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    Ceticismo sobre o mundo exterior

    Não sabemos que temos duas mãos. Aqui está a prova, em que M é a proposição ‘eu tenho duas mãos’, HC é a proposição descrita por alguma hipótese céptica (como a de que somos enganados por um génio maligno, ou de que somos um cérebro numa cuba, etc), e Ksϕ é a abreviatura de ‘eu sei que ϕ’:

    1. [KsM ∧ Ks(M→¬HC)] → Ks¬HC
    2. Ks(M→¬HC)
    3. ¬Ks¬HC
    4. ∴ ¬[KsM ∧ Ks(M→¬HC)] (de 1 e 3, por modus tollens)
    5. ∴ ¬KsM (de 2 e 4, por silogismo conjuntivo) QED

    Se não queremos aceitar a conclusão ¬KsM, que premissa devemos negar e com que fundamento?

  • Domingos Faria Avatar

    Um argumento cosmológico modal

    Richard Gale e Alexander Pruss em 1999, no artigo “A New Cosmological Argument”, formularam um novo argumento cosmológico numa versão modal. Esse novo argumento baseia-se numa série de conceitos e distinções que precisam ser previamente clarificados. Em primeiro lugar, introduz-se um domínio fixo de proposições abstratas. Uma conjunção de proposição abstratas é máxima se, e só se, para cada proposição abstrata p, ou p ou não-p é um conjunto da conjunção. Além disso, um conjunto de proposições abstrata é compossível se, e só se, é conceptualmente ou logicamente possível que todos os conjuntos sejam verdadeiros simultaneamente.

    Em segundo lugar, apresenta-se a seguinte definição de mundo possível: um mundo possível é uma coleção de seres e eventos ou estados de coisas que verifica ou torna verdadeiro todos os conjuntos de alguma conjunção máxima, compossível de proposição abstratas. Essa conjunção é designada de Grande Facto Conjuntivo desse mundo possível. Portanto, o Grande Facto Conjuntivo para um dado mundo possível inclui todas as proposições que seriam verdadeira se esse mundo fosse atualizado ou efetivo; sendo que cada mundo possível tem um e apenas um Grande Facto Conjuntivo. Assim, cada mundo possível é individuado pelo seu Grande Facto Conjuntivo.

    Além disso, o Grande Facto Conjuntivo Contingente de algum mundo possível é a conjunção de todas as proposições contingentes que seriam verdadeiras se esse mundo fosse atual ou efetivo. Daí se segue imediatamente que o Grande Facto Conjuntivo Contingente de um mundo possível é máximo com respeito a proposições abstratas contingentes, sendo este incluído no seu Grande Facto Conjuntivo.

    Em terceiro lugar, com este novo argumento cosmológico procura-se estabelecer que há um ser necessário que de forma intencional trouxe “o universo” à existência. Segundo Gale e Pruss, um universo de um mundo é o que verifica ou torna verdadeiro todos os conjuntos do Grande Facto Conjuntivo Contingente nesse mundo. Deste modo, um universo de um mundo possível é uma parte desse mundo possível.

    Por fim, este novo argumento cosmológico baseia-se numa versão fraca do princípio de Leibniz da razão suficiente. De acordo com esse princípio, cada facto ou cada proposição verdadeira possivelmente tem uma explicação. Ou, por outras palavras, é a alegação de que para cada proposição p, se p é verdadeira, então é possível que exista uma proposição q tal que q explique p. Ou ainda de forma mais rigorosa:

    • (PRSF) Para qualquer proposição, p, e qualquer mundo, w, se p está no Grande Facto Conjuntivo de w, então há algum mundo possível, w1, e proposição, q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1 contém p e q e a proposição que q explica a p.

