conservadores. E faz parte de uma ampla comunidade conservadora. Contudo, Maria é uma liberal. A maioria dos seus amigos são liberais. Ela frequenta blogs e sites liberais. E faz parte de um ampla comunidade liberal. Manuel acredita que o aborto deve ser ilegal, exceto talvez nos casos que envolvem violação ou casos em que a gravidez ameaça a vida da mãe. Por contraste, Maria acredita, entre outras coisas, que o aborto deve ser legal e facilmente acessível a mulheres em qualquer lugar. Manuel e Maria são pessoas igualmente inteligentes, talentosas, e perspicazes. Apesar disso, quando Manuel e Maria discutem as suas diferenças de opinião e reveem todos os argumentos de ambos a favor e contra as suas respetivas posições, eles permanecem inamovíveis.

    Para crenças que são extremamente pessoais, significativas, íntimas – sendo paradigmáticas as crenças relacionadas com religião, política, e moralidade – pode haver muitas coisas em jogo. Por exemplo, as crenças políticas de Manuel e Maria afetam extremamente a forma como eles veem o mundo, o que leem com mais atenção, quem são os seus amigos próximos, e talvez mesmo quem eles confiam mais. Para aqueles sujeitos as respetivas crenças políticas são tão próximas e queridas para eles de tal forma que abandoná-las poderia geral um cataclísmico intelectual.

    Supondo que não se pode atribuir um estatuto epistémico positivo igualmente superior ou num máximo grau para perspetivas incompatíveis, pelo menos um dos interlocutores está a cometer um vício epistémico; ou seja, um deles está a atribuir mais estatuto epistémico positivo à sua crença do que deveria. Contudo, ao contrário dos casos do restaurante ou da aritmética, o problema agora está em determinar quem é o culpado. Por isso, casos semelhantes a este último são particularmente intratáveis. Isto é, são casos que envolvem crenças que são tão pessoais, significativas, íntimas que são particularmente e notoriamente propensas a vício intelectual. Nomeadamente, nesses casos os sujeitos estão propensos a atribuir um estatuto epistémico positivo extremo, mesmo quando este é (em última instância) imerecido. Como resolver, então, estes problemas? O que devemos fazer quando estamos perante tais desacordos intratáveis?

    Uma resposta imediata talvez consista em dizer que perante tais casos devemos estar vigilantes. Ou seja, devemos reconhecer que algumas das nossas crenças são particularmente propensas ao vício epistémico e, dessa forma, devemos tomar um cuidado e reflexão extra para se assegurar que estamos realmente a rastrear com precisão o estatuto epistémico das nossas crenças. Mas os problemas continuam: e se, depois de uma reflexão honesta e cuidadosa, os interlocutores do desacordo epistémico acham que, pelo seu melhor entendimento, estão a rastrear com precisão o estatuto epistémico positivo das suas respetivas crenças? O que dizer se a evidência que eles estão a considerar é equívoca ou ambígua? Para trazer luz a esta questão, Elgin (2010: 58) ilustra o seguinte caso de desacordo persistente e intratável:

    David Lewis acreditava que existem infinitamente muitos mundos possíveis, cada um deles tão real quanto o mundo atual. Não há como negar que ele acreditou nisso. Além disso, não há como negar que ele foi incrivelmente inteligente, filosoficamente talentoso, e intelectualmente responsável. Ele examinou os argumentos a favor e contra a sua posição com enorme cuidado. Não é uma falsa modéstia dizer que Lewis era um filósofo muito melhor do que eu. (…) No entanto, acho que ele estava errado. Não posso refutar a sua posição; está admiravelmente bem defendida. Mas, apesar da inteligência e argumentos de Lewis, não acredito que existem mundos possíveis reais constituídos por objetos materiais e inacessíveis do mundo atual. Eu acredito que o único mundo é o mundo atual. Penso que a minha crença é razoável. Mas Lewis pensa de outra forma. Ele não era um meu par epistémico; ele foi meu superior epistémico. Assim, não deveria rever a minha crença para concordar com ele? (…) Em alguns casos, pelo menos, parece epistemicamente razoável submeter-me aos meus superiores epistémico. O meu desacordo com Lewis será diferente?

    Como solução para este problema, Elgin (2010: 59-69) sustenta que:

    Apesar da posição de Lewis ser brilhantemente contruída, admiravelmente defendida, e graciosamente argumentada, considero-a inacreditável. Simplesmente não posso ou consigo acreditar nisso. Uma vez que “dever” implicar “poder”, pelo facto de não poder ou conseguir acreditar nisso implica que não é o caso que eu devo acreditar nisso. E pelo facto de não poder acreditar que seja verdade, isso implica que não é o caso que eu deva suspender a crença ou diminuir o meu grau de crença de que o único mundo real é o mundo atual. É filosoficamente interessante, e talvez inquietante, que uma posição que achei absolutamente inacreditável admita uma defesa tão forte. Mas a minha crença não está em perigo.

    Tradicionalmente, o dilema colocado pelo desacordo foi apresentado em termos do que devemos fazer à luz do desacordo entre pares. Ou seja, será que devemos reverou, pelo contrário, manter firme a nossa crença? De acordo com Elgin (2010), este dilema está mal concebido. Isto porque a crença é sensível às evidências. Dado um corpo de evidência, não há escolha sobre o que acreditar. (Esta tese é conhecida como “não-voluntarismo doxástico” – para uma defesa desta posição veja a secção 3.5 da minha tese de doutoramento aqui). Diferentes agentes epistémicos podem avaliar a evidência de forma diferente e, portanto, chegam a diferentes crenças. Mas isso não é uma questão de escolha. Eles chegam a diferentes crenças porque a evidência os afeta de maneira diferente.

    Ser sensível ou não, estar a reagir ou não a evidências, argumentos, ou pressão dos pares é algo que nos acontece. Ora, isto significa que não podemos seguir a recomendação tradicional de manter firme a nossa crença perante o desacordo entre pares ou a suspensão da crença. A forma como o desacordo entre pares afeta as nossas crenças não depende de nós. A nossa resposta não está sob o nosso controlo. Por isso, debates sobre se deveríamos suspender a crença perante o desacordo entre pares estão equivocados.

    No entanto, será verdade que a crença é sempre involuntária? Como objeção pode-se defender que parece que, por vezes, as pessoas ignoram intencionalmente as evidências ou acreditam em coisas apesar de negligenciarem as evidências. Além disso, se a crença nunca for voluntária, não estaremos aberto a louvores ou culpasepistémicas. Por exemplo, supondo que a culpa requer controlo, não é fácil ver como alguém poderia culpavelmente falhar ao rastrear corretamente o estatuto epistémico das suas crenças. Assim, com a perspetiva de Elgin (2010) não é claro como é que alguém poderia ser intelectualmente vicioso.

    Como resposta pode-se argumentar que é verdade que as pessoas podem por vezes ignorar a evidência ou acreditar com evidência insuficiente, o que seria em princípio um vício epistémico. Contudo, o que Elgin (2010) sublinha é que também pode suceder que por vezes as pessoas podem seguir a evidência e chegar a diferentes conclusões, e de tal forma que tais pessoas não podem deixar de acreditar no que acreditam (uma vez que podem achar a negação da sua crença completamente inacreditável). Ora, é apenas neste último caso que parece errado perguntar “o que devemos fazer perante um tal desacordo?” dado que não podemos fazer nada. Neste caso, parece que as nossas crenças estão fora do nosso controlo imediato. O máximo que podemos fazer nesses casos é influenciar indiretamente a nossa formação de crenças ao colocarmo-nos em certas posições (i.e. perante determinado conjunto de evidência, argumentos, etc) que maximizam as probabilidades de adquirir certo tipo de crenças.

    Ainda assim há questões difíceis de responder. Por exemplo, como sabemos quais as posições que melhor nos permitem rastrear com precisão o estatuto epistémico das nossas crenças? Como nos podemos posicionar de forma a sermos recetivos à verdade? Para Elgin (2010) isso é uma questão de formação do caráter cognitivo. Assim, a questão é que tipo de caráter devemos formar. Ilustrando esta ideia, Elgin advoga que “é cognitivamente valioso ser capaz de apreciar como a evidência, o argumento, e a experiência suportam a razoabilidade de uma tese, mesmo quando não podemos acreditar na sua conclusão”.

