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  • Domingos Faria Avatar

    Breve apreciação do livro Lógica Elementar

    O livro Lógica Elementar (2019, ed. 70) de Desidério Murcho parece-me apresentar os conteúdos essenciais para uma boa abordagem introdutória à disciplina de lógica no Ensino Superior (sendo que os capítulos 1 e 2 podem ser úteis para o Ensino Secundário), além de que relaciona a lógica com as outras áreas da filosofia (como a metafísica, epistemologia, filosofia da linguagem, filosofia da religião, etc). Considero que estamos perante um excelente livro, bem escrito e cuidadosamente pensado (tal como o Desidério nos tem tão bem habituado).

    Contudo, se este livro é dirigido para um público do Ensino Superior, penso que peca por não introduzir, ainda que de forma muito elementar, algumas lógicas não-clássicas. Na p. 37 aparece a expressão “lógicas não-clássicas”, mas não é minimamente explicada. É verdade que este é um livro de introdução; mas tipicamente os livros internacionais de introdução à lógica têm pelo menos um pequeno capítulo onde se discutem alguns desafios à lógica clássica (como o paradoxo do mentiroso ou o paradoxo de sorites) e que outras alternativas à lógica clássica se podem conceber (como lógicas com mais de dois valores de verdade – ou seja, para além do verdadeiro e do falso, pode-se ter o valor indeterminado, entre outros). Estou a pensar em livros como Introduction to Logic (2017, Routledge) do Harry Gensler ou Logic: the basics (2017, Routledge) do Jc Beall. Talvez fosse mais útil para o leitor português que o apêndice apresentado no livro do Desidério fosse sobre alguma lógica não-clássica (como o exemplo da lógica paraconsistente, intuicionista, ou da relevância) do que sobre a já tão conhecida lógica aristotélica.

    Ainda assim, a forma como está tratada a lógica aristotélica neste livro é meritória. Isto porque é elucidado como é que se provam validades no sistema dedutivo aristotélico. Porém, só é apresentada uma derivação direta de um argumento (p. 309) e fica-se sem perceber como se fazem as derivações indiretas ou por reductio. Mas para aprofundar isso escrevi já há algum tempo um texto que mostra como se fazem derivações diretas e indiretas que pode ser lido aqui. Concordo com o Desidério quando diz que tipicamente não se ensina a fazer provas ou derivações no sistema dedutivo aristotélico (pelo menos no Ensino Secundário) e fica-se apenas por meia dúzia de regras, que nem são regras de inferência nem se aplicam ao raciocínio dedutivo em geral. Ora, se ficarmos apenas por essa “regras”, não se está a ensinar realmente lógica aristotélica.

    A estrutura deste livro parece-me fluída: O primeiro capítulo introduz os conceitos mais básicos da lógica. Saliento o facto de que determinados conceitos parecem estar introduzidos, à primeira vista, como se não houvesse uma grande discussão em torno deles e fossem consensuais. (Pelo menos dá essa impressão! De qualquer forma vale a pena recordar que este é apenas um livro de introdução). Deixo aqui um exemplo simples. Na p. 14 diz-se que os argumentos “só têm uma conclusão – quando têm mais de uma, trata-se de vários raciocínios encadeados”. Contudo, alguns filósofos têm feito algum trabalho nos últimos anos para dar sentido à ideia de que podem haver raciocínios genuínos com múltiplas conclusões. Veja-se um desses exemplos aqui. Ainda assim, o Desidério aceita (cf. 3.11) uma ideia parecida, mas mais trivial ou não tão exigente, de que qualquer frase implica validamente múltiplas frases. Outras ideias neste capítulo inicial parecem ser apresentadas de forma exagerada. Por exemplo, quando se afirma (na p. 15) que

    “Só raciocinando se consegue ir além do conhecimento do aqui-e-agora”.