    Com base nestas distinções e clarificações, já podemos formular o argumento do seguinte modo:

    • 1. Se p1 é o Grande Facto Conjuntivo Contingente de um mundo w1 e p2 é o Grande Facto Conjuntivo Contingente de um mundo w2, e se p1 e p2 são idênticos, então w1 = w2. [Premissa]
    • 2. p é o Grande Facto Conjuntivo Contingente do mundo atual. [Definição]
    • 3. Para qualquer proposição, p’, e qualquer mundo, w, se p’ está no Grande Facto Conjuntivo de w, então há algum mundo possível, w1, e proposição, q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1 contém p’ e q e a proposição que qexplica a p’. [Premissa, (PRSF)]
    • 4. ∴ Se p está no Grande Facto Conjuntivo do mundo atual, então há algum mundo possível, w1, e proposição, q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1contém p e q e a proposição que q explica a p. [De 3]
    • 5. ∴ Há um mundo possível w1 e uma proposição q, tal que o Grande Facto Conjuntivo de w1 contém p e q e a proposição que q explica a p. [De 2 e 3, por modus ponens]
    • 6. ∴ w1 = o mundo atual. [De 1, 2, e 5]
    • 7. ∴ Há no mundo atual uma proposição q, tal que o Grande Facto Conjuntivo do mundo atual contém p e q e a proposição que q explica p. [De 5 e 6]
    • 8. q é ou uma explicação pessoal ou q é uma explicação científica. [Premissa]
    • 9. q não é uma explicação científica (dado que todas as leis científicas relevantes estão contidas como conjuntas no explanandum, e as leis não são auto-explicativas). [premissa]
    • 10. ∴ q é uma explicação pessoal. [De 8 e 9, por silogismo disjuntivo]
    • 11. ∴ q reporta a ação intencional de um ser contingente ou q reporta a ação intencional de um ser necessário. [De 10]
    • 12. Não é o caso que q reporte a ação intencional de um ser contingente (dado que um ser contingente não pode produzir a sua própria existência). [Premissa]
    • 13. ∴ q reporta a ação intencional de um ser necessário. [De 11 e 12, por silogismo disjuntivo]
    • 14. ∴ q é uma proposição contingente que reporta a ação intencional de um ser necessário. [De 1, 2, e 13]
    • 15. ∴ q é uma proposição contingente que reporta a ação intencional de um ser necessário que explica a existência do universo no mundo atual (dado que o Grande Facto Conjuntivo Contingente reporta a existência do universo no mundo atual). [De 14]
    • 16. ∴ É contingentemente verdade que há um ser necessário que intencionalmente criou o universo no mundo atual. [De 15] (QED)

    Este argumento é válido. Mas será sólido? Temos alguma boa razão para rejeitar o princípio (PRSF)?

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    Um modelo da Eucaristia filosoficamente inteligível

    Tipicamente no Cristianismo entende-se a Eucaristia como um processo pelo qual Cristo se torna realmente presente nas espécimes do pão e do vinho consagrados. Essa presença de Cristo não é entendida metaforicamente, mas sim como real e objectiva. Esta ideia deu origem a muitos puzzles filosóficos difíceis de resolver: como pode o corpo e sangue de Cristo estar simultaneamente presente em múltiplos e desconexos lugares? Como pode estar Cristo todo presente em cada um dos lugares em que se celebra a Eucaristia? Haverá um modelo filosoficamente consistente e plausível para a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia? Começarei por apresentar o modelo da transubstanciação, como milagre metafísico, e as suas dificuldades. Por fim argumentarei que há um modelo mais simples e inteligível da Eucaristia: o modelo do facto institucional (baseado na ontologia social do filósofo John Searle).

    Começando pelo modelo de Tomás de Aquino, conhecido como modelo da transubstanciação, durante a consagração do pão e vinho ocorrem dois milagres para explicar como Cristo está realmente presente e como persistem as propriedades empíricas do pão e do vinho. O primeiro milagre consiste em substituir os elementos do pão e vinho por Corpo e Sangue de Cristo e o segundo consiste em manter todos os acidentes do pão e do vinho. Ou seja, no acto de consagração a substância muda, mas os acidentes permanecem. Designe-se a essa ocorrência por milagre metafísico, isto é, um evento que altera as características do mundo material sem fazer qualquer diferença empírica.