    Consequências do desacordo para a racionalidade do teísmo

    Um dos maiores problemas que enfrenta o desacordo religioso é a preponderância de vício epistémico: especificamente arrogância intelectual. Muitas vezes os defensores mais sonoros de uma determinada perspetiva religiosa (ou anti-religiosa) são também os mais viciosamente dogmáticos, de mente fechada, e inflexíveis nos seus pontos de vista, atribuindo um estatuto epistémico positivo muito maior às suas crenças do que geralmente merecem. Tais vícios generalizados fazem, muito frequentemente, com que os desacordos religiosos sejam completamente intratáveis. Assim, surge um problema mais prático: quando há um desacordo religioso entre pares cada um dos interlocutores deve revê-las ou, pelo contrário, deve mantê-las? Será que os desacordos religiosos entre pares são semelhantes ao Caso do Restaurante ou, pelo contrário, ao Caso da Aritmética?

    Por um lado, pode-se argumentar a favor da revisão, seguindo as teorias conciliatórias, partindo da seguinte questão: dada a tremenda diversidade religiosa no mundo (com uma abundância de pessoas igualmente informadas, inteligentes, e racionais que defendem quase todas as posições) como alguém poderia estar seguro de que as suas crenças religiosas (ou anti-religiosas) estão corretas quando muitas pessoas qualificadas discordam delas? Podemos pensar que as crenças religiosas são relevantemente como aquela razoável revisão no Caso do Restaurante. Assim, a coisa razoável a fazer quando estamos perante o desacordo religioso seria suspender a crença e, por consequente, podemos supor que a postura virtuosa quando se trata de religião seria o agnosticismo.

    Mas, por outro lado, pode-se argumentar a favor da manutenção, segundo as teorias inflexíveis, sustentando-se que é possível que alguma crença religiosa (como a crença de que “Deus existe”) poderia ser mais parecida à crença de que 2+2=4 do que à crença sobre o que cada um deve numa dada conta de restaurante. Tal como as crenças aritméticas, os teístas podem afirmar acreditar que Deus existe porque eles simplesmente percebem que é verdade. (E, dada a existência de Deus, tal crença provavelmente terá um elevado estatuto epistémico positivo). Se isto é correto, então a crença religiosa de que Deus existe pode ser algo que um teísta poderá manter de forma razoável com um compromisso epistémico firme.

    Esta argumentação a favor da manutenção depende do grau de estatuto epistémico positivo que as crenças religiosas (nomeadamente a crença de que Deus existe) efetivamente têm. Se o teísta estiver numa posição em que tal grau de estatuto epistémico positivo for realmente elevado, então pode ser razoável ter um compromisso epistémico firme com a sua crença (mesmo perante um desacordo religioso). Contudo, há um problema: como é que o próprio teísta sabe que está nessa posição favorável? É difícil determinar quem está de facto em tal posição. Além disso, pode-se apontar algumas diferenças significativas entre a crença aritmética que 2+2=4 e a crença teísta que Deus existe. Pode-se sublinhar que praticamente todas as pessoas racionais e suficientemente informadas acreditam que 2+2=4; pelo contrário há muito pouco acordo quando o assunto é religioso.

    Como resposta pode-se argumentar que talvez existam casos em que um compromisso epistémico firme é permissível mesmo em face de um desacordo generalizado. Por exemplo, Considere-se o seguinte caso apresentado por Plantinga (2000: 450):

    A polícia prendeu-me, acusando-me de um crime sério: roubei novamente a tua bandeira Frísia. Na esquadra da polícia soube que o Presidente da Câmara afirmou ter-me visto a esconder-me perto da tua porta traseira no momento em que crime ocorreu (ontem a meio da tarde); sou conhecido por ofender-te. Tinha meios, motivos, e oportunidades; além disso, houve outros episódios mesquinhos semelhantes no meu passado. Contudo, recordo-me muito claramente de passar toda a tarde de ontem numa solitária caminhada na montanha.

    No caso apresentado por Plantinga, a crença do protagonista é tal que a maior parte ou praticamente todos discordam dele. Assim, a maioria das pessoas parece ter evidências substantivas e considera que aquele protagonista é um ladrão. Mas será irracional ou irrazoável se o protagonista, com base na sua memória fiável e clara, tiver um compromisso epistémico firme e inflexível com a crença de que não roubou a bandeira? Intuitivamente não será irracional ou irrazoável aquela atitude doxástica. (Dado que de facto ele não roubou a bandeira e sabe, com base na sua memória, que não a roubou). Não será possível que alguma crença religiosa seja semelhante a este último caso? Talvez isso seja possível. Mas há aqui um problema difícil: como podemos saber se alguém está numa tal situação?

    Ainda assim, pode-se avançar com outros argumentos a favor da posição de compromisso epistémico firme com as crenças religiosas. Joshua Hook e Don Davis (2017) apresentam as seguintes razões:

    1. As crenças religiosas frequentemente são epistemicamente fundacionais (dado que abarcam grande parte das crenças das pessoas religiosas, sobre elas próprias e sobre o mundo que as rodeia).
    2. As crenças religiosas frequentemente servem como sinal de lealdade e de pertença a um grupo (sinais que regulam quem escutamos, confiamos, etc).
    3. As crenças religiosas frequentemente são consideradas como mais valiosa quando sustentadas com certeza.

    Seguindo a epistemologia do desacordo de Elgin (defendida na secção anterior), podemos dizer que por vezes não podemos simplesmente alterar as nossas crenças de forma direta, sendo razoável continuar com elas. Mas serão estas razões plausíveis a favor de um compromisso epistémico firme e inflexível com a crença em Deus?!

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    Teorias do Conhecimento depois de Gettier

    De acordo com a definição tradicional de conhecimento, também conhecida como definição tripartida do conhecimento (CVJ), em que se visa estabelecer condições necessárias e conjuntamente suficientes para que um sujeito S conheça uma dada proposição p, defende-se a seguinte teoria do conhecimento:

    (CVJ) S sabe que p sse:

    (i) S acredita que p,

    (ii) p é verdadeira,

    (iii) S está justificado a acreditar que p.

    Esta teoria foi proposta por Platão no Teeteto (§291) e no Ménon (§98), e foi considerada uma definição plausível de conhecimento ao longo da história, sendo mais contemporaneamente defendida por Roderick Chisholm e Alfred Ayer. Contudo, Edmund Gettier no influente artigo “Is Justified True Belief Knowledge?”, publicado na revista Analysis (v.23, pp.121-3) em 1963, apresenta dois contraexemplos à teoria CVJ, criticando a suficiência da CVJ para haver conhecimento.

    O problema Gettier

    O Caso 1, o qual pode ser nomeado como “Moedas”, é apresentado por Gettier desta forma: enquanto aguardava por uma entrevista de emprego, a Maria viu o José a contar quantas moedas tinha no bolso: 10 moedas. Ela também ouviu o patrão ao telefone a dizer a alguém que o José é a pessoa que vai ter o emprego. Com base dessa evidência, a Maria acredita justificadamente na seguinte conjunção:

    (1) O José vai conseguir o emprego, e o José tem 10 moedas no seu bolso.

    Com base na sua crença justificada (1), a Maria deduz e passa a acreditar justificadamente que:

    (2) A pessoa que vai conseguir o emprego tem 10 moedas no seu bolso.

    Contudo, apesar da evidência da Maria, (1) é falsa; o patrão enganou-se ao telefone. Além disso, é a Maria, não o José, quem vai conseguir o emprego; e por puro acaso, a Maria tem exatamente 10 moedas no seu bolso. Ora, a Maria tem uma CVJ em (2), mas não tem conhecimento (pois essa crença é afinal verdadeira por mero acaso).

    Quando ao Caso 2, que podemos designar como “Ford”, Gettier parte da suposição de que a Maria tem a seguinte evidência: o José guarda uma Ford na sua garagem; o José foi visto a conduzir um Ford; o José disse que tem um Ford e tem sido honesto e fiável no passado, etc. Ora, a partir dessa evidência a Maria forma a crença de que:

    (3) O José tem um Ford.

    Com base nessa crença justificada, a Maria deduz justificadamente e passa acreditar na seguinte disjunção:

    (4) O José tem um Ford ou o seu amigo Sousa está em Barcelona.

    Apesar de ignorar por completo o paradeiro do Sousa, por pura coincidência o Sousa está em Barcelona. Além disso, por acaso o José já não tem um Ford (recentemente vendeu-o). Ora, a crença da Maria em (4) é uma CVJ. Todavia, intuitivamente a crença da Maria não pode ser conhecimento; é por mera sorte que a sua crença é verdadeira.

