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    Libertismo de Robert Kane

    O libertismo é a tese de que (i) o determinismo é incompatível com o livre-arbítrio, (ii) temos livre-arbítrio e, assim, (iii) o determinismo é falso, sendo o indeterminismo verdadeiro (i.e., nem tudo está determinado). Libertistas, tal como Robert Kane, procuram mostrar que do facto de vivermos num mundo indeterminista não se segue que as nossas crenças e os nossos desejos e, por sua vez, a forma como estes dão origem a certas ações, não dependem de nós. Deste modo, Kane procura estabelecer a compatibilidade entre indeterminismo e livre-arbítrio a partir das ações autoformativas (AAF), ou seja, escolhas indeterministas por meio das quais moldamos nosso próprio caráter. De acordo com Kane:

    Ter livre-arbítrio é ser o designer último dos nossos próprios propósitos ou fins ou objetivos. E, para que possamos ser os designers últimos dos nossos próprios propósitos ou fins, têm de existir certas ações nas nossas histórias de vida que são configuradoras-da-vontade, plurais, voluntárias e indeterminadas por quem quer que seja ou pelo que quer que seja. Estas ações indeterminadas, configuradoras-da-vontade são as “ações autoformativas”, ou AAFs, exigidas pela responsabilidade última (…). São aquelas ações nas nossas vidas por meio das quais nós definitivamente formamos o nosso carácter e os nossos motivos e nos tornamos a nós próprios nos tipos de pessoas que somos.

    • Kane (2007) Four Views on Free Will, p. 22.

    Mas como as AAF são compatíveis com o indeterminismo? Como resposta Kane afirma que:

    Eu acredito que essas ações autoformativas indeterminadas ou AAF ocorrem naqueles momentos difíceis da vida, quando estamos divididos entre visões concorrentes do que devemos fazer ou nos tornar. (…) A incerteza e a tenção interna que sentimos nesses momentos de autoformação refletem-se na indeterminação dos nossos próprios processos neuronais. (…) Quando decidimos sob tais condições de incerteza, o resultado não seria determinado por causa da indeterminação anterior — e, ainda assim, o resultado pode ser desejado (e, dessa forma, racional e voluntário) de qualquer forma, devido ao facto de que em tal autoformação, as vontades são divididas em motivos conflituantes.

    • Kane (2007) Four Views on Free Will, p. 26.

    Kane ilustra a ideia anterior com um exemplo:

    Consideremos uma mulher de negócios que enfrenta o seguinte conflito. Ela está a caminho de uma reunião importante quando se depara com um assalto em curso numa viela. Surge um conflito interno entre a sua consciência, que a manda parar e pedir auxílio, e as suas ambições profissionais, que lhe dizem que ela não pode faltar à reunião. Ela tem de fazer um esforço da vontade para superar a tentação de seguir em frente. Se ela acabar por superar essa tentação, isso será o resultado do seu esforço, mas se ela falhar, será porque ela não permitiu que esse esforço fosse bem-sucedido. E isso deve-se ao facto de, ao mesmo tempo que ela queria superar a tentação, ela também queria falhar, por razões muito diferentes e incomensuráveis. Quando nós, tal como a mulher de negócios, decidimos em tais circunstâncias, e os esforços indeterminados que fazemos se tornam escolhas determinadas, fazemos um dos conjuntos de razões ou motivos em conflito prevalecer sobre o outro ali e naquele instante através de uma decisão.

    • Kane (2007) Four Views on Free Will, pp. 26-27.

    O raciocínio central de Kane é o seguinte: durante uma AAF o agente tem uma vontade dividida — o que significa que ele tem razões morais ou prudenciais que apoiam duas (ou mais) ações incompatíveis. Nesse caso há também indeterminação a nível neuronal. Esse indeterminismo provém, assim, do conflito gerador de tensão na vontade. Perante tal conflito de razões, a decisão última do agente (ao fazer prevalecer um conjunto de razões sobre o outro) é causalmente indeterminada. Mas dado que o agente aceita as razões a favor da sua escolha e a sua escolha não é compelida, a ação resultante está sob o seu controlo. Portanto, num mundo indeterminista, o sujeito tem livre-arbítrio.

