Social

  • Domingos Faria Avatar

    Conhecimento a partir de falsidades?

    Tipicamente sustenta-se que a verdade é uma condição necessária, embora não suficiente, para o conhecimento. Daí o conhecimento ser factivo, pois só se podem conhecer factos ou verdades. Além disso, tipicamente alega-se que, em inferências dedutivas, só se pode obter conhecimento a partir de verdades. Assim, costuma-se aceitar sem problemas o seguinte princípio: necessariamente, se (1) um sujeito S acredita numa proposição q apenas com base numa dedução válida a partir de uma proposição p, e (2) S sabe q, então p é verdadeira.

    No entanto, existem alguns contra-exemplos a este princípio intuitivamente plausível que procuram mostrar que é possível haver conhecimento de uma conclusão q a partir de uma premissa falsa p que implique q. Apresento um desses contra-exemplos, adaptado de Warfield (no seu artigo “Knowledge from falsehood”, p. 408, de 2005): Suponha-se que olho para o meu relógio e, com base disso, passo a acreditar que são 14h58m. Daqui dedutivamente infiro que não estou atrasado para a minha conferência das 17h00m. Ora, intuitivamente esta é uma conclusão de que tenho conhecimento mesmo se na realidade são 14h55m e não 14h58m. Portanto, de uma premissa falsa posso dedutivamente obter conhecimento. O que dizer deste contra-exemplo?

    Casos como este parecem mostrar que, num argumento dedutivo, o conhecimento de uma conclusão pode tolerar erro ou falsidade na premissa, na medida em que o erro ou falsidade não seja relevante ou suficientemente grande para ameaçar a verdade da conclusão. Assim, se o erro envolvido ao acreditar na premissa falsa é de pequena magnitude, a inferência dedutiva baseada na falsa premissa pode ainda assim fornecer uma via estável para a verdade da conclusão; porém, se o erro ou falsidade em questão for significativo, tal falsidade comprometerá a verdade da conclusão e, por conseguinte, não haverá conhecimento da conclusão. Portanto, respondendo à questão do título desde post, sim parece que é possível que se tenha conhecimento a partir de falsidades (desde que a falsidade não seja “grande” ou relevante).

  • Domingos Faria Avatar

    Argumento a favor da necessidade da identidade

    A tese da necessidade da identidade sustenta que se as afirmações de identidade são verdadeiras então são necessariamente verdadeiras. Uma afirmação de identidade é qualquer afirmação segundo a qual um objeto A é numericamente idêntico a um objeto B. Por exemplo, a afirmação de que Bernardo Soares é idêntico a Fernando Pessoa é uma afirmação de identidade deste género, tal como sucede com Túlio e Cícero, Véspero e Fósforo, Miguel Torga e Adolfo Correia da Rocha, ou água e H2O, etc. Ora, se é verdade que no mundo atual A e B são numericamente idênticos, então A e B são necessariamente idênticos; ou por outras palavras: são idênticos em todos os mundos possíveis em que existem. Mas se podemos conceber mundos possíveis em que A não é numericamente idêntico a B (e se isso for concebível, tal distinção é metafisicamente possível) e se essa concebilidade não se revelar ilusória, então por modus tollens concluímos que A não é de todo idêntico a B. Mas como justificar a tese da necessidade da identidade? Ou seja, como justificar a tese de que se A é idêntico a B, então necessariamente A é idêntico a B? Kripke no livro “O Nomear e a Necessidade” (p.42) procura justificar esta tese a partir de três premissas: o princípio da necessidade da auto-identidade, o princípio leibniziano da indiscernibilidade dos idênticos, e a suposição de que A é idêntico a B. Pode-se reconstruir o argumento de Kripke desta forma:

    1. Para qualquer objeto X, necessariamente X é idêntico a X. [Necessidade da auto-identidade]
    2. Para quaisquer objetos X e Y, se X é idêntico a Y, então tudo o que for verdade acerca de X é também verdade acerca de Y. [Lei de Leibniz]
    3. A é idêntico a B. [Suposição]
    4. Necessariamente A é idêntico a A. [De (1)]
    5. É verdade de A que é necessariamente idêntico a A. [De (4)]
    6. Se A é idêntico a B, então tudo o que for verdade acerca de A é também verdade acerca de B. [De (2)]
    7. Tudo o que for verdade acerca de A é também verdade acerca de B. [Modus ponens de (3) e (6)]
    8. É verdade acerca de B que este é necessariamente idêntico a A. [De (5) e (7)]
    9. Necessariamente A é idêntico a B. [De (8)]
    10. Logo, se A é idêntico a B, então necessariamente A é idêntico a B. [A partir de (3) e (9)].