    Com base nestes dois exemplos consegue-se mostrar que podemos ter uma crença verdadeira justificada (CVJ) mas não ter conhecimento; ou seja, não é suficiente ter uma CVJ para se ter conhecimento. Por isso, a definição tradicional de conhecimento não está em ordem. Como resolver, então, o problema da definição do conhecimento? Este problema é conhecido como “problema Gettier”.

    Como formular uma teoria do conhecimento que responda plausivelmente ao problema Gettier? Ou seja, precisamos de uma teoria do conhecimento que ultrapasse de alguma forma os contraexemplos apresentados por Gettier. Como reação a esse problema surgiram dois tipos de resposta bastante diferentes.

    Por um lado, temos as respostas não-reducionistas que visam defender que o conhecimento não é suscetível de análise em termos de condições necessárias e suficientes. Por exemplo, Wittgenstein (1957) defende a tese de que não há sequer um conceito unificado de conhecimento que seja suscetível de análise: há apenas uma série de conceitos diferentes mas semelhantes uns aos outros. Numa linha de raciocínio semelhante Linda Zagzebski (1994) defende que o problema Gettier é insolúvel. E, mais recentemente e de forma influente, Timothy Williamson (2000) defende que o conceito de conhecimento é primitivo e, por isso, não pode ser reduzido a conceitos mais básicos como o de “crença”, “verdade”, e “justificação”.

    Por outro lado, as respostas reducionistas, as quais se apresentam como mais optimistas para oferecer uma solução ao problema Gettier, têm como objetivo fortalecer a condição (iii) ou adicionar uma nova condição (iv) à definição tradicional de conhecimento. Neste tipo de resposta são oferecidas várias possíveis condições, tal como alguma das seguintes: infalibilidade, sem fundamentos falsos, causa apropriada, fiabilismo, sensibilidade, ou segurança. Vale a pena considerar com pormenor cada uma destas respostas e avaliar qual é a mais plausível.

    Respostas não-reducionistas

    As respostas não-reducionistas são aquele tipo de solução ao problema Gettier que abandona o projeto de uma análise filosófica da noção de conhecimento. Ou seja, abandona o projeto de decompor o conceito de conhecimento noutros conceitos mais simples, primitivos, ou mais básicos do que ele.

    Timothy Williamson (2000) é provavelmente o filósofo mais influente a defender este tipo de resposta não-reducionista. Williamson defende a tese de que o conceito de conhecimento é ele próprio um conceito primitivo, não explicável em termos de outros conceitos. Para defender essa tese, Williamson começa por criticar os pressupostos essenciais da análise tradicional do conhecimento. De acordo com William, são dois os pressupostos da teoria CVJ:

    • (S1) O conhecimento é um conceito analisável ou definível, um conceito decomponível em conceitos constituintes mais simples.
    • (S2) O estado epistémico de conhecer é um estado híbrido, em parte constituído por um estado interno ou mental (i.e. crença e justificação), e em parte constituído pelo mundo (i.e. verdade).

    A suposição (S1) relaciona-se com a (S2) na medida em que uma análise pretende elucidar que tipo de componentes mentais são necessários para além do componente não-mental da verdade. Ora, Williamson procura argumentor contra os pressupostos (S1) e (S2). Contra tais pressupostos Williamson defende uma epistemologia do conhecimento primeiro. Ou seja, propõe-se uma inversão da direção da explicação. É o conceito de conhecimento que pode ser usado para explicar outros conceitos epistémicos (como crença, justificação, evidência, etc) e não o inverso.

    Williamson apresenta vários argumentos contra os pressupostos (S1) e (S2). Contra (S1) estabelece uma analogia com outros conceitos. Podemos notar que a grande maioria dos nossos conceitos são conceitos não analisáveis, indefiníveis, no sentido de ser possível associar-lhes condições necessárias e suficientes (não triviais e não circulares) para a sua aplicação correta. Conceitos quotidianos como “vermelho”, “beleza”, “inteligência”, “pessoa”, “adolescente”, etc, parecem não ser analisáveis ou definíveis neste sentido estrito. Uma das razões para isso é que tais conceitos são vagos, admitem casos de fronteira. Todavia, daí não se segue que esses conceitos não estejam em ordem ou que sejam ininteligíveis. Além disso, são poucos os conceitos que admitem definições ou análises neste sentido estrito, como o seguinte: S é solteiro sse S é uma pessoa do sexo masculino que não é casada. Ora, Williamson alega que o conceito de conhecimento é como a maioria dos nossos conceitos; i.e., um conceito não analisável ou indefinível.

    Um outro argumento contra (S1) tem um caráter indutivo. Se repararmos bem na história da epistemologia recente, desde a publicação do artigo de Gettier em 1963, é a história de sucessivos insucessos de inúmeras tentativas de analisar a noção de conhecimento. Cada proposta para remendar a CVJ ou para adicionar uma nova quarta condição CVJ+X tem dado invariavelmente origem a novos casos de tipo Gettier contra a suficiência das condições. Ora, Williamson toma esses insucessos como evidência indutiva forte de que a suposição (S1) é falsa.

    Contra (S2) Williamson advoga que o conhecimento não consiste na posse de um estado híbrido (mental e não-mental); assim, a motivação para uma análise também se perde. Pelo contrário, o conhecimento é um estado inteiramente mental. Mas, assim, como lidar com a factividade do conhecimento? A ideia é que a natureza de certos estados mentais não é inteiramente determinada pelo que está dentro da cabeça do sujeito, mas é também determinado pelo que está no mundo exterior. Com isto adota-se um externismo cognitivo.

    Mas, pelo factos dos pressupostos (S1) e (S2) serem falsos, daí não se segue que nada de informativo possa ser dito acerca do conceito de conhecimento (pois, em geral, os conceitos primitivos, sem análises, podem bem ser positivamente caraterizados). Williamson pensa que o conhecimento entre os estados psicológicos e epistemológicos mais fundamentais que existem. Ou seja, “primeiro o conhecimento”: o conhecimento não é constituído por componentes epistemicamente mais básicas como a crença e a justificação; pelo contrário, o conhecimento é o estado epistémico mais básico que permite elucidar as noções de crença e justificação. Mais especificamente, Williamson propõe a seguinte caraterização positiva do conceito de conhecimento:

    (K) Conhecimento proposicional = o mais geral (ou mais inclusivo) estado mental intencional factivo.

    Será esta abordagem não-reducionista uma boa resposta para o problema Gettier? Podem-se apresentar algumas objeções aos argumentos de Williamson. O argumento contra (S1) parece apresentar fragilidades; pois, pelo facto de até agora não se conseguir chegar a um consenso sobre uma análise plausível de conhecimento, daí não se segue que não haja ou que não possa existir no futuro tal análise. O argumento contra (S2) também pode ser criticado. Por exemplo, Sosa (2009) critica a tese de que o conhecimento é um estado puramente mental. Ora, um estado é puramente mental quando é mental mas a caraterística que ele tem de ser mental é uma caraterística intrínseca, não derivada, do estado em questão. Todavia, o conhecimento é mental apenas em virtude de um estado distinto, a crença, ser mental. Por sua vez, Lycan (2006) argumenta que a solução proposta por Williamson não explica, p.e., por que razão se aceita que muitas instâncias da CVJ são conhecimento enquanto outras não. Ou seja, há a questão de saber o que distingue o sujeito que conhece daquele que é vítima de um caso Gettier. Cassam (2009) e Goldman (2009) argumentam que a explicação positiva do conhecimento proposta por Williamson acaba por ser um tipo de análise, constituindo um tipo de resposta reducionista.

    Respostas reducionistas

    As respostas reducionistas consideram que o conhecimento pode ser analisável noutros conceitos mais simples, primitivos, ou mais básicos do que ele, sendo possível apresentar condições necessárias e conjuntamente suficientes para se definir de forma informativa e não circular o que é o conhecimento. Então, como resolver o problema Gettier?