    Será este raciocínio de Kane plausível? Em primeiro lugar, pode-se sublinhar que dado que, numa AAF, é causalmente indeterminado qual é o curso de ação a seguir, o agente não exerce realmente controlo sobre qual dos cursos de ação é efetivado. Ou seja, parece que não está no seu poder efetivo alterar o valor de verdade de alguma proposição. Em segundo lugar, Kane está a utilizar uma conceção compatibilista entre livre-arbítrio e determinismo, em que o sujeito é livre na medida em que age de acordo com os seus desejos e não como produto de forças externas, coação, ou compulsão interna. Assim, o raciocínio de Kane não é baseado numa conceção incompatibilista de livre-arbítrio, o que pode ser problemático dado que os libertistas são incompatibilistas.

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    Argumento dos Zombies 🧟 contra o fisicismo

    Além de Kripke, também David Chalmers, no livro The Conscious Mind (1996), desenvolve um argumento contra o fisicismo. Esse argumento parte de dois conceitos principais. O primeiro conceito é o de zombies filosóficos. Estes são física, comportamental e funcionalmente indistinguíveis de nós, mas não têm vida mental interior. Assim, num mundo de zombies filosóficos são exemplificados estados neurofisiológicos (como a estimulação das fibras-c) com o respetivo comportamento mas sem que os correspondentes estados fenoménicos (como a dor) ocorram. O segundo conceito importante é o de concebilidade. Alguma coisa é concebívelquando é compatível com o que podemos saber a priori. Ou seja, quando não podemos descartar uma proposição com base em afirmações que são a priori. Por exemplo, é concebível que a água (o líquido incolor, inodoro, que corre nos rios e oceanos, etc) não seja feito de H2O, mas sim de outra molécula XYZ.

    Com base nesse nesses conceitos o primeiro passo do argumento afirma que os zombies filosóficos são concebíveis. Ou seja, não podemos descartar com base do que sabemos a priori que existem criaturas como nós mas sem experiências subjetivas internas. No segundo passo do argumento afirma-se que se os zombies são concebíveis, então são metafisicamente possíveis. Essa premissa não diz que se alguma coisa é concebível, então é metafisicamente possível. Pois, nesse caso, seria fácil encontrar contra-exemplos (com “necessidades a posteriori” geradas por nomes próprios e tipos naturais). Por exemplo, é concebível que Água não seja H2O, mas isso não é metafisicamente possível. Pelo contrário, a premissa faz referência a zombies filosóficos (que não envolve nomes próprios nem tipos naturais). Assim, a premissa é formulada de modo que não dá origem a qualquer “necessidade a posteriori”. Mas, então, se o termo zombie filosófico não gera necessidades a posteriori, mas é concebível, então pode-se concluir que é metafisicamente possível. Por fim, no terceiro passo salienta-se que se os zombies são metafisicamente possíveis, então o fisicismo (reducionista e não-reducionista) é falso. Isto porque o fisicismo implica que as verdades sobre os estados mentais sobrevêm das verdades sobre a microfísica. Ou seja, em todos os mundos possíveis em que os factos microfísicos são como os nossos, as criaturas que são física e funcionalmente como nós têm experiências subjetivas interiores. Assim, o fisicismo não permite a possibilidade metafísica de zombies. Ora, juntando esses três passos obtemos o seguinte argumento:

    1. Os zombies filosóficos são concebíveis.
    2. Se os zombies filosóficos são concebíveis, então eles são metafisicamente possíveis.
    3. Se os zombies filosóficos são metafisicamente possíveis, então o fisicismo é falso.
    4. Logo, o fisicismo é falso.

    Será este um bom argumento? Podemos começar por questionar: são os zombies concebíveis? Algumas teorias influentes da mente implicam que os zombies são inconcebíveis, como é o caso da teoria funcionalista. Nessa teoria, os estados mentaissão entendidos como relações causais entre estímulos externos ao sistema, processos no seio do sistema, e o comportamento resultante do sistema. Uma vez que os zombies iriam satisfazer todas as condições funcionais para os estados mentais (de acordo com o funcionalismo), segue-se que os zombies filosóficos são inconcebíveis.

    Uma outra objeção questiona se, no caso dos zombies, a concebilidade implica possibilidade. Uma vez que não temos conhecimento suficiente do mundo físico, como poderemos afirmar com segurança a possibilidade dos zombies? Pode-se fazer uma analogia com a conjetura de Goldbach (CG) que sustenta que “Qualquer número par >2 é a soma de dois números primos”. Se tal conjetura CG for falsa, ela não será possível (ainda que seja concebível).