    O filósofo Alexander Pruss, no artigo “The Eucharist: real presence and real absence” de 2009, concebeu duas formas logicamente possíveis no qual esse modelo da transubstanciação, com o milagre metafísico, pode acomodar a ideia de que Cristo está totalmente localizado em múltiplas regiões que não se cruzam. Uma solução seria Deus deformar o espaço de tal forma que todas as regiões que parecem estar ocupadas pelo pão e vinho consagrados são a mesma região. Neste caso Cristo não está multiplamente localizado uma vez que as regiões do pão e vinho consagrados são de facto uma só região. Alexander Pruss procura defender que é logicamente possível que o espaço esteja dessa forma estruturado por Deus. Mas será que no mundo actual poderia ocorrer isso sem se fazer qualquer mudança empírica à forma como as coisas são? Uma outra solução apresentada por Alexander Pruss é a sugestão mereológica em que se sustenta que é logicamente possível que os objectos ocupem o espaço de diferentes formas, ou melhor, é possível que os objectos estendam as regiões em que estão localizados (tal como os fractais). Ora, Cristo seria um objecto desse tipo, permitindo-se sustentar que Cristo está totalmente localizado em cada região que se está a celebrar a Eucaristia. Contudo, não parece nada intuitivo entender Cristo como um objecto estendido desse tipo.

    Mas será a própria ideia de milagre metafísico possível? Ou seja, será a transubstanciação logicamente possível? Seguindo o filósofo católico Michael Dummett, no artigo “The intelligibility of eucharistic doctrine” publicado em 1987, o modelo da transubstanciação conduz a um dilema: Por um lado, suponha-se que é possível que Deus transforme um objecto de algum tipo F, num objecto de algum outro tipo, G, ao alterar a sua substância-F pela substância-G sem fazer qualquer outra alteração. Ora, nesse caso estamos a utilizar uma noção degenerada de substância que exclui qualquer critério para responder à pergunta “o que é isso?”. Além disso, não é nada claro que Deus possa transformar F em G ao substituir a sua substância-F pela substância-G mas sem haver qualquer mudança microfísica no objecto. Isto porque intuitivamente se uma coisa parece como café, sabe e cheira a café, e é uma réplica microfísica de um café, então estamos diante de um café. Contudo, pelo modelo de Aquino e Pruss é logicamente possível que não seja um café – o que parece muito controverso. Mas, por outro lado, suponha-se que não é possível que Deus transforme F em G ao substituir a substância-F pela substância-G; nesse caso a substância (se há uma tal coisa) não tem qualquer relevância para o problema filosófico em consideração. Por isso, de uma forma ou de outra, este modelo da transubstanciação enfrenta grandes dificuldades.

    Haverá um outro modelo da presença real de Cristo na Eucaristia que seja mais plausível e que não enfrente tantas dificuldades? Com base na ontologia social do filósofo John Searle podemos conceber um modelo minimalista, sem as noções metafisicamente controversas do modelo anterior, e que consegue acomodar a presença real e objectiva de Cristo na Eucaristia. Para isso, pode-se começar por uma ideia muito simples: Quando vamos à nossa carteira buscar uma nota de 5€ temos apenas um pedaço de papel e nada mais? Podemos fazer uma análise química muito rigorosa e só encontramos papel. Mas o que faz com que esse pedaço de papel nos permita comprar um café? Uma resposta plausível será dizer que por causa de convenções institucionais esse pedaço de papel é realmente 5€. Também por causa de convenções similares há realmente coisas que são casamentos, fronteiras geográficas, obras de arte, governos, países, etc, e até (imagine-se!) pode haver uma convenção (instituída por Cristo na última ceia) em que num pedaço de pão estárealmente presente Cristo na Eucaristia, tal como defendem os filósofos cristãos Michael Dummett e Harriet Baber, e que também me parece à primeira vista plausível.

    De acordo com esse modelo, a acção de consagração na Eucaristia é uma acção convencionalmente gerada p.e. de forma análoga ao acto de passar um cheque. Esse passar um cheque ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita convencionalmente (2) por um agente legitimamente credenciado (3) com a intenção de escrever um cheque (4) usando materiais apropriados (5) tal como requerido por convenções institucionais em que um cheque que reúne essas condições torna-se dinheiro. Quando eu passo um cheque para comprar alguma coisa digo verdadeiramente: “Aqui estão os meus 200€!”. Todavia, à luz das melhores investigações em físico-química, um pedaço de papel com números e letras não vale literalmente nada mais do que um pedaço de papel. Ainda assim, dadas certas condições constituídas por particulares convenções sociais e institucionais, uma cheque que alguém passa por 200€ é realmente 200€ (desde que respeite as condições 1-5 e não seja um “cheque em branco”). Por outras palavras, em determinadas circunstâncias o significado de um objecto está para além da sua composição ontológica.