    Ou seja, parece que o autor deste livro defende que para se saber a maior parte das coisas (que não sejam o aqui-e-agora) é preciso apresentar explicitamente um argumento (com premissas e conclusão). Contudo, uma parte significativa dos epistemólogos contemporâneos nega essa ideia, pois defendem que a maioria do conhecimento dos seres humanos é obtido não por argumentos explícitos, mas sim pelo testemunho. Por exemplo, sei que água é H2O porque alguém me disse. Agora a questão interessante é saber quais são as condições para haver um testemunho justificado. Seguindo a tradição filosófica de Thomas Reid (e oposta a David Hume) para se estar justificado no testemunho não é preciso qualquer tipo de argumento, raciocínio, ou inferência e, dessa forma, o Desidério está equivocado neste tipo de alegação. Para uma introdução à epistemologia do testemunho veja-se aqui uma apresentação minha; para uma discussão relacionada veja-se este texto. Aquilo que o Desidério discute na p. 15 poderia estar mais relacionado com a secção 8.5.; ou seja, a questão da aquisição do conhecimento (ou do conhecimento direto de algo) deveria estar melhor relacionada com a questão da transmissão desse conhecimento (ou conhecimento indireto de algo).

    Ainda neste primeiro capítulo é interessante, na secção 1.2 e 1.3, a opção do Desidério por não utilizar o conceito de “proposição”, preferindo-se a expressão “frases com valor de verdade”. Esta preferência por não usar o termo “proposição” parece fazer sentido dado que não se está assim comprometido com a discussão polémica sobre a natureza das proposições. Uma outra novidade interessante é a explicação da validade em termos epistémicos (p. 26) da seguinte forma:

    “Uma raciocínio é válido sse o conhecimento das condições de verdade das suas frases for suficiente para saber que não tem conclusão falsa caso as premissas sejam todas verdadeiras”.

    Esta definição tem a vantagem de evitar os termos modais, como a noção de “impossibilidade”, que Quine critica. Contudo, há muitas questões que ficam por responder: Será que a noção epistémica de validade não nos obriga também a apresentar uma teoria do conhecimento? Ou melhor, será que essa conceção de validade funciona com todas as teorias do conhecimento? Além disso, essa definição exige apenas conhecimento de primeira ordem ou também de segunda ordem? Isto é, quando se diz “sabe-se que se as premissas forem todas verdadeiras, a conclusão também o será”, basta saber ainda que não se tenha consciência disso? Ou será que se exige uma condição mais forte: para afirmar que uma argumento é válido é preciso conhecer que se sabe que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o será? Pelo facto da validade estar dependente do conhecimento e como o conhecimento é relativo a agentes, parece então que a validade está dependente de agentes. Mas ainda que num futuro longínquo não existam agentes cognitivos capazes de conhecimento, será que deixariam de haver argumentos válidos? Estas questões não têm resposta neste livro, mas valeria a pena esclarecer.

    Nos capítulo 2 e 3 trabalha-se a lógica proposicional clássica, com o método das tabelas de validade e das derivações. Algumas convenções opcionais são utilizadas, como o não uso de parêntesis externos (mas aconselho o seu uso dado que apresenta vantagens pedagógicas) e o uso de uma tipologia de diferentes parêntesis. Na p. 43 diz que “usando apenas os cinco operadores se consegue obter as condições de verdade de qualquer frase com operadores verofuncionais ternários, quaternários, etc”. No entanto, para realizar essa tarefa não são precisos cinco operadores, bastam dois: a negação e a implicação, tal como fazia Gottlob Frege nos Begriffsschrift (1879). Por exemplo, para se determinar o valor de verdade de uma bicondicional (p↔q) basta usar os operadores da negação e implicação da seguinte forma:

    ¬((p→q)→¬(q→p))