    Uma das primeiras soluções reducionistas é conhecida como “infalibilismo”. A ideia é fortalecer a condição (iii) da CVJ. Isto porque a justificação apresentada nos casos Gettier é falível. Ou seja, embora forneça bom suporte para a verdade da crença em questão, esse suporte não é perfeito. Deste modo, a justificação deixa em aberto a possibilidade de crenças falsas. Keith Lehrer (1971) e Peter Unger (1971) sugeriram que podemos eliminar os casos Gettier se impedirmos que S tenha uma justificação falível. Assim, propõem-se que é necessária uma justificação infalibilista. Contudo, esta proposta apresenta vários problemas. Em primeiro lugar, a proposta é contraintuitiva, dado que na nossa vida diária conhecemos muitas coisas e raramente possuímos justificação infalível para as nossas crenças. Em segundo lugar, é uma proposta de solução que conduz ao ceticismo. Pois, de acordo com esta proposta, há conhecimento só se há justificação infalível; mas não temos justificação infalível (pelo menos a maior parte das vezes); logo, não temos conhecimento.

    Uma outra solução reducionista que surgiu imediatamente a seguir à apresentação do problema de Gettier é conhecida como “condição sem fundamentos falsos”. Observou-se que nos casos originais de Gettier, a Maria infere justificadamente uma crença verdadeira a partir de uma crença falsa mas justificada. Para se bloquear isso pode-se adicionar, como propôs Clark (1963), um nova condição à CVJ:

    (iv) A crença de S que p não é inferida a partir de qualquer falsidade.

    À primeira vista isto parece constituir uma solução engenhosa e elegante para responder ao problema Gettier. No entanto, há boas objeções contra a condição (iv). Pode-se questionar: será que não pode haver conhecimento a partir de crenças falsas? Alguns filósofos, como Warfield (2005), Fitelson (2010), Luzzi (2014) argumentam que é possível haver conhecimento de uma conclusão q a partir de uma premissa falsa p que implique q. Considere-se o seguinte exemplo apresentado por Warfield (2005: 408): “Com base na leitura das horas do meu relógio especial, passo a acreditar que são 14h58. Dedutivamente infiro que não estou atrasado para o meu encontro às 19 horas. Intuitivamente, conheço a minha conclusão mesmo se de facto são 14h56”. A intuição central é que o conhecimento pode tolerar algum erro ou falsidade na premissa (na medida em que esse erro não é relevante para ameaçar a verdade da conclusão). Mas se isto é correto, então a solução de adicionar a condição “sem fundamentos falsos” não funciona.

    Além disso, contra a condição (iv) proposta podem-se apresentar novos casos de tipo Gettier não-inferenciais. Alvin Plantinga (1993) apresentou um desses casos, que designaremos como Caso 3 e o nomeamos como “Guarda-Florestal”. O caso é o seguinte: Um guarda-florestal idoso vive numa pequena casa nas montanhas. Do lado de fora da janela da sua cozinha há um conjunto de sinos de vento pendurados num ramo de uma árvore. E quando esses sinos de vento emitem som, o guarda-florestal forma a crença de que o vento está a soprar. Mas como ele é idoso, a sua audição deteriorou-se (sem que ele o soubesse) e, assim, ele não é mais capaz ouvir os sinos. Além disso, ele é por vezes sujeito a pequenas alucinações auditivas de sinos de vento; e ocasionalmente essas alucinações ocorrem quando o vento está a soprar. Neste caso o guarda tem uma CVJ não inferencial de que o vento está a soprar; mas a sua crença é verdadeira por acaso. Assim não tem conhecimento.

    Um outro caso de tipo Gettier não-inferencial bastante conhecido foi concebido por Chisholm (1989: 93). Chamemos a esse Caso 4 de “Ovelha”: A Maria, enquanto observa do caminho um pasto, vê em boas condições visibilidade o que parece ser à distância um ovelha e passa a acreditar que há uma ovelha no campo. Assim, a Maria forma a crença de que há uma ovelha no campo. Contudo, suponha-se que a Maria não está de facto a olhar para uma ovelha, mas sim para um cão vestido para parecer com uma ovelha (um cão habilmente disfarçado). Ainda assim, por acaso, há uma ovelha no campo: está imediatamente atrás do cão, escondida do campo visual da Maria. Neste caso temos uma CVJ não inferencial de que há uma ovelha no campo, mas não é um caso de conhecimento. Ora, a condição (iv) proposta, ainda que consiga lidar com os casos originais de Gettier, não consegue resolver os novos casos de tipo Gettier não-inferenciais.

    Como uma solução reducionista mais madura surgiu a teoria da “causa apropriada”. Nos casos Gettier pode-se dizer que não há conhecimento porque a crença verdadeira justificada é causada (gerada) de forma anómala ou inadequada. Por exemplo, no Caso 1, o que torna a crença (2) “A pessoa que vai conseguir o emprego tem 10 moedas no seu bolso” verdadeira é o número de moedas no bolso da Maria, mas não é isso que causa a existência da crença da Maria. O que causa a crença da Maria é o facto do José ter 10 moedas no bolso, e esse facto não é o que torna (2) verdadeira. No caso 2, o que torna a crença (4) “O José tem um Ford ou o seu amigo Sousa está em Barcelona” verdadeira é o facto do Sousa estar em Barcelona, mas não é isso que causa a existência da crença da Maria. Algo semelhante sucede com os outros casos tipo Gettier. Ou seja, nesses casos não há uma conexão causal entre a crença gettierizada e o facto que a torna verdadeira. É a ausência de tal conexão que permite a possibilidade da crença ser verdadeira meramente por acaso. Por exemplo, no Caso 4, o caso “Ovelha”, só posso saber que está no campo uma ovelha se for uma ovelha a causar a minha crença. Todavia, no caso em questão, a crença da Maria é causada por um cão (ainda) que disfarçado. Ora, os factos que levam a Maria a adquirir a crença sobre a ovelha são distintos dos factos que tornam a sua crença verdadeira. Assim, a Maria não sabe que está no campo um ovelha. Para lidar com este problema, Goldman (1967) propôs, para ser acrescentado à CVJ, uma condição externista:

    (v) A crença de S que p é causada pelo facto que p.

    Apesar de (v) apresentar uma condição para uma teoria do conhecimento mais plausível do que as versões anteriores, essa condição tem vários problemas. Por exemplo, pode-se alegar que se a aceitarmos a condição (v), então não pode haver conhecimento do futuro. Isto porque é plausível dizer que S sabe hoje que amanhã é terça-feira, ou que sabe que amanhã é 17 de Julho, ou que sabe hoje que no fim de semana o Moreirense vai jogar com o Boavista. Porém, com a condição causal essas crenças não poderiam constituir conhecimento, pois factos futuros (factos que ainda não se verificaram) não podem ser causas de crenças formadas no presente. Teria de se admitir cadeias causais retrospetivas (do futuro para o passado). Além disso, com (v) não pode haver conhecimento de crenças matemáticas. Por exemplo, S sabe que 2+2=4 ou que 97 é um número primo; assim, S sabe uma verdade acerca dos números. Mas eles têm efeitos causais? Ora, a menos que sejamos realistas radicais acerca da matemática e postulemos um domínio de factos matemáticos, tal crença não é causada por qualquer facto. Isso parece suceder com outras crenças a priori e até com crenças morais. Assim, a condição (v) não parece plausível.

    Para ultrapassar esses problemas, Goldman formulou uma outra teoria que é descendente da teoria da causalidade e que se chama fiabilismo. De acordo com Goldman (1979: 10), “o estatuto justificatório de uma crença é uma função da fiabilidade do processo ou dos processos que a causam, onde (numa primeira aproximação) a fiabilidade consiste na tendência de um processo para produzir crenças que são verdadeiras em vez de falsas”. Assim, propõe-se a seguinte condição, para ser acrescentada à CVJ, de forma a haver conhecimento:

    (vi) A crença de S que p é produzida por um processo cognitivo fiável.

    O problema é ter uma CVJ juntamente com (vi) não é suficiente para haver conhecimento. Isto porque há novos contraexemplos do tipo Gettier que escapam tanto à condição causal como à condição fiabilista. Considere-se o Caso 5, conhecido na literatura como caso do “Celeiro”, desenvolvido pelo filósofo Carl Ginet: A Maria está a conduzir numa zona rural e, num dado momento, olha a paisagem pela janela do seu carro. Ela vê o que parece ser um celeiro no meio de uma planície e forma uma crença percetiva que há um celeiro na planície. Contudo, a Maria não está ciente que está a olhar para um dos poucos celeiros reais numa área repleta com meras fachadas de celeiros (i.e estruturas que, vistas da estrada, são indiscerníveis de celeiros reais, mas são falsos celeiros). Neste caso a Maria tem uma crença verdadeira justificada. Além disso é apropriadamente causada e resulta de um processo fiável. Todavia, não é um caso de conhecimento, pois foi uma questão de pura sorte ela estar a olhar para um celeiro real.