    Quanto à Eucaristia podemos contar uma história muito similar. Ou seja, a Eucaristia e o momento da consagração ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita convencionalmente instituída por Cristo, (2) por um agente legitimamente credenciado pela Igreja, como um sacerdote, (3) com a intenção de fazer o que foi instituído na última ceia (4) usando materiais apropriados, como pão e vinho, especificados pela Igreja (5) tal como requerido por essa convenção instituída por Cristo na última ceia, na quinta-feira santa, em que pão e vinho que reúnem essas condições tornam-se na presença real de Cristo. Assim, na Eucaristia temos a presença do corpo de Cristo qua facto institucional que é similar a outras convenções sociais, tal como casamento, dinheiro, países, governos, etc. Até um ateu pode aceitar sem grandes problemas este modelo da Eucaristia.

    É verdade que Jesus Cristo poderia ter escolhido outro tipo de matéria para constituir a presença real de Cristo na Eucaristia. Todavia, o pão e o vinho são os elementos da Eucaristia porque ele declarou que seriam esses elementos. Do mesmo modo, o governo de Portugal ou a Comissão Europeia poderiam ter declarado que as conchas e as penas de águia como veículo para as transacções financeiras. Mas não o fizeram. Pelo contrário as moedas e notas específicas contam como dinheiro porque um dado governo declarou-as como dinheiro. Algo similar pode ocorrer com a Eucaristia: Cristo declarou o pão e vinho em circunstâncias apropriadas como a sua presença real. Portanto, na Eucaristia o pão e vinho contam como presença real de Cristo em virtude da sua própria declaração na última ceia na quinta-feira santa. E essa ideia de que factos institucionais são criados por declarações está bem defendido p.e. pelo filósofo John Searle no livro Making the social world (de 2009).

    Além disso, penso que um modelo de “convenção institucional” que estamos a expor capta bem a ideia das passagem bíblicas da última ceia, p.e. em Lucas (22, 19-20), sem recorrer a noções metafísicas mais sofisticadas e possivelmente mais controversas. Afinal por que razão o acto de consagração na Eucaristia não poderá ser uma acção convencionalmente gerada com raiz na última ceia e instituída por Cristo? Por que razão não pode a presença real do corpo de Cristo qua facto institucional ser similar a muitas outras convenções sociais? Por que razão não se pode conceber a consagração como uma acção convencionalmente gerada que induz uma mera mudança Cambridge nos elementos da Eucaristia? É verdade que, de acordo com o filósofo católico Peter Geach (1969, p. 71), uma mera mudança Cambridge não é real no sentido que não envolve qualquer mudança nas propriedades intrínsecas dos objectos em que elas ocorrem. Por exemplo, a Xantipa casada é microfisicamente igual à Xantipa viúva; do mesmo modo a hóstia não-consagrada é microfisicamente igual à hóstia consagrada na Eucaristia. Mas, ainda assim, há um sentido em que tais mudanças são reais na medida em que não são meramente subjectivas nem dependem de estados psicológicos. Então, por que razão não pode haver na Eucaristia uma mera mudança Cambridge nas propriedades do pão e do vinho? Isso é bem possível e plausível.

    Pode suceder que um pessoa de uma tribo desconhecida venha ao mundo ocidental e não consiga identificar uma fronteira geográfica convencional, como um país ou uma cidade. Também posso deparar-me com duas pessoas e não saber se elas são casadas ou não. Para saber se elas são casadas precisava de saber se aquelas pessoas realizaram ou não um casamento válido. Por que razão o mesmo não se pode passar com a Eucaristia? Sim, se encontrarmos uma hóstia perdida, não conseguimos dizer se é hóstia-hóstia ou hóstia-presença-real-de-Cristo. Tudo bem! Mas quando me deparo com duas pessoas desconhecidas aos beijos também não sei se são casadas ou não. Não parece haver problema nisso. Como disse: tipicamente nos factos institucionais há uma mera mudança Cambridge (p.e. com respeito a uma pessoa casada ou viúva não iremos encontrar qualquer alteração nas propriedades intrínsecas, mas ainda assim são realidades diferentes). Por que razão não pode haver também uma mudança Cambridge no pão e vinho durante a consagração na Eucaristia?