    Por isso, de forma rigorosa, os operadores mais primitivos são a negação e a implicação. Um outro pequeno pormenor: nestes capítulos iniciais o Desidério usa o símbolo “⇄” para a bicondicional, quando o que está melhor estabelecido é “↔”. Nos capítulos 4 e 5 analisa-se a lógica de predicados clássica com identidade. Os exemplos utilizados parecem adequados e utilizam-se derivações tanto diretas como indiretas (por reductio). O capítulo 5 é interessante pela discussão das descrições definidas e do compromisso ontológico. No capítulo 6 introduz-se o método das árvores de refutação que tem grandes vantagens de simplicidade, permitindo provar quer a validade quer a invalidade de qualquer argumento com muita facilidade, sendo também extensível para qualquer tipo de lógica (por exemplo, no livro An Introduction to Non-Classical Logic o filósofo Graham Priest utiliza este método para os vários tipos de lógicas não-clássicas). Quando um ramo fecha o Desidério opta pela convenção de sublinhar esse ramo; no entanto, costuma-se usar mais a convenção de colocar um “x” por baixo do ramo fechado. Seria bom explicar essa preferência.

    O método das árvores também é muito útil para o capítulo 7 que trata a lógica modal. Este capítulo parece-me bem completo, apresentando todos os sistemas principais da lógica modal. Aqui usa-se a estranha convenção das letras gregas como designação de mundos possíveis. Assim, por exemplo, para se indicar que o mundo possível β é acessível a α, usa-se α−β. No entanto, a convenção habitual nos livros internacionais de lógica para indicar mundos possíveis é utilizar a numeração w0, w1, w2, …, wn. Por exemplo, é costume escrever-se 0R1 para dizer que w1 é acessível a partir de w0. Esta convenção utilizada pelo Graham Priest parece mais simples do que a utilizada por Desidério, que inclusive utiliza chavetas como indicação do mundo a que se está a referir. Por exemplo, numa árvore de refutação para se escrever que p é o caso no mundo possível 1, Priest escreve simplesmente “p,1” a passo que Desidério escreve “β{p}”. Seria interessante que houvesse algum tipo de justificação para todas estas convenções diferentes.

    Um dos argumentos influentes na filosofia contemporânea que não aparece neste capítulo, mas seria interessante aparecer, é o argumento de Kripke contra a identidade tipo-tipo (no âmbito da filosofia da mente). A apresentação do argumento é relativamente simples. Sendo d usado para representar “dor” e c usado para representar “a estimulação das fibras-c”, a derivação pode ser construída da seguinte forma:

    1. ∀x∀y((x=y)→□(x=y))[Verdade Lógica]
    2. ((d=c)→□(d=c))[1, E∀]
    3. ¬□(d=c)[Premissa]
    4. ¬(d=c)[2 e 3, MT]

    Para este argumento ser cogente a exemplificação na linha 2 tem de ser feita por termos singulares genuínos, isto é, com designadores rígidos. Contudo, é possível criticar este argumento ao sustentar-se que “dor” e “a estimulação das fibras-c” não são designadores rígidos. Veja-se aqui uma outra crítica que fiz a este argumento. No capítulo 8 deste livro examina-se alguns pormenores da lógica não-dedutiva, terminando com alguns aspetos da lógica epistémica. No final do livro podemos consultar igualmente exercícios resolvidos e uma interessante bibliografia.

    Um dos aspetos mais significativos que encontrei neste livro foi algo que tenho defendido há muito tempo: a lógica deve ser usada para compreender e analisar problemas, teorias, e argumentos filosóficos, bem como tem uma relação estreita com as outras áreas da filosofia. Isso vê-se bem neste livro quando o autor recorre à lógica para examinar o problema do mal (na secção 3.9), alguns problemas éticos (na secção 5.5 e 5.6), o problema dos possibilia (na secção 7.8), o argumento ontológico (na secção 7.12), entre outros.