    Será esta uma boa inferência para justificar a tese da necessidade da identidade? É possível defender que este argumento incorre na falácia de petição de princípio. Por exemplo, Jonathan Lowe no livro “A Survey of Metaphysics” defende que o passo (5) do argumento não se segue do (4) e que, além disso, em (5) assume-se que qualquer afirmação de identidade verdadeira acerca de A é uma verdade necessária (que é praticamente a conclusão que se quer provar). Mas o que realmente se segue de (4) é algo mais fraco, nomeadamente que:

    (5’) É verdade de A que é necessariamente idêntico a si mesmo.

    Isto porque o passo (4) resulta diretamente da premissa (1), ou seja, do princípio da necessidade da autoidentidade. Assim, é preciso substituir o passo (5) por (5’). E a partir deste último já não se pode concluir a tese da necessidade da identidade. Será esta uma boa objeção?

  • Domingos Faria Avatar

    Irracionalidade do Ateísmo

    O ateísmo é a tese metafísica de que Deus não existe nem qualquer outra divindade ou entidade sobrenatural. Normalmente os ateus alegam que o ateísmo é uma posição racional, talvez por causa do problema indiciário do mal, ou por causa do problema da ocultação divina, etc. Alguns ateus até acusam os teístas de serem completamente irracionais, alegando que a racionalidade ou as melhores explicações implicam ateísmo. Mas vale a pena analisar cuidadosamente e questionar tais suposições: será que o ateísmo é efectivamente uma crença racional? Baseando-me nas minhas críticas ao naturalismo metafísico, elaborei um pequeno esboço de argumento em que se procura concluir que o ateísmo é afinal autoderrotante e, por isso, irracional. O argumento que proponho, numa versão bastante simples e em rascunho, é o seguinte:

    1. Dado o ateísmo, praticamente todos os nossas antepassados que sobreviveram, e por isso que possuíam um comportamento adaptativo, tiveram faculdades que produziam geralmente crenças metafísicas falsas. [Isto porque as crenças metafísicas da maioria dos nossos antepassados nas sociedades antigas faziam referência a seres ou eventos sobrenaturais que dado o ateísmo são crenças falsas].
    2. Se 1 é verdadeira, então, dado o ateísmo, nas sociedades antigas as pessoas geralmente tinham faculdades cognitivas que não eram fiáveis com respeito a crenças metafísicas.
    3. Mas as nossas faculdades cognitivas não são significativamente diferentes comparativamente com as dos nossos antepassados.
    4. Assim, dado o ateísmo, geralmente as nossas faculdades cognitivas com respeito a crenças metafísicas não são fiáveis. [De 1 a 3]
    5. Se 4 é o caso, então quem aceita o ateísmo tem um anulador para a crença de que as suas faculdades são fiáveis com respeito a crenças metafísicas.
    6. Se 5 é o caso, então quem aceita o ateísmo tem um anulador para cada uma das suas crenças metafísicas.
    7. O ateísmo é uma crença metafísica.
    8. Portanto, quem aceita o ateísmo tem um anulador para o ateísmo. [De 4 a 7]
    9. Logo, o ateísmo é autoderrotante e, por isso, irracional. [De 8]

    Além disso, se este meu argumento for procedente, os ateus não podem utilizar racionalmente o argumento indiciário do mal ou o argumento da ocultação divina como tentativas de mostrar que Deus não existe e como forma de advogar uma suposta racionalidade do ateísmo. Pois, se o ateu tem um anulador para qualquer uma das suas crenças metafísicas, então tem igualmente um anulador para esses argumentos ateológicos uma vez que tais argumentos têm pelo menos uma premissa que expressa uma crença metafísica. Portanto, não seria racional o ateu recorrer a tais argumentos.