    Como crítica final pode-se construir um argumento anti-zombie a favor do fisicalismo. Aqui estamos a entender os “anti-zombies” como seres indistinguíveis de nós que têm vida mental interna devido a fatores puramente microfísicos. Com base nisso, pode-se montar um argumento paralelo:

    1. Os anti-zombies filosóficos são concebíveis.
    2. Se os anti-zombies filosóficos são concebíveis, então eles são metafisicamente possíveis.
    3. Logo, os anti-zombies são metafisicamente possíveis.

    Ora, não se pode aceitar os dois argumentos (zombie e anti-zombie) em simultâneo. Então por que preferir um deles em vez do outro?

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    Um enigma sobre normatividade

    Timothy Williamson num dos seus mais recentes artigos, com o título ‘Non-modal Normativity and Norms of Belief’ explora um enigma interessante sobre a normatividade. Para isso, considere-se uma norma simples, como:

    Regra R: Nenhuma dança na biblioteca.

    Esta regra R induz uma distinção binária entre o permissível e o impermissível. Mais especificamente, faz com que a dança na biblioteca seja impermissível. Ora, considere-se a Alexandria, que está a trabalhar (não a dançar) na biblioteca. Isso é permissível. Mas é permissível que ela dançe? Não, dado que está na biblioteca. Mas é permissível que Alexandria saia da biblioteca e dance? Sim, R não diz nada sobre o que fazer fora da biblioteca. Em suma, Alexandria não deve dançar, embora ela possa sair da biblioteca e dançar. Mas, assim, temos um enigma, pois rejeitamos 1 e aceitamos 2:

    1. É permissível que Alexandria dance.
    2. É permissível que a Alexandria saia da biblioteca e dance.

    Porém, dado o tratamento semântico padrão das duas frases, 2 implica logicamente 1. De forma mais geral, o seguinte princípio é válido na semântica padrão:

    P(&E): A partir de ‘É permissível que S faça ϕ e ψ’, deriva-se ‘É permissível que S faça ϕ’ e ‘É permissível que S faça ψ’.

    Temos um enigma; pois, originalmente rejeitamos 1 e aceitamos 2. Mas, pelo princípio P(&E), se aceitamos 2 temos de aceitar 1. Como resolver isso? Pode-se ultrapassar o enigma com uma interpretação desse princípio relativizado a situações ou contextos. A premissa significa que S faz ϕ e ψ em alguma situação permitida relevante s, onde a situação é permitida na medida em que não contém violação de R. Dessa premissa, pode-se concluir validamente que S faz ϕ em alguma situação permitida relevante s e S faz ψ em alguma situação permitida relevante s. Em termos de lógica modal, P(&E) corresponde à inferência de ◊(α∧β) para ◊α ou ◊β que é válida em qualquer lógica modal normal.

    A motivação para o princípio P(&E) é colocada em termos de situações possíveisem vez de mundos possíveis. Pois, é preciso muito menos para uma situação possível prevenir violações da regra do que para um mundo possível, dado que mundos são globais ao passo que situações são locais. Por exemplo, imagine-se que em todos os mundos relevantes, a Jane dança obsessivamente na biblioteca; nesse caso R é sempre violado. Mas isso não deve afetar a permissividade da dança de Alexandria. Por exemplo, se tivermos em consideração possíveis situações locais que contêm as ações de Alexandria mas não as de Jane, de modo que não contêm violações de R.

    Como objeção, pode-se criticar que o argumento de 2 para 1 não é uma instância genuína de P(&E), dado que equivoca sobre o tempo da dança. Isto porque 1 diz respeito ao que é permissível a Alexandria fazer agora, ao passo que 2 diz respeito ao que é permissível ela fazer mais tarde.

    A isso pode-se responder que não há problema; dado que 1 e 2 são naturalmente entendidos como sendo sobre o futuro próximo e não sobre o instante presente. Além disso, com isso a validade de P(&E) não fica ameaçada. Pois, isso significa apenas que se a premissa é verdadeira conforme preferida num dado contexto, as conclusões são verdadeiras conforme preferidas no mesmo contexto. Quando consideramos originalmente 1, mantivemos a localização de Alexandria fixa na biblioteca. Ao passo que, quando consideremos 2, não mantivemos a sua localização fixa na biblioteca. Mas uma vez aceite 2, é natural para nós alterar a nossa resposta à questões original ‘É permissível que Alexandria dance?’, dizendo ‘Sim’, embora talvez acrescentando como explicação ‘mas primeiro ela deve sair da biblioteca’. Ou seja, as situações em que ela sai da biblioteca foram implicitamente excluídas como irrelevantes no contexto original, mas não no contexto posterior. Em qualquer contexto em que 2 é verdadeira, 1 também é verdadeira. Ora, as explicações semânticas padrão dos modais permitem essa sensibilidade ao contexto: os mundos possíveis ou situações relevantes são aquelas determinadas contextualmente na base modal.