    Aqui gostaria de sublinhar apenas alguns pormenores sobre a análise do argumento ontológico. Em relação a este argumento o Desidério faz uma análise muito semelhante àquela que eu já tinha apresentado aqui. Recorde-se que, sendo p a abreviatura da proposição de que Deus existe, o argumento ontológico modal pode ter a seguinte estrutura:

    1. ◊p
    2. (□p∨¬◊p)
    3. ∴□p[1 e 2, SD]

    Na segunda premissa afirma-se que Deus, se existir, é um existente necessário; ou seja, não é um existente contingente. Por isso, é necessário que Deus exista ou é impossível que Deus exista. Mas na primeira premissa afirma-se que é possível que Deus exista. Por isso, pode-se concluir que Deus existe necessariamente, inclusive no nosso mundo atual.

    O nosso ponto aqui foi que se seguirmos uma linha argumentativa parecida a Plantinga, em que se prescinde de qualquer razão positiva a favor da primeira premissa, então essa estrutura lógica também permitiria provar absurdamente a conjectura de Goldbach (de que qualquer número par maior que 2 é igual à soma de dois números primos), tirando assim o trabalho aos matemáticos. O Desidério acrescenta igualmente que a possibilidade na premissa 1 está a ser lida de uma forma concetual, enquanto que na premissa 2 os operadores modais estão a ser lidos de forma alética (como modos da própria verdade), sendo, por isso, falacioso (nessa interpretação) concluir que Deus existe. Esta crítica vai ao encontro da minha, mas não critica o argumento ontológico por si mesmo. Critica apenas a defesa de Plantinga do argumento ontológico.

    Contudo, ao contrário do que o Desidério dá a entender nessa secção, existem outras formas de defender o argumento ontológico que escapam a essas críticas. A questão central passa por tentar apresentar razões positivas a favor da possibilidade alética da existência de Deus, pois dessa forma já não haverá qualquer falácia (dado que os operadores modais tanto na premissa 1 como na 2 estarão a ser interpretados de forma alética). Mas existem tais razões positivas a favor de 1? E serão essas razões plausíveis? Tentei dar o meu contributo sobre isso aqui e parece-me que a discussão atual em torno do argumento ontológico está muito longe de morrer.

    É bom ver que este livro do Desidério, para além de constituir uma excelente introdução à lógica, traz para o debate muitos pormenores da filosofia atual. É uma boa leitura!

  • Domingos Faria Avatar

    Fundamentalismo católico sobre o movimento LGBT

    Tenho receio dos textos parecidos àquele que escreveu a professora Margarida Miranda, com o título Educação sexual sem cegonhas, ou educar para amar (publicado no site PontoSJ – ver aqui), e do seu caráter falacioso que pode semear na sociedade algumas falsas ideias sobre o complexo fenómeno LGBT no seu global, dando achas para a fogueira do populismo de extrema-direita. Este texto publicado no PontoSJ parece-me cometer uma instância da falácia da generalização precipitada. A estratégia desta falácia é simples: pega-se em alguns aspetos negativos N de alguns membros de um dado grupo G e afirma-se que todo o G tem N (quando isso não acontece de facto). Parece-me que isso ocorre neste texto: pega-se em alguns aspetos negativos de alguns membros do grupo LGBT para dizer que todo o grupo LGBT tem esses aspetos negativos. Mas repare-se que esse tipo de argumentação está à mesma altura daqueles que pegam em alguns aspetos negativos de alguns membros da Igreja Católica (p.e. pedofilia, corrupção, etc) e afirmam que todos os membros da Igreja têm esses aspetos negativos e que, por isso, na Igreja só há pedofilia e corrupção (acho que já ouvimos isso de ateus mais fundamentalistas!). Mas pelo facto de haver casos criminosos de pedofilia na Igreja daí não se segue que tudo o que acontece na Igreja seja mau, tal como pelo facto de haver atitudes mais extremistas por alguns membros do grupo LGBT (como aqueles casos mais extremos da escola primária em Londres, etc) daí não se segue que tudo o que acontece no grupo LGBT seja mau. E é estranho a postura argumentativa da autora deste texto: por que razão só encontra vícios no grupo LGBT? Não há qualquer virtude no movimento LGBT? Faz-me lembrar aqueles ateus fundamentalistas, tipo Dawkins, que só vêm vícios na Igreja e que o fenómeno religioso deve ser eliminado por ser um vírus. A argumentação do texto apresentado parece muito semelhante aos dos fundamentalistas religiosos: o movimento ou grupo LGBT é uma espécie de vírus, só tem vícios, que deve ser eliminado a todo o custo da sociedade. Faz-me impressão este tipo de fundamentalismo, pois estão a caricaturar ou a fazer uma falácia do espantalho da realidade a ser descritas: num caso a caricatura é sobre a religião, no outro caso é sobre o movimento LGBT.