    Este argumento é válido e à primeira vista também parece sólido. Assim, parece que o ateísmo é irracional. Porém, quem não quiser aceitar a conclusão (9) terá de mostrar e explicar qual das premissas é falsa. Para um argumento mais sofisticado e melhor fundamentado a favor desta mesma tese, com resposta a algumas objecções, recomendo a leitura do meu recente artigo “Proposta de argumento contra o naturalismo metafísico”. Clique aqui para ler esse artigo.

  • Domingos Faria Avatar

    Uma deficiência fatal no argumento ontológico de Anselmo

    No capítulo 2 do “Proslogion”, Santo Anselmo apresenta o argumento ontológico a favor da existência de Deus. O argumento é uma redução ao absurdo. Ou seja, postula-se a não existência de Deus e a partir daí mostra-se que essa suposição leva a uma contradição. Utilizando a palavra “Deus” para abreviar a expressão “o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível”, Alvin Plantinga (1974, p. 202) sugeriu a seguinte formulação rigorosa do argumento de Anselmo:

    1. Deus não existe no mundo atual. [Suposição para a redução ao absurdo]
    2. Para quaisquer mundos M e M’ e objeto x, se x existe em M e x não existe em M’, então a grandiosidade de x em M excede a grandiosidade de x em M’. [Premissa]
    3. É possível que Deus exista. [Premissa]
    4. Há um mundo possível M tal que Deus existe em M. [De 3]
    5. Deus existe em M e Deus não existe no mundo atual. [De 1 e 4]
    6. Se Deus existe em M e Deus não existe no mundo atual, então a grandiosidade de Deus em M excede a grandiosidade de Deus no mundo atual. [De 2]
    7. A grandiosidade de Deus em M excede a grandiosidade de Deus no mundo atual. [De 5 e 6]
    8. Há um ser possível x e um mundo M tal que a grandiosidade de x em M excede a grandiosidade atual de Deus. [De 7]
    9. É possível que exista um ser mais grandioso do que Deus. [De 8]
    10. É possível que exista um ser mais grandioso do que o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível. [De 9, pela definição de “Deus”]
    11. Mas não é possível que exista um ser mais grandioso do que o ser mais grandioso do que o qual nenhum é possível.
    12. Logo, Deus existe no mundo atual. [De 1, 10 e 11]

    Será este um bom argumento? Plantinga pensa que não, pois há uma deficiência fatal neste argumento, nomeadamente na premissa (11). À primeira vista (11) parece verdadeira. Mas se analisarmos com mais pormenor essa premissa é suscetível a duas leituras:

    (11’) Não é possível que exista um ser mais grandioso do que o ser mais grandioso do que o qual nenhum é possível, nos mundos em que a sua grandiosidade esteja no máximo.

    (11’’) Não é possível que exista um ser mais grandioso do que o ser mais grandioso do que o qual nenhum é possível, no mundo atual.

    Plantinga nota que o “ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível” pode ter diferentes graus de grandiosidade em diferentes mundos. Por um lado, de acordo com a leitura (11’) aponta-se para aqueles mundos em que esse ser tem a sua máxima grandiosidade. Além disso, afirma-se aí que o grau de grandiosidade que ele tem naqueles mundos não é excedida por qualquer outro. O que parece correto. No entanto, há um problema: (11’) não contradiz (10). Isto porque (10) diz apenas que é possível que exista um ser mais grandioso do que o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível, no mundo atual. Ou seja, diz que há um ser possível cuja grandiosidade excede a que tem o ser mais grandioso possível no mundo atual. Mas isso não contradiz a proposição (11’) e, por isso, não se pode aplicar a redução ao absurdo.