    Um outro caso parecido e bastante conhecido é o Caso “Relógio”, de Bertrand Russell. Esse Caso 6, que escapa à condição (vi), pode ser apresentado desta forma: Suponha-se que a Maria desce as escadas de manhã para tomar o pequeno almoço e vê que de acordo com o seu relógio, normalmente fiável, que está na cozinha são 8h20. Além disso, suponha-se que essa crença é verdadeira e que de facto são 8h20. Aqui temos um caso em que a Maria forma uma crença verdadeira justificada, bem como parece ser o resultado de um processo fiável. Contudo, o relógio está de facto parado há 24 horas e, assim, foi apenas por uma questão de sorte que a Maria olhou para o relógio no exato momento do dia em que ele está a registar a hora correta. Ora, uma vez que intuitivamente não se pode obter conhecimento das horas ao olhar para um relógio parado, segue-se que a Maria não sabe que horas são, apesar de ter uma crença verdadeira justificada e fiável.

    Um outro candidato forte para ser a quarta condição do conhecimento é a condição modal da sensibilidade. Essa condição foi formulada por Robert Nozick (1981) e pode ser formulada do seguinte modo:

    (CS) Uma crença p de S é sensível sse: se p fosse falsa, S não acreditaria que p.

    Ora, (CS) é equivalente a dizer que nos mundos possíveis próximos em que não-p, S não acredita que p. Uma motivação para se incluir a condição da sensibilidade numa análise do conhecimento é que parece haver um sentido em que o conhecimento requer não apenas que se esteja correto, mas que se rastreie a verdade noutras circunstâncias possíveis. Assim, acrescenta-se a seguinte condição à CVJ:

    (vii) A crença de S que p é sensível.

    Essa condição permite lidar com os casos Gettier. Por exemplo, no Caso 5, caso fosse falso que o objeto que a Maria está a olhar é um celeiro real (ou seja, se fosse um falso celeiro), a Maria continuaria a acreditar nessa proposição (visto que a base para essa crença não seria alterada). Assim, a crença da Maria seria insensível, violando-se a condição (vii) e, por isso, não pode constituir um caso de conhecimento. Uma estratégia similar pode ser apresentada com sucesso para todos os outros casos de tipo Gettier.

    Mas será essa uma boa teoria do conhecimento? É bastante controverso, pois se aceitarmos (vii), então teremos de rejeitar um princípio da epistemologia bastante aceite: o princípio do fecho. Ou seja, a sensibilidade implica que o princípio do fecho, que é bastante intuitivo, é falso. Mas o que se afirma no princípio do fecho? Este princípio advoga o seguinte:

    (PF) Para todo S, ϕ, ψ, se S sabe que ϕ, e S sabe que ϕ implica ψ, então S sabe que ψ.

    Por exemplo, aplicando (PF), se sei que tenho duas mãos, e se sei que ter duas mãos implica que não sou um cérebro numa cuba, então sei que não sou um cérebro numa cuba. O problema é que a crença que tenho duas mãos satisfaz a condição da sensibilidade (CS), pois suponha-se que agora acreditamos que temos duas mãos; parece intuitivo que se fosse falso que temos duas mãos (p.e. suponha-se que ocorreu um acidente), mas tudo o resto fosse igual, então não acreditaríamos mais que temos mãos; aliás, veríamos que não as tínhamos. Todavia, a crença que não sou um cérebro numa cuba não satisfaz (CS), pois agora acreditamos que não somos um cérebro numa cuba; mas se fossemos um cérebro numa cuba, continuaríamos ainda assim acreditar que não somos um cérebro numa cuba. Assim, de acordo com (CS) e a condição (vii), sabemos que temos duas mãos, mas não sabemos que não somos um cérebro sem mãos numa cuba. Mas parece absurdo que possamos simultaneamente saber que temos duas mãos e não saber que não somos um cérebro sem mãos numa cuba; ou seja, tal conjunção, como defende DeRose (1995: 27-29), parece “abominável”.

    Com a mesma linha de raciocínio, Saul Kripke (2011: 186) apresenta outro exemplo sobre as implicações negativas de (CS): Suponha-se que uma zona rural está repleta de fachadas de celeiros falsos, mas agora tais fachadas estão pintadas de azul; por sua vez, os raros celeiros verdadeiros estão pintados a vermelho. Ora, a Maria olha para um celeiro que está pintado de vermelho. Com base na sua experiência perceptiva, a Maria acredita corretamente que:

    (5) Há um celeiro vermelho no campo.

    Propensa a ser um pouco meticulosa, ela também nota que:

    (6) Se há um celeiro vermelho no campo, então há um celeiro no campo.

    Daí ela deduz competentemente que:

    (7) Há um celeiro no campo.

    Ora, a crença (5) satisfaz (CS), pois se o celeiro não fosse vermelho, não parceria como tal (i.e. seria azul). Mas, a crença (7) não satisfaz (CS), pois se não fosse um celeiro, poderia ainda assim ser uma fachada e parecer como um celeiro. Assim, o princípio (PF) falha; mas é muito estranho e contraintuitivo afirmar que posso saber que é um celeiro vermelho, mas não saber que é um celeiro.

    Ainda contra a condição (vii), Ernest Sosa (1999: 145) defende que essa não é uma condição necessária para o conhecimento. Para defender isso, Sosa apresentou o seguinte Caso 7, a que designamos como “Saco do Lixo”: Imagine-se que a Maria deposita um saco de lixo por um canal de lixo do seu apartamento num arranha-céus que vai dar a um reservatório na cave. Será que ela sabe, instantes depois, que o seu lixo está no reservatório da cave? De acordo com a condição de sensibilidade a resposta é “não”, pois a sua crença a este respeito não é sensível. Ou seja, se aquele saco ficasse de alguma forma preso a meio do caminho para o reservatório, de modo a que a sua crença seria falsa, ela ainda assim continuaria a acreditar (utilizando o mesmo método que usou no mundo atual) que o saco do lixo está agora no reservatório da cave. O problema é que este é uma instância paradigmática de conhecimento quotidiano, e se a teoria da sensibilidade não consegue dar conta desses casos, então é uma teoria com sérios problemas.

    Haverá uma melhor teoria do conhecimento? Uma solução que parece bastante prometedora e que não é suscetível aos problemas anteriores, sugerida por Sosa (1999), passa por adicionar uma condição modal de segurança à análise de conhecimento:

    (CS*) Se S sabe que p, então a crença verdadeira de S que p não poderia ter sido facilmente falsa.

    Por outras palavras, a condição de segurança advoga que a crença verdadeira de S que p é tal que, em mundos possíveis próximos (em circunstâncias similares), se S continua a formar p com a mesma base que no mundo atual, então a crença p de S continua a ser verdadeira. A condição (CS*) permite lidar com os casos Gettier, uma vez que em todos esses casos o sujeito forma uma crença verdadeira de tal forma que ela poderia ter sido muito facilmente falsa. Por exemplo, no Caso 6, o caso do Relógio, embora a crença assim formada (de que são 8h20) seja verdadeira no mundo atual, há um mundo possível próximo em que a Maria forma essa mesma crença com a mesma base (i.e. ao olhar para o relógio da sua cozinha) e em que forma uma crença falsa (i.e. num mundo possível próximo em que o relógio continua parado, mas em que ela chega à cozinha minutos antes ou minutos depois das 8h20). Ou seja, os casos de tipo Gettier são casos em que o sujeito forma, nos mundos possíveis próximos, uma crença falsa na proposição em questão (apesar de se utilizar a mesma base que no mundo atual).

    Será que se adicionarmos à CVJ a condição (CS*) teremos uma boa teoria do conhecimento? É possível argumentar que ter uma CVJ+(CS*) não é suficiente para haver conhecimento. Para mostrar isso pode-se apresentar o Caso 6, designado como “Termómetro Avariado”, adaptado a partir de Pritchard (2012): A Maria forma uma crença sobre a temperatura da sala ao consultar um termómetro que está avariado (sem que ela esteja ciente disso). Apesar disso, há alguém na sala (escondido da vista) que assegura que sempre que a Maria consulta o termómetro, o termómetro corresponde à atual temperatura da sala. Ora, a crença da Maria sobre a temperatura correta da sala parece ser segura. Ou seja, por causa da interferência da pessoa escondida, é sempre garantido que sempre que a Maria consulta o termómetro este mostra a temperatura correta na sala. Assim, nos mundos possíveis próximos em que a Maria forma a sua crença sobre a temperatura da sala, a sua crença será verdadeira. Mas apesar de ser uma crença segura, a sua crença não parece contar como conhecimento.