    Sim, é preciso reconhecer que no movimento LGBT há alguns aspetos negativos ou alguns sectores são mais extremistas (mas isso também ocorre em qualquer grande grupo, como na Igreja Católica, que também padece de alguns aspetos negativos e alguns sectores são mais extremistas, com “latins e latinórios, rendinhas e rendilhados, vénias e salamaleques” como descreveu recentemente o bispo das forças armadas). Apesar disso, é preciso saber reconhecer também as virtudes desse grupo e de que forma podem ser benéficas para a sociedade. Sobre isso, o livro Building a Bridge: How the Catholic Church and the LGBT Community Can Enter into a Relationship of Respect, Compassion, and Sensitivity, do padre jesuíta James Martin, pode dar algumas chaves hermenêuticas sobre essas virtudes e sobre como se pode ser ao mesmo tempo Católico e estar no movimento LGBT. Isso não é incompatível (ao contrário do que se quer fazer passar neste texto). Ao contrário do que se diz no texto, pode-se defender ao mesmo tempo a família e fazer parte do movimento LGBT (ou dos seus sectores mais moderados). E sobretudo é preciso olhar para os testemunhos vivos: pessoas católicas concretas que lidam diariamente, nas suas famílias e comunidades, com crianças, jovens e adultos com problemas de identidade de género, transsexualidade, transgénero, etc. Recomendo as seguintes leituras para se consiga ver que o movimento LGBT também pode ter virtudes:

    Um desafio: depois destas leituras será que continuamos a ter uma visão demasiado simplista e fundamentalista do movimento LGBT? Será que conseguimos ver algumas das virtudes e aspetos positivos que podem haver neste movimento? Ou só conseguimos ver aspetos negativos como faz o padre Gonçalo Portocarrero de Almada (ver aqui) e a professora Margarida Miranda neste texto do PontoSJ?

  • Domingos Faria Avatar

    O cristianismo e os seus puzzles filosóficos

    Muitos dos problemas da teologia estão repletos de puzzles filosóficos. Um desses puzzles tem a ver com o facto dos cristãos acreditarem que Cristo tem duas naturezas complementares, uma divina e outra humana, que parecem contraditórias. Uma forma de mostrar esse problema passa por apresentar argumentos parecidos ao seguinte:

    1. Cristo é imutável (em virtude da natureza divina de Cristo).
    2. Cristo é mutável (em virtude da natureza humana de Cristo).
    3. Logo, Cristo é simultaneamente mutável e imutável. [De 1 e 2]

    Existem várias tentativas para evitar a contrição presente em 3. Por exemplo, pode-se negar o princípio de que algo que exemplifique uma natureza N tem quaisquer propriedades que são implicadas por ter a natureza N. Rejeitar todas as contradições lógicas (ou seja, frases da forma é verdade que p e é falso que p), exige a rejeição de 1, 2, ou 3. Essa tem sido a abordagem mais tradicional em que se segue a lógica clássica. Mas existe outra forma de lidar com este puzzle ao aceitar 3 (com auxílio de uma lógica paraconsistente) e, assim, ao afirmar que é verdade que Cristo é mutável e é falso que Cristo é mutável. A ideia é que algumas contradições são verdadeiras. Assim, com este tipo de lógica, rejeita-se o princípio da explosão da lógica clássica (também conhecido como ex falso quodlibet) de acordo com o qual:

    (A∧¬A)⊢B

    Ou seja, de acordo com a lógica clássica, a partir de uma contradição, qualquer coisa se segue. Mas uma lógica paraconsistente, como a de implicação de primeiro grau(“first degree entailment”), não aceita esse princípio. Assim, neste tipo de lógica nem todas as contradições são explosivas. E a contradição presente em 3 seria um desses casos e, por isso, não é problemático aceitar 3. Por outras palavras, uma frase A é absurda de acordo com uma teoria T se, e só se, A é explosiva de acordo com T. Contudo, pode-se defender que 3 não é absurda e, por isso, não é explosiva. Para uma forte defesa desta perspetiva vale a pena ler o artigo do filósofo Jc Beall com o título Christ – A Contradiction – A Defense of Contradictory Christology. Esse artigo e outros textos, com um conjunto alargado de respostas e objeções, estão disponíveis aqui. É interessante ver que também um outro excelente filósofo, Graham Priest, aplicou aqui uma estratégia parecida para defender a religião budista.

  • Domingos Faria Avatar

    Falácias sobre a Eutanásia

    É pena que o debate público em torno da eutanásia (quer se seja a favor ou contra) esteja tão minado com falácias.

    Um desses exemplos é o texto publicado pela Laurinda Alves. Veja-se aqui. Por exemplo, a certa altura ela sustenta que “Dizer a alguém que a sua vida não tem sentido e concordar que a única saída é a morte (…) é equivalente a empurrar para o abismo e desumaniza uma sociedade inteira”. Mas isto é uma clara falácia do espantalho. A tese dos defensores da eutanásia não é essa que a Laurianda Alves identifica. Para ver isso mais claramente é preciso esclarecer uma ambiguidade na expressão “sentido da vida” ou “valor da vida”. Por um lado, (1) podemos usar “sentido da vida” ou “valor da vida” para referir à qualidade de uma vida. E isso é uma questão de grau – há vidas que correm melhor e outras que são uma angústia tremenda tanto a nível físico como psicológico. Por outro lado, (2) podemos usar “sentido da vida” ou “valor da vida” para referir a dignidade da pessoa que vive, do sujeito que tem a vida. Ora, quem defende a eutanásia voluntária pensa que há vidas sem valor ou que algumas vidas não têm sentido apenas na concepção (1), ou seja, há vidas com qualidade expectável tão negativa que são globalmente más. Mas quem defende a eutanásia não tem, nem sequer deve pensar, que nem todas as pessoas têm a mesma dignidade. Ou seja, quem defende a eutanásia não está, nem deve estar, comprometido com uma resposta negativa a (2). Assim, uma pessoa em estado terminal merece igualmente o mesmo respeito de uma pessoa que tem a sorte de estar saudável. E respeitar a pessoa tem como consequência respeitar a autonomia da pessoa com respeito à sua própria vida. E, por isso, não se segue que a eutanásia voluntária seja “equivalente a empurrar para o abismo e desumaniza uma sociedade inteira”.

    O padre Gonçalo Portocarrero de Almada escreveu aqui um texto onde comete exatamente as mesmas falácias, com a agravante de não estabelecer as distinções conceptuais entre eutanásia ativa, passiva, voluntária, involuntária, e não-voluntária. Vejamos um caso. O padre Gonçalo diz que a primeira mentira sobre a eutanásia é a seguinte – “a eutanásia e o suicídio assistido são legítimos porque queridos pelo próprio”. A falácia aqui presente é da equivocidade. Afinal está a referir-se à eutanásia involuntária ou à voluntária? Se estivermos a falar de “eutanásia ativa voluntária” não há aí mentira nenhuma. Mas talvez o padre Gonçalo esteja a referir-se à eutanásia “involuntária” ou “não-voluntária”. Mas é coerente defender-se a eutanásia ativa voluntária sem se defender a eutanásia involuntária ou a não-voluntária. Portanto, o padre Gonçalo ao não fazer distinções conceptuais está a fazer uma grande confusão, dado que não é uma mentira que a “a eutanásia ativa voluntária” seja defendida como legítima porque é “querida pelo próprio”. Em suma, uma pessoa pode ser contra a eutanásia involuntária ou não-voluntária, mas defender consistentemente a eutanásia ativa voluntária, pois são coisas totalmente diferentes. Contudo, o padre Gonçalo não faz qualquer destas distinções (espero que não seja de forma intencional) que estão bem estabelecidas na literatura. (Clique aqui para outros comentários).