    É importante salientar que com este modelo filosófico da Eucaristia não estou a dizer que o corpo de Cristo, no seu sentido mais literal do termo, é uma convenção social. Aliás, dado o cristianismo, Jesus Cristo não passou a existir na medida em que um conjunto vasto de pessoas convergiram em estabelecer que ele tinha um corpo. Contudo, o que estou a tentar defender é uma tese diferente. O que estou a defender é o seguinte: a presença de Cristo na Eucaristia, nos elementos do pão e do vinho, é um facto institucional que se obtém em virtude da sua instituição na última ceia pela declaração (para usar o termo de Searle) do próprio Cristo. E isso é um evento novo que não ocorria antes dessa declaração. Ou seja, só passou a haver presença de Cristo na Eucaristia nos elementos do pão e do vinho depois dessa convenção institucional. Assim, tal como o dinheiro “não existia antes da tal convenção social”, também podemos afirmar que a presença de Cristo nos elementos do pão e do vinho não existia antes da tal convenção institucional da Eucaristia. Assim parece que a analogia corre sem problemas.

    Com esta argumentação, se for plausível, temos um modelo filosoficamente inteligível da Eucaristia e evitamos compromissos com teorias metafísicas muito controversas. O objectivo é ter um modelo filosófica e religiosamente adequado, bem como ontologicamente minimalista. Mas será isto plausível?


    Agradecimentos: estou grato ao António Rodrigues Gomes por me provocar a tratar filosoficamente deste problema da Eucaristia. Também estou muito grato ao Ludwig Krippahl e ao Aires Almeida por me apresentarem algumas objecções que me permitiram clarificar e refinar melhor o modelo da Eucaristia como facto institucional que aqui defendo. Para um “estado da arte” sobre as teorias e modelos mais contemporâneos da Eucaristia vale a pena ler o artigo “Recent Philosophical Work on the Doctrine of the Eucharist”, publicado em 2016 na revista Philosophy Compass, do filósofo James Arcadi.

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    Será a doutrina do inferno logicamente consistente?

    Várias religiões defendem a existência do inferno. Por exemplo, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica (cf. 1035), “as almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, «o fogo eterno»”. O papa Bento XVI na sua encíclica Spe Salvi (cf. III, 44) afirma que “no fim, no banquete, eterno, não se sentarão à mesa indistintamente os malvados junto com as vítimas, como se nada tivesse acontecido”. Esta doutrina deu inspiração a obras de arte impressionantes e grotescas, tal como os frescos (que se vê acima) da cúpula da catedral de Florença. Mas será essa doutrina do inferno logicamente consistente? Será que um Deus justo e amoroso poderá condenar um ser humano a um inferno eterno?

    Penso que um Deus justo e amoroso que condene um ser humano a um inferno eterno é logicamente inconsistente. Explico porquê: Mesmo a criatura mais pecaminosa, tendo necessariamente um poder limitado, não pode causar males infinitos. Para uma criatura causar um mal infinito teria de ter pelo menos um poder ilimitado. Mas, como os seres humanos não têm poder ilimitado, segue-se que os seres humanos não podem causar males infinitos. Ora, se um qualquer Deus condena seres humanos finitos e com poderes limitados a um suplício de magnitude infinita, então isso seria incompatível com a proporcionalidade da justiça, pois qualquer punição infinita por males finitos, praticados por seres humanos com poderes limitados, seria infinitamente injusta. Assim, é logicamente inconsistente que tal Deus que pratique tais actos de condenação infinita seja simultaneamente bom, justo, e amoroso. Logo, quem acredita num tal Deus acredita numa impossibilidade lógica. Ou seja, para além desse Deus não existir no mundo actual, ele nem sequer poderia existir.

    Sustentar que Deus condena alguns a um suplício de magnitude infinita é, portanto, incompatível com a proporcionalidade da justiça. Ou seja, qualquer punição infinita por males finitos praticados seria infinitamente injusta. Todavia, ainda assim penso que pode ser coerente ou consistente Deus criar, não um inferno infinito, mas sim um inferno temporário proporcional ao acto cometido. Tal pode ser consistente e possível num sentido lógico com a justiça divina. Portanto, um inferno temporário pode ainda ser algo consistente.