    O problema neste caso 8, é que o sucesso cognitivo da Maria (i.e. acreditar verdadeiramente na temperatura) não é de forma alguma um produto das suas faculdades ou processos cognitivos, mas em vez disso deve-se a fatores completamente independentes das suas faculdades ou processos (i.e., deve-se apenas à pessoa escondida na sala). Além disso também se pode sustentar que consultar um termómetro avariado não é tipicamente um método fiável de formação de crenças verdadeiras acerca da temperatura de uma sala. Deste modo, a condição (CS*) não é suficiente para o conhecimento, sendo necessário acrescentar outras condições ou reformular melhor a condição (CS*). Uma proposta de reformulação de (CS*), sugerida por Pritchard (2015), para lidar com esses problemas é acrescentar à CVJ a seguinte condição:

    (viii) a crença p de S é segura, sendo que o sucesso cognitivo de S é atribuível, parcialmente ou num grau significativo, às suas faculdades ou processos cognitivos.

    Com esta reformulação, temos uma teoria do conhecimento que, para além de lidar com os casos tipo Gettier, consegue acomodar sem problemas o caso 8. Além disso, com (viii) não há consequências negativas para o princípio do fecho. Apesar destas vantagens, é possível criticar a necessidade da condição (viii) para haver conhecimento. Por exemplo, Christoph Kelp (2016), inspirando-se nos famosos casos de Frankfurt (1969) a favor da compatibilidade entre determinismo e livre-arbítrio, apresenta o seguinte Caso 9, que designamos como “Relógio de Frankfurt”, contra a necessidade da condição (viii): O maior inimigo da Maria, um demónio poderoso, tem interesse que a Maria forme uma crença que são 8h20 ao olhar o relógio da sua cozinha quando desde as escadas. De forma a alcançar esse objetivo, o maior inimigo da Maria está preparado para ajustar o relógio para as 8h20 quando a Maria descer as escadas. Contudo, o maior inimigo da Maria é também preguiçoso. Ele agirá só se a Maria não descer as escadas, por sua livre vontade, às 8h20. Suponha-se que a Maria desce as escadas às 8h20. O maior inimigo da Maria permanece inativo. A Maria forma uma crença de que são 8h20. E são de facto 8h20, bem como o relógio da sua cozinha está a funcionar fiavelmente.

    Intuitivamente Kelp (2016) alega que a Maria sabe que são 8h20. Afinal podemos supor que a sua leitura das horas foi o resultado de faculdades cognitivas que funcionam apropriadamente, que respondem adequadamente à evidência, e são fiáveis. Além disso, o relógio está a funcionar adequadamente e o registo das horas foi preciso. Todavia, a crença da Maria não satisfaz a condição da segurança (viii). Isto porque entre os mundos possíveis próximos estão aqueles mundos em que Maria desce as escadas alguns minutos mais cedo ou mais tarde. Ora, nesses mundos o demónio intervém e, dessa forma, a Maria forma uma crença falsa de que são 8h20. Assim, a sua crença não é segura.

    Como lidar com este Caso 9? Pode-se começar por questionar: Será que, no Caso 9, a Maria tem de facto conhecimento que são 8h20? Aqui não partilho a intuição de que a Maria tem conhecimento naquele caso. Pois, afinal, dado como a Maria formou a sua crença foi um puro acaso que ela formou uma crença verdadeira. Se ela tivesse descido as escadas um minuto antes ou um minuto depois formaria uma crença falsa. Assim, foi meramente por sorte que teve uma crença verdadeira. Mas será que posso ter conhecimento por sorte? Intuitivamente não. No fundo, a Maria está a descobrir que horas são ao olhar para algo que é similar a um relógio parado, uma vez que qualquer que seja a hora que ela desça as escadas o relógio marcará sempre “8h20”. Porém, não se pode ter conhecimento das horas ao consultar algo similar a um relógio parado, mesmo que por acaso se forme uma crença verdadeira. Portanto, a condição (viii) continua a ser necessária para o conhecimento. Se esse raciocínio for procedente, ficamos com a seguinte teoria do conhecimento que parece muito plausível:

    (CVJS) S sabe que p sse:

    (i) S acredita que p,

    (ii) p é verdadeira,

    (iii) S está justificado a acreditar que p.

    (viii) a crença p de S é segura, sendo que o sucesso cognitivo de S é atribuível, parcialmente ou num grau significativo, às suas faculdades ou processos cognitivos.

    E o leitor: concorda ou não com esta teoria do conhecimento?

  • Domingos Faria Avatar

    Um puzzle filosófico sobre a oração de petição

    Uma das práticas mais comuns na religião é a oração. Existem vários tipos de oração, como a oração de agradecimento, a oração de contrição, ou a oração de petição. Aqui queremos analisar filosoficamente a oração de petição em que se pede a Deus alguma coisa ou para fazer algo (este tipo de oração é destacado, por exemplo, no Evangelho de Mateus 7, 7-12). Mas no contexto das religiões teístas e analisando a natureza do Deus teísta, será que a oração de petição é realmente eficaz? Isto parece relevante, pois se chegarmos à conclusão de que a oração de petição é ineficaz, então exige de alguma forma uma revisão na doutrina teísta e, além disso, as pessoas que fizessem tal oração estariam equivocadas (dado que a sua oração não faria qualquer diferença para algum tipo de resultado).

    Ora, é possível argumentar que a oração de petição é de alguma forma inútil ou ineficaz. Pois, suponha-se que pedimos a Deus por alguma coisa na nossa oração. Por um lado, se essa coisa for má, um Deus benevolente não iria conceder-nos isso, quer o pedíssemos ou não. Por outro lado, se essa coisa for boa, um Deus benevolente iria conceder-nos isso, quer o pedíssemos ou não. Assim, de uma forma ou de outra, a oração de petição não parece funcionar. Por outras palavras, o que se está a questionar é a eficácia da oração de petição dada a natureza de Deus. Este problema foi levantado, entre outros, pela filósofa tomista Eleonore Stump no seu artigo de 1979 “Petitionary Prayer”. Mas, seguindo Martin Pickup (2018), pode-se ser mais preciso ao explicitar este argumento em forma de prova condicional:

    1. Um agente S reza uma oração O para o resultado R. [Suposição]
    2. R ocorre se, e só se, Deus escolhe efetivar isso. [Suposição]
    3. Deus escolhe efetivar R se, e só se, é geralmente melhor R ocorrer do que não ocorrer. [Suposição]
    4. ∴ R ocorre se, e só se, é geralmente melhor R ocorrer do que não ocorrer. [De 2 e 3]
    5. Ser geralmente melhor R ocorrer do que não ocorrer não depende contrafatualmente de O. [Suposição]
    6. ∴ A ocorrência de R não depende contrafatualmente de O. [De 4 e 5]
    7. O é eficaz para R só se R depende contrafatualmente de O. [Suposição]
    8. ∴ O não é eficaz. [De 6 e 7]
    9. ∴ Se um agente S reza uma oração O para o resultado R, então O não é eficaz. [De 1 e 8]

    Vale a pena fazer uma pequena clarificação das premissas: a premissa (1) é uma afirmação geral de um caso de oração de petição e é suposta para prova condicional. A premissa (2) é uma alegação sobre a soberania de Deus acerca o que o mundo contém. Em (3) diz-se que Deus escolhe efetivar um evento só quando é melhor para o mundo que ocorra do que o contrário. Ou seja, dada a conceção tradicional do Deus teísta, parece que Deus só pretenderia e atualizaria eventos em que a sua ocorrência possa contribuir em geral para a bondade do mundo. É importante referir que aqui estamos a abordar o valor de um evento dado o seu lugar em um mosaico de outros eventos. Por isso, pode haver casos concretos em que é melhor um evento mau ocorrer do que não ocorrer (como no caso de uma má ação que resulta do livre-arbítrio humano – nesse caso um mau evento pode ser uma condição necessária para um bem maior). Quanto à premissa (5), aqui assume-se uma conceção de oração de petição em termos de dependência contrafatual, ou seja, uma oração O faz uma diferença para um resultado R quando R não ocorreria se O não ocorresse. Mas, dada a suposição sobre a relação entre o valor de R e O, a ocorrência ou não de R não depende contrafatualmente de O. Pelo contrário, a ocorrência de R depende apenas do seu valor geral, sendo este valor geral contrafatualmente independente de O. Por outras palavras, o que a premissa (5) alega é que a oração em si mesma não faz uma diferença quanto a se é melhor um evento ocorrer do que não ocorrer. Por fim, na premissa (7) limita-se a afirmar que a dependência contrafatual é uma condição necessária para que uma oração de petição seja eficaz. Todos os restantes passos no argumento são uma derivação logicamente válida dessas premissas, permitindo assim concluir que a oração de petição é ineficaz.