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    Breve Introdução à Filosofia da Religião

    Conceito Teísta de Deus

    Argumento Cosmológico de Tomás de Aquino

    Argumento Teleológico de Tomás de Aquino

    Argumento Ontológico de Anselmo

    Problema do Mal e a Teodiceia de Leibniz

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    Um argumento contra o fisicismo reducionista

    Qual é a relação entre mente e corpo? Como resposta a esse problema pode-se defender o fisicismo (ou monismo materialista). De acordo com o qual, as entidades fundamentais da realidade são entidades físicas, geralmente microfísicas (isto é, as entidades fundamentais físicas incluem coisas, tal como quarks, eletrões, neutrinos, gravidade, eletromagnetismo, spin, etc.) Este tipo de teoria pode ser entendida de duas formas. Por uma lado, seguindo o fisicismo reducionista, todas as verdades sobre o domínio microfísico implicam logicamente todas as verdades sobre a mente e a consciência. Por outro lado, de acordo com o fisicismo não-reducionista, a mente é fundada ou sobrevém a partir do físico, sendo que se as propriedades subvenientes, as que ocorrem num nível inferior, são as mesmas, então as propriedades correlacionadas num nível superior, as sobrevenientes, não podem diferir. Deste modo, se a “Mãe Natureza” tivesse de criar um mundo como o nosso (com estados mentais), tudo o que teria de manter seria as entidades microfísicas e as leis da natureza. Não teria de acrescentar qualquer entidades mentais para se obter experiências conscientes.

    Essa perspetiva fisicista é negada pelo dualismo que também pode ser entendido de duas formas. Por um lado, de acordo com o dualismo de substâncias, mente e corpo são entendidos como substâncias distintas, sendo que uma substância é aquilo que possui propriedades. Dessa forma, mente e corpo são duas substâncias ontologicamente distintas: uma imaterial e a outra material. Por outro lado, seguindo o dualismo de propriedades, há apenas uma substância (natural) com dois tipos de propriedades fundamentais: propriedades físicas e mentais. A ideia é que os estados mentais (como a consciência) são uma propriedades fundamental da realidade juntamente com as propriedades microfísicas fundamentais. Assim, se a “Mãe Natureza” tivesse de criar um mundo como o nosso (com estados mentais), teria de começar não apenas com propriedades microfísicas, mas também com leis psicofísicas e da consciência (formulando como as propriedades físicas e mentais se relacionam). Com os contributos de Kripke e Chalmers, esta última versão de dualismo tornou-se mais influente do que o dualismo de substâncias.

    Com inspiração nas intuições cartesianas pode-se formular um argumento interessante contra o fisicismo reducionista, tal como apresentado por Kripke (1970). Kripke tem como alvo de atenção os filósofos dos anos 50/60 que são predominantemente materialistas (fisicistas) e rejeitam o dualismo cartesiano. Filósofos como Ullin Place e J.J. Smart defendiam uma “teoria identitativa da mente”, segundo a qual os estados mentais não são mais do que estados físicos do cérebro. Para estes filósofos “a mente é o cérebro”. O livro o Nomear e a a Necessidade de Kripke termina precisamente com uma crítica a essa teoria e com uma defesa do dualismo de propriedades (mas não defesa do dualismo de substâncias). Sendo m a abreviatura de propriedades mentais (como dor) e c a abreviatura para propriedades físicas ou cerebrais (como a estimulação das fibras-c), a estrutura central do argumento de Kripke é a seguinte:

    1. ∀x∀y((x=y)→□(x=y))[Necessidade da identidade]
    2. ((m=c)→□(m=c))[1, E∀]
    3. ¬□(m=c)[Premissa]
    4. ∴¬(m=c)[2 e 3, MT]

    O passo 2 segue-se logicamente de 1, pela negação do quantificador universal, e a conclusão 4 segue-se por modus tollens de 2 e 3. Por isso, os passos que precisam de fundamentação são os passos 1 e 3. Em defesa da tese da necessidade da identidade (na premissa 1), Kripke no livro o Nomear e a Necessidade (cf. prefácio, p.42) salienta que: “(…) era claro a partir de ∀x□(x=x) e da lei de Leibniz que a identidade é uma relação «interna»: ∀x∀y((x=y)→□(x=y)). (…) Se «a» e «b» são designadores rígidos, segue-se que «a=b», se for verdade, é uma verdade necessária”. Isto porque os designadores rígidos designam o mesmo objeto em todos os mundos possíveis em que o objeto existe. Uma possível reconstrução do argumento de Kripke é a seguinte:

    1. ∀x∀y((x=y)→(Fx→Fy)) [Lei de Leibniz (LL)]1
    2. ∀x□(x=x)[Nec. da auto-identidade]
    3. ∀x∀y((x=y)→(□(x=x)→□(x=y))) [Instância da LL]2
    4. ∴∀x∀y((x=y)→□(x=y))[Necessidade da identidade]

    Uma consequência deste argumento é que não existem identidades contingentes. Em defesa da premissa 3 do argumento de Kripke, em que se afirma que ¬□(m=c)ou, de forma logicamente equivalente, ◊(m≠c), pode-se alegar que podemos conceber (m≠c). Mas porquê? Kripke assinala que não é concebível que um estado mental m (p.e. “dor”) ocorra sem a fenomenologia caraterística de m (i.e. a “sensação de dor”), mas é concebível um estado cerebral c (p.e. “estimulação das fibras-c”) ocorra sem o estado mental m (i.e. “dor”). Logo, é concebível que um estado cerebral c ocorra sem o estado mental m. Ou seja, é concebível que (m≠c). Dessa forma, é concebível que a estimulação das fibras-c poderia ocorrer no corpo de uma pessoa sem que essa pessoa tivesse dores. Por exemplo, os seres humanos poderiam ter uma constituição diferente da que têm, devido à qual essa estimulação lhes provocasse cócegas em vez de dores. E se é concebível (m≠c), então é ◊(m≠c), o que é logicamente equivalente à premissa 3: ¬□(m=c).

    Como objeção, que Kripke antecipa, poder-se-ia dizer que temos de aceitar que □(m=c), tal como aceitámos □(calor=movimento molecular). Nos dois casos há apenas uma ilusão de contingência que se pode explicar. No entanto, de acordo com Kripke, apenas se consegue explicar essa ilusão em relação ao segundo caso e não em relação ao primeiro. Começando pelo segundo caso, quando se tenta conceber que (calor≠movimento molecular) há uma ilusão de contingência e essa ilusão é explicada pela distinção entre o “fenómeno exterior” e a “sensação interna”. Pois, o que poderia ser diferente é a sensação interna causada pelo fenómeno exterior. Por exemplo, uma situação em que, devido a diferenças no sistema nervoso, a sensação de calor é causada por feixes de fotões em vez do movimento molecular. Assim, a sensação de calor não é uma propriedade essencial do calor. Numa tal situação continuaria a ser verdade que □(calor=movimento molecular). Contudo, em relação ao primeiro caso, quando se tenta conceber que (m≠c) não há qualquer ilusão de contingência. Pois, no caso das propriedades mentais m, como dor, não há distinção entre “fenómeno externo” e “sensação interna”, dado que não se pode fazer a distinção entre “dor” e “sensação de dor”. Ou seja, a sensação de dor é uma propriedade essencial de toda a dor. Assim, se a correlação entre m e c é meramente contingente, eles não são o mesmo fenómeno.3 Em suma, como fundamentação da premissa 3, Kripke defende que:

    1. Podemos conceber (m≠c) e não há ilusão de contingência nessa conceção.
    2. Se (m≠c) é concebível e não há ilusão de contingência nessa conceção, então é ◊(m≠c).
    3. ∴◊(m≠c), ou seja, ¬□(m=c).

    Assim, com base nos passos 1, 2, e 3 pode-se concluir validamente que ¬(m=c), ou seja, não há identidade entre as propriedades mentais e físicas (e, dessa forma, a teoria do fisicismo reducionista não é plausível). Será este um bom argumento? Para uma análise crítica deste argumento de Kripke pode ler um artigo que escrevi aqui.


    1. Também conhecido como “Princípio da Indiscernibilidade dos Idênticos”: se x e y são o mesmo objeto, tudo o que for verdadeiro de x será também verdadeiro de y.↩︎
    2. Ou seja, ser necessariamente idêntico a x é uma propriedade que y também tem, já que x e y são o mesmo.↩︎
    3. Para defender isso Kripke recorre igualmente à seguinte metáfora: imagine-se Deus a criar o mundo e a decidir trazer à existência todo o universo físico. Tendo criado este universo puramente físico, parece que ele teria de fazer mais trabalho para proporcionar o universo com consciência.↩︎