    Além disso, deixando de lado o argumento da justiça proporcional e avançando para outro argumento bem diferente, podemos conceber que uma dada pessoa por sua livre-vontade quer viver eternamente no inferno. Ora, se Deus respeita a livre-vontade ou livre-arbítrio, então poderia criar um inferno eterno para essa pessoa. Assim, neste sentido um inferno eterno também poderia ser algo consistente (só não seria consistente no sentido punitivo ou de justiça proporcional). Ou seja, se Deus existe e dá livre-arbítrio às pessoas, e se uma das pessoas quer livremente viver eternamente no inferno, então é possível que Deus respeite essa liberdade.

    Penso que há uma paralelo entre o “problema do mal” e o “problema do inferno”, ou seja, entre a defesa da consistência entre o mal no mundo e Deus, tal como na defesa da consistência entre a doutrina do inferno (numa versão fraca não-punitiva) e um Deus amoroso. Penso que nos dois casos pode-se tentar apelar ao livre-arbítrio (ou, melhor, à sua possibilidade lógica) para se tentar estabelecer a consistência em questão. Por exemplo, dado o cristianismo, pode-se argumentar que:

    1. Deus escolheu soberanamente criar pessoas que são livres (no sentido libertista).
    2. Deus, sendo amor, deseja salvar toda a gente.
    3. Se somos livres no sentido libertista, podemos rejeitar a salvação (i.e. podemos escolher rejeitar eternamente Deus).
    4. ∴ É possível que nem todos sejam salvos. [de 1-3]

    Ora, se este argumento for bem sucedido, a posição universalista será falsa (pois, o universalismo diz que é necessário, dada a concepção amorosa e soberana de Deus, que todos sejam salvos). Assim, se esta via de argumentação for de algum modo plausível, será falso que a única opção consistente para quem acredite em Deus é o universalismo. Com isto pode ser falso aquilo que alguns afirmam ao sustentarem que “só Deus, se acaso tivesse um criado algum inferno, poderia merecer habitá-lo”. Mas aqui há uma outra alternativa: é possível que uma pessoa com livre-arbítrio pretenda rejeitar livremente a salvação ou deseje viver toda a eternidade no inferno. Isso parece concebível e consistente ao contrário da versão punitiva do inferno eterno. Atenção: só estou a avaliar a consistência.

    Para quem desejar aprofundar filosoficamente este tema, recomendo a leitura do artigo “Heaven and Hell in Christian Thought” publicado na Stanford Encyclopedia of Philosophy (clique aqui) e do artigo “Hell” publicado na Internet Encyclopedia of Philosophy (clique aqui). Alguns livros recentes de filosofia tratam este problema, como o livro The Problem of Hell: A Philosophical Anthology (Routledge, 2010) editado por Joel Buenting; o livro The Inescapable Love of God (2014) de Thomas Talbott; o livro Destiny and Deliberation: Essays in Philosophical Theology (Oxford, 2011) de Jonathan Kvanvig.

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    O problema da ausência divina retratado no “Silêncio”

    problema da ausência divina é uma conjunção da forma mais intensa do problema da ocultação divina e da mais intensa versão do problema do mal. Este problema levanta um desafio para a crença em Deus através de um cenário em que crentes devotos têm experiências de dor e sofrimento cruel sem entenderem por que razão Deus permanece oculto e falha a responder à sua agonia desesperada e pedidos de ajuda. Este problema é descrito de forma vivida no romance Silêncio de Shusaku Endo e agora no filme do mesmo nome realizado por Scorsese.

    Neste romance, em que se relata alguns factos históricos, começamos por constatar que os cristãos escondidos no Japão (chamados Kakure Kirishitans) foram perseguidos. Muitos deles que eram apanhados pelos oficiais e que se recusavam a negar a sua fé (ao pisar um fumie com a imagem de Jesus) eram torturados cruelmente e mortos por decapitação, crucificação, ou executados ao serem queimados numa fogueira. Um dos métodos de tortura mais eficazes foi o chamado anazuri que consistia em pendurar a vítima, completamente amarrada, de cabeça para baixo dentro de uma fossa. Com tais torturas pretendia-se que os cristãos renunciassem à sua fé.