    Será este um argumento sólido? Será que se provou que a oração de petição é inútil ou ineficaz? Negar a premissa (5) tem sido a via mais popular de resolver este problema. A ideia é evidenciar que a oração pode tornar um evento mais valioso. Assim, se é ou não melhor um evento ocorrer depende contrafatualmente de uma oração para esse evento. Para mostrar isso, Stump (1979) e Swinburne (1998) argumentam que a oração de petição amplia a nossa responsabilidade e, dessa forma, Deus realizar algum evento devido a uma oração de petição tem mais valor como exercício dessa responsabilidade do que se Deus realizasse esse evento sem a petição. Ou seja, um resultado R tem um valor X se produzido sem a oração O, mas tem um valor de X+Y se produzido com O (onde Y é maior que zero). É importante sublinhar que, para haver dependência contrafatual entre O e R, deve ser o caso que R não ocorreria sem O. Ou seja, o valor de X e Y deve ser tal que se R tiver o valor Xnão ocorreria, mas se tiver o valor X+Y então ocorreria.

    Na mesma linha de raciocínio, e seguindo Daniel Howard-Snyder (2010), pode-se argumentar que pedir a Deus para fazer ϕ pode alterar o estatuto moral de ϕ. Howard-Snyder apresenta vários exemplos como o seguinte: se tu me vês a caminhar ao longo da estrada, tu podes parar e oferecer-me boleia (ou “carona” para os amigos brasileiros), ou simplesmente podes continuar a viagem. Tu não estás moralmente obrigado a parar. Mas, quando eu começo a esbracejar e a correr para ti, isso pode dar-te uma razão prima facie para parar. É verdade que isso não proporciona uma razão ultima facie para parar, pois pode ainda assim haver razões contrárias para tu não parares e que eu desconheça por completo, mas essas razões têm de ser mais significativas do que o meu pedido. De forma análoga, quando pedimos a Deus para fazer algo, isso dá-lhe uma razão prima facie para o fazer. É possível que isso seja um fator que ele pode considerar quando decide efetivar ou não um resultado R. Será esta uma boa analogia?

    Uma outra via para se criticar o argumento consiste em atacar a premissa (3) em que se sustenta que Deus escolhe efetivar um resultado R se, e só se, é geralmente melhor R ocorrer do que não ocorrer. Mas, se isso é verdade, então todos e apenas os melhores eventos ocorrerão dado que, segundo essa premissa, Deus efetiva o melhor resultado ou evento do que qualquer alternativa possível. Assim, de acordo com (3), Deus efetiva o melhor dos mundos possíveis. Contudo, não é nada claro que exista o melhor dos mundos possíveis. Isto porque pode haver mais do que um valor máximo, ou pode haver uma série infinita de mundos de valor crescente sem “o” valor máximo. Por exemplo, Alvin Plantinga na página 34 do livro God, Freedom, and Evil formula as seguintes perguntas retóricas:

    Qual é a razão para supor que há algo como o melhor de todos os mundos possíveis? Não importa quão maravilhoso seja um mundo — com não importa quantas pessoas desfrutando de uma bem-aventurança perfeita — não será possível que haja um mundo ainda melhor com ainda mais pessoas desfrutando de ainda mais bem-aventurança perfeita?

    Portanto, a premissa (3) torna Deus incapaz de efetivar qualquer resultado ou evento, dado que não há, ou é bastante duvidoso que exista, tal coisa como “o” melhor de todos os mundos possíveis. Como resposta talvez se possa argumentar que aquilo que se deve interpretar na premissa (3) é que Deus quer um estado de coisas tal que cada resultado ou evento no mundo contribua positivamente para o seu valor geral ou global, ainda que não exista “o” melhor de todos os mundos possíveis. Mas essa interpretação também parece ter fragilidades. Pois, suponha-se que há dois mundos possíveis w1 e w2 de igual valor, em que um evento E1 ocorre em w1 e um outro evento E2 ocorre em w2, sendo E1 e E2 incompatíveis. Suponha-se igualmente que o mundo que não tem E1 nem E2 é pior do que os mundos w1 e w2 que os contêm. Ora, seguindo esta última interpretação da premissa (3), Deus deveria atualizar tanto E1 como E2. Mas, uma vez que tais eventos são incompatíveis, Deus não o poderá fazer. E, por isso, mais uma vez a premissa (3) seria falsa. Pelo contrário, um defensor da eficácia da oração de petição – tal como o filósofo Bradley Rettler no artigo “A Possible Worlds Solution to The Puzzle of Petitionary Prayer” de 2017 – poderia alegar que este tipo de oração é eficaz precisamente quando há dois mundos possíveis de igual valor (como w1 e w2); assim, a oração de petição incentiva ou proporcionava uma razão a Deus para escolher e efetivar um dado evento (e, por conseguinte, mundo possível) em vez de outro.

    Serão estas objeções plausíveis? Ainda que não o sejam completamente, pode-se também argumentar que mesmo se a oração de petição não faz qualquer diferença sobre aquilo que Deus faz ou deixa de fazer, tem mesmo assim um propósito uma vez que pode fazer uma diferença em nós. De um ponto de vista mais prudencial, a oração de petição pode aumentar a consciência das nossas necessidades e das necessidades dos outros e, dessa forma, aumentar a probabilidade de agirmos para atender essas necessidades. Seria assim uma forma de reorientar o nosso foco do mal para o bem, do desespero para a esperança. Com base nesta ideia, pelo menos de uma perspetiva prudencial a oração de petição teria alguma eficácia.

  • Domingos Faria Avatar

    Introdução ao Problema da Guerra Justa

    Quando se questiona “será que existem guerras justas?” o que se está a perguntar, de forma normativa, é o seguinte: alguma guerra poderá ter algum tipo de justificação ética ou, pelo contrário, será que todas as guerras são imorais? Ou seja, existem ou não justificações éticas para algum tipo de guerra? Afinal, poderá algum tipo de guerra ser justificada? Se sim, que justificações éticas são essas e com que critérios?

    Como resposta a este problema da guerra justa existem duas abordagens principais:

    1. Aqueles que defendem que não há qualquer justificação moral para as guerras.
    2. Aqueles que defendem que pode haver alguns critérios/justificações morais para algum tipo de guerra.

    Por um lado, quem defende (1) poderá ser pacifista, ao defender que todas as guerras são injustas ou imorais, pois implicam provocar deliberadamente a morte a outros seres humanos. Mas quem defende (1) também poderá ser realista, tal como Nicolau Maquiavel ou Thomas Hobbes, e sustentar que os conceitos de justiça e injustiça, de moralidade ou imoralidade, não se aplicam à guerra, pois em tempo de guerra as leis e as normas morais devem ser suspensas.

    Por outro lado, quem defende (2) são os chamados “teóricos da guerra justa” e eles procuram estabelecer critérios que permitam avaliar a justiça/injustiça, ou a moralidade/imoralidade, de uma guerra. Mas existem duas versões desta teoria da guerra justa: a versão tradicional e a versão revista. A versão tradicional, defendida por Michael Walzer, estabelece a distinção entre princípios jus ad bellum (justiça na passagem à guerra) e jus in bello (justiça na guerra). 

    Quanto ao jus ad bellum, procura-se determinar em que condições é legítimo o recurso à guerra, como o caso da guerra ser feita simultaneamente por causa justa, com uma intenção correta, com uma autoridade legítima, em último recurso, com perspetivas de sucesso, com proporcionalidade. Quanto ao jus in bello, procura-se princípios que regulam a conduta dos combatentes durante a guerra, como a necessidade, proporcionalidade, e discriminação. Além disso, na versão tradicional da guerra justa defende-se três teses: (T1) jus ad bellum e jus in bello são princípios independentes; (T2) igualdade moral dos soldados; e (T3) imunidade dos não-combatentes. Estas teses baseiam-se no princípio da “permissibilidade da força defensiva” segundo o qual o uso de força defensiva é moralmente permissível.