    Contudo, o debate de um tema tão sério como a eutanásia, quer se seja a favor ou contra, não deve estar assente sobre falácias. Para uma boa análise sobre este tema da eutanásia recomendo esta leitura Voluntary Euthanasia do filósofo Robert Young.

  • Domingos Faria Avatar

    Como definir “milagre”?

    Pelo menos desde David Hume, os milagres são frequentemente definidos tanto por defensores como por críticos como violações de leis da natureza. A ideia é que as leis da natureza descrevem uniformidades efetivas que ocorrem no nosso mundo. Mais especificamente, são generalizações universais que descrevem o que ocorrerá ou não sob determinadas condições específicas. Por exemplo, algumas das nossas leis confirmam que a água não se transforma instantaneamente em vinho. Por isso, se realmente a água se transforma em vinho, deve-se a uma violação em tais leis. Com base nesta definição de milagre, pode-se defender com algumas premissas adicionais que é irracional acreditar em milagres.

    Mas será plausível definir milagre como violação das leis da natureza? Podem-se apresentar algumas dificuldades relevantes contra essa definição. Analisando algumas dificuldades conceptuais, pode-se alegar que o entendimento de milagres como violações de leis da natureza pressupõe que tais leis são deterministas. Contudo, isso é bastante disputado. Pois, tal como aponta o filósofo Peter van Inwagen (2016), a vida depende da química e a química depende de átomos e átomos dependem da mecânica quântica e a mecânica quântica é essencialmente indeterminista1. Ora, se as leis da natureza são indeterministas, pode então parecer que é dado a Deus mais “espaço” para realizar milagres sem referência à violação de leis. Em suma, não pode haver violação de leis se elas forem indeterministas.

    Além disso, pode-se argumentar que pelo facto de nos depararmos com uma instância contrária às leis estabelecidas apenas demonstra que estas podem ser inadequadas ou incompletas, sendo que devemos estar sempre dispostos a expandir as nossas leis naturais para acomodar qualquer ocorrência efetiva. Ou, como defende Timothy McGrew (2016), se as leis da natureza são simples afirmações de regularidades naturais, então uma suposta “violação” seria mais naturalmente uma indicação de que aquilo que pensávamos que fosse uma lei, afinal não é realmente uma lei. Se esta linha de raciocínio for plausível, então uma violação das nossas leis da natureza é conceptualmente impossível. Assim, perante efetivas instâncias contrárias às nossas atuais leis, é razoável continuar à procura de leis novas e modificadas para possivelmente acomodar a anomalia em questão.

    Mas, se os milagres não constituem violações de leis de natureza, como definir milagre? Uma outra possibilidade é entender milagre como aquilo que vai além da ordem natural. Nesta linha, Tomás de Aquino define milagre como um evento que excede o poder produtivo da natureza. Por exemplo, Deus poderia ocasionalmente produzir algumas partículas elementares com poderes causais diferentes dos seus normais. Ainda outra possibilidade seria entender milagre como coincidente com a explicação natural disponível. Serão estas definições rivais melhores? Haverá alguma outra mais plausível? Talvez se possa defender com alguma plausibilidade que um milagre é um evento não usual, inesperado, e observável que se deve em parte à atividade interventiva direta de Deus. Mas não será tal definição demasiado genérica? Ainda fica por explicar realmente qual é a natureza desse próprio evento não usual e inesperado.


    1. indeterminismo é a tese segundo a qual nem todos os acontecimentos são a consequência necessária de acontecimentos anteriores e das leis da natureza.↩︎