    Uma das personagem principais de Silêncio é Cristóvão Ferreira, uma figura história, que foi um padre jesuíta português missionário no Japão e renunciou à sua fé ao fim de cinco horas de tortura com o método anazuri. Depois ele teve um nome japonês, Chuan Sawano, e casou com uma mulher japonesa, publicando um livro criticando o cristianismo e contribuindo para a perseguição dos cristãos.

    Mas a personagem central é um discípulo de Ferreira, um jesuíta português chamado Sebastião Rodrigues, que vai de propósito ao Japão para convencer o antigo mestre a regressar à fé. Contudo, da mesma forma que Ferreira, Rodrigues é preso e cruelmente torturado. Inicialmente ele deseja experimentar um martírio glorioso, mas ao ouvir as vozes e gemidos de cristãos japoneses a serem torturados, começa a questionar-se: “por que razão Deus está continuadamente em silêncio perante tais gemidos”. Ao longo deste romance e filme, o silêncio de Deus atormenta Rodrigues e fá-lo questionar a existência de Deus. E essa profunda perplexidade sobre o silêncio de Deus aumenta à medida que testemunha uma série aparentemente interminável de mortes de cristãos japoneses. Ele não suporta tal situação e decide pisar o fumiede Jesus para renunciar à sua fé.

    Isto ilustra bem o problema da ausência divina que pode constituir um dos grandes desafios para a crença teísta. Pois, é um problema que começa por envolver mal horrendo. E enquanto podemos estar confortáveis a acreditar que Deus permite algum estado de coisas mau de forma a instanciar algum bem maior, é mais difícil acreditar que Deus permite um estado de coisas que envolve muita dor e sofrimentos absolutamente terríveis que aparentemente são gratuitos, sem sentido, e não servem para qualquer propósito aparente, tal como parecem todas aquelas torturas aos Kakure Kirishitans. Mas para além disso, o problema envolve em simultâneo a ocultação divina aos crentes devotos; e se o problema da ocultação divina para não-crentes que não sejam resistentes já é enigmático, muito mais o é com respeito a crentes devotos, alguns dos quais estão preparados para sacrificarem as suas vidas por Deus. E de facto o que Rodrigues considera intrigante é que Deus permaneça escondido mesmo dos Kakure Kirishitans devotos que estão preparados para morrer por Deus. Diante de tais situações, ele questiona-se por que razão Deus permanece em silêncio mesmo quando alguém está disposto a morrer por ele.

    É interessante ver que Ferreira não renunciou à fé porque não poderia suportar a tortura (o mal horrendo) ou a ocultação divina em geral. Pelo contrário, ele renunciou à fé porque não poderia suportar a ocultação de Deus com respeito ao mal horrendo que os crentes devotos, tal como ele próprio e os Kakure Kirishitans, tinham de amargurar. É a conjunção do horrendo mal com a ocultação divina que ele não consegue suportar.

    Na longa tradição teísta foram desenvolvidas muitas teodiceias em resposta ao problema do mal e pode-se examinar igualmente se essas teodiceias se podem aplicar ao problema da ausência divina. Por exemplo, uma das mais populares é a teodiceia do livre-arbítrio. Aplicada ao problema da ausência divina pode-se alegar que os seres humanos livres são responsáveis pelo mal horrendo e que se Deus não permanecesse oculto poderia colocar em causa um livre-arbítrio genuíno. Pode-se fazer o mesmo exercício para qualquer outra teodiceia que se considere plausível.

    Este tipo de resposta pode dar conta do aspecto intelectual da ausência divina que diz respeito à consistência lógica entre a existência de Deus e a ocorrência de ausência divina. Todavia, tais teodiceias não terão muita utilidade para resolver um outro aspecto relevante desse problema, pois demonstrar meramente a consistência lógica da existência de Deus com um estado de coisas que envolve ausência divina não elimina a parte experiencial desse problema. A ideia é que a questão “Por que razão Deus permanece silencioso perante a nossa dor e sofrimento?”, que Ferreira e Rodrigues colocam em agonia, não pode ser apenas interpretada como equivalente a uma questão de consistência, mas pode igualmente ser interpretada como um apelo por ajuda, ou até reclamação, a partir de uma perspectiva de primeira pessoa, ou seja: “Deus, por que razão estás em silêncio?! Se existes, não deverias estar em silêncio! Explica-nos pelo menos por que não nos podes ajudar!” É sobretudo este último problema que fica em aberto.