    Contudo, a versão revista da teoria da guerra justa, defendida por Jeff McMahan, apresenta alguns contraexemplos para refutar esse princípio da “permissibilidade da força defensiva” o que permite negar as teses (T1), (T2), e (T3) da versão tradicional. Um desses contraexemplos, apresentado por Jeff McMahan em “The Ethics of Killing in War”, é o seguinte:

    “Suponha que um bandido o ataca, sem qualquer justificação, ou desculpa, e que o ataque inicial falhou na tentativa de o dominar. Com razões para acreditar que, de outra forma, o bandido vai acabar por matá-lo, o leitor ataca-o justificadamente em autodefesa. Se a força defensiva é permissível, o facto de o leitor passar a representar uma ameaça para o seu atacante faz com que seja, agora, justificado, ou permissível, que ele o ataque a si – ou até mesmo que o mate, se o seu contra-ataque defensivo ameaçar a vida dele. (…) A maioria das pessoas considera que é impossível aceitar que, ao atacá-lo injustificadamente, justificando, deste modo, o seu recurso à autodefesa, o atacante possa criar condições em que se torna permissível que ele o ataque. A maioria acredita que, nestas circunstâncias, o atacante não tem qualquer direito de não ser atacado por si, que o seu ataque não constituiria uma ação errada para com ele e, por conseguinte, que ele não tem qualquer direito de autodefesa contra o seu, justificado, ataque defensivo. Mas se o seu atacante não tem qualquer direito de autodefesa, então nem toda a força defensiva é permissível”.

    Além disso, e mais pela positiva, na versão revista considera-se que existe uma perfeita continuidade entre a moralidade comum e a moralidade da guerra, pois aquilo que permite justificar certos atos individuais de guerra é exatamente o mesmo princípio de legítima defesa (contra aqueles que são moralmente responsáveis por iniciar ou manter uma ameaça injusta) que se aplica nas nossas vidas quotidianas.

    Qual destas teorias será mais plausível? Porquê?

  • Domingos Faria Avatar

    Os dilemas morais são possíveis?

    Considere-se o seguinte caso de um suposto dilema moral: durante a 2ª Guerra Mundial um aluno de Jean-Paul Sartre (1957) tinha a mãe doente; por causa disso prometeu-lhe que iria cuidar dela todos os dias. Porém, o exercito francês estava a responder à invasão dos nazis e, por isso, este aluno tinha a obrigação de se alistar ao exercito para defender o seu país. O estudante acreditava que tinha obrigações em conflito: por um lado, tinha a obrigação de cuidar da sua mãe e, dessa forma, não podia alistar-se no exército para impedir a invasão nazista. Mas, por outro lado, tinha a obrigação de tentar contribuir para derrotar um agressor injusto e, desse modo, não podia cumprir a sua promessa de ficar em casa a cuidar da sua mãe. Assim, de uma forma ou de outra, tal estudante estaria a agir de forma errada.

    Com base neste caso podemos afirmar que um dilema moral genuíno é caraterizado pelos seguintes elementos: (i) é obrigatório que um sujeito S realize duas ações A e B; (ii) S pode fazer A; (iii) S pode fazer B; mas (iv) S não pode fazer A e B em simultâneo. Deste modo, S parece condenado a um fracasso moral, pois não importa o que ele faça, S não realizará algo que ele deve fazer. Por outras palavras, podemos definir um dilema moral genuíno como uma situação em que um sujeito tem uma obrigação ou exigência moral de fazer duas ações, mas não pode cumprir as duas. Para sermos mais rigorosos podemos formular esta mesma ideia com recurso à lógica deôntica. Aceitando-se que Oϕ designe que o sujeito tem uma obrigação ou exigência moral de fazer ϕ e que Cψ designe que o sujeito pode cumprir ψ, pode-se apresentar a seguinte formulação de dilemas morais genuínos (abreviando DMG):

    DMG: (OA ∧ OB)∧¬C(A ∧ B)

    Mas haverá DMG? Serão estes sequer possíveis? O caso do aluno Sartre que apresentamos no início parece apontar intuitivamente na direção de que tais DMG são possíveis e até mesmo efetivos. No entanto, há dois argumentos que visam mostrar que DMG não são possíveis. Tais argumentos procuram elucidar que DMG são inconsistentes com alguns princípios morais plausíveis e, por isso, se quisermos manter tais princípios, teremos de negar DMG. O primeiro argumento utiliza, como princípios morais comuns e plausíveis, o princípio de consistência deôntica (PCD), de acordo com o qual uma ação não pode ser simultaneamente obrigatória e proibida1, e o princípio de lógica deôntica (PLD), segundo o qual se é fisicamente necessário que A implica B, então a obrigatoriedade de A implica a obrigatoriedade de B. Podemos formalizar estes princípios da seguinte forma:

    PCDOA → ¬O¬A

    PLD: □(A → B)→(OA → OB)

    Tendo em conta estes princípios morais plausíveis, podemos construir o primeiro argumento contra DMG por redução ao absurdo, tal como se segue:

    1. (OA ∧ OB)∧¬C(A ∧ B) [Suposição DMG]
    2. OA ∧ OB [De 1]
    3. ¬C(A ∧ B) [De 1]
    4. □¬(A ∧ B) [De 3]
    5. □(¬A ∧ ¬B) [De 4]
    6. □(A → ¬B) [De 5]
    7. □(A → ¬B)→(OA → O¬B) [Instância de PLD]
    8. OA → O¬B [De 6 e 7]
    9. OA [De 2]
    10. O¬B [De 8 e 9]
    11. OB [De 2]
    12. OB → ¬O¬B [Instância de PCD]
    13. ¬O¬B [De 11 e 12]
    14. ¬((OA ∧ OB)∧¬C(A ∧ B)) [De 1, 11 e 13, por reductio]

    Ora, como nos passos (11) e (13) encontramos uma contradição, teremos de concluir em (14) por redução ao absurdo que a nossa suposição inicial é falsa e, por isso, não existem DMG. Ou seja, não podemos aceitar consistentemente os princípios morais plausíveis, PCL e PLD, e ao mesmo tempo aceitar DMG. Por isso, se quisermos continuar a aceitar tais princípios morais plausíveis, temos de negar DMG.

    O segundo argumento contra DMG também procede por redução ao absurdo, mas baseia-se em diferentes princípios morais plausíveis e comuns. Neste segundo argumento recorre-se ao princípio da aglomeração (PDA), de acordo com o qual se é obrigatório fazer A e é obrigatório fazer B, então é obrigatório fazer A e B; bem como se recorre ao princípio kantiano de que dever implica poder (PDP), segundo o qual é moralmente obrigatório realizar A só se é possível cumprir A. Tais princípios podem ser formalizados desta forma:

    PDA: (OA ∧ OB)→O(A ∧ B)

    PDP: (OA → CA)

    Com base em PDA e PDP, para concluirmos que não há DMG podemos construir o seguinte argumento:

    1. (OA ∧ OB)∧¬C(A ∧ B) [Suposição DMG]
    2. OA ∧ OB [De 1]
    3. ¬C(A ∧ B) [De 1]
    4. (OA ∧ OB)→O(A ∧ B) [Instância de PDA]
    5. O(A ∧ B) [De 2 e 4]
    6. O(A ∧ B)→C(A ∧ B) [Instância de PDP]
    7. C(A ∧ B) [De 5 e 6]
    8. ¬((OA ∧ OB)∧¬C(A ∧ B)) [De 1, 3 e 7, por reductio]

    Mais uma vez, princípios morais comuns e plausíveis, como PDA e PDP, são logicamente inconsistentes com DMG. Por isso, para mantermos tais princípios plausíveis teremos de negar DMG. Contudo, se quisermos aceitar a possibilidade de DMG teremos de estar dispostos a negar algum dos princípios morais (PCD, PLD, PDA, ou PDP). Mas teremos boas razões para negar algum desses princípios morais? Se sim, que razões serão essas? Haverá bons contraexemplos para algum destes princípios?


    1. Por outras palavras, se A é moralmente obrigatória, então não é obrigatório não realizar A (i.e., A é moralmente permissível).↩︎