    Por outro lado, caso adotemos a leitura (11’’), conseguimos aplicar sem problemas a redução ao absurdo, uma vez que (11’’) contradiz realmente (10). Mas há um problema com esta leitura (11’’). De acordo com (11’’), não é possível haver um ser cuja grandiosidade ultrapasse a que tem o ser mais grandioso possível no mundo atual. No entanto, não temos qualquer razão para pensar que essa proposição é verdadeira ou necessariamente verdadeira. Pois, se há um ser cuja grandiosidade num dado mundo é absolutamente máxima, então certamente que não poderia haver um ser mais grandioso do que isso. Contudo, daí não se segue que este ser tem tal grau de grandiosidade no mundo atual. Apenas se segue que tem esse grau de grandiosidade num dado mundo, mas não necessariamente no mundo atual.

    Portanto, a deficiência fatal do argumento de Anselmo é a seguinte: ou a premissa (11) é verdadeira, seguindo a leitura (11’), mas então o argumento é inválido; ou o argumento é válido, mas então a premissa (11), seguindo a leitura (11’’), é falsa. Assim, de uma forma ou de outra, o argumento não será bem-sucedido.

    Esta crítica ao argumento de Anselmo parece-me muito mais prometedora do que as objeções de Gaunilo ou de Kant, as quais podem ser mais ou menos respondidas e não mostram realmente qual é o problema com o argumento. Penso que Plantinga consegue identificar com muito mais rigor o que está de errado no argumento de Anselmo. No entanto, Plantinga não foi o único a notar este problema, David Lewis no artigo “Anselm and Actuality” (de 1970) também apresenta uma crítica muito semelhante. Mas pelo facto deste argumento de Anselmo ter um enorme deficiência, não se segue que algum outro tipo de argumento ontológico tenha o mesmo erro e que não possa ser bem-sucedido. A este propósito vale a pena analisar uma das mais recentes e consistentes defensas do argumento ontológico proposta por Robert Maydole nos artigos “The Ontological Argument” (2009) e “Ontological Arguments Redux” (2012).

  • Domingos Faria Avatar

    Discutir o aborto com razões

    O livro Ética com Razões de Pedro Galvão é um excelente livro de introdução à ética aplicada. Para incentivar a discussão pública escrevo agora uma pequena recensão crítica sobre este livro. Porém, mais do que fazer uma recensão geral e genérica de todo o livro, parece apropriado olhar com algum pormenor para alguma das suas partes. Vejamos, então, a primeira parte que trata da questão de saber se o ato de abortar é eticamente aceitável. Mais especificamente trata de responder ao seguinte problema: ‘será que, normalmente, abortar é errado logo no primeiro trimestre da gestação?’. O autor defende uma posição pró-escolha moderada, ou seja, interromper a gravidez numa fase adiantada é normalmente errado, mas nada há de eticamente inaceitável em interrompê-la ao longo do primeiro trimestre de gestação. Para defender essa tese começa por analisar criticamente três argumentos contra a aceitabilidade moral do aborto e procura mostrar que nenhum desses argumentos é sólido.

    No primeiro argumento, designado como ‘A humanidade do feto’, defende-se que o aborto é moralmente errado porque o feto é um ser humano e todos os seres humanos têm o direito moral à vida. De acordo com o autor este argumento não é procedente, pois o termo ‘ser humano’ é utilizado de forma ambígua, podendo ser suscetível de duas interpretações: (i) pode-se entender ‘ser humano’ como um conceito puramente biológico para se referir a quem faz parte da espécie Homo Sapiens, ou (ii) pode-se entender ‘ser humano’ como um conceito psicológico referindo um agente dotado de racionalidade e consciência de si. Ora, por um lado, se no argumento da humanidade do feto estiverem a usar a interpretação (ii), então uma das premissas é falsa, pois os fetos não são dotados de racionalidade ou de consciência de si. Por outro lado, se no argumento usarem a interpretação (i), então uma das premissas é implausível, pois ter um determinado tipo de código genético não confere por si só direito à vida, ou seja, não é uma condição suficiente para haver um direito moral à vida. Portanto, de uma forma ou de outra, tal argumento não consegue mostrar que o aborto é imoral.

    Como possível crítica a esta objeção do autor talvez se possa advogar que os fetos pertencem à mesma espécie que nós e isso parece eticamente significativo para conferir prima facie direito à vida. A co-pertença à espécie humana parece uma relação relevante; talvez isso explique intuitivamente por que razão tendemos a tratar melhor deficientes mentais profundos ou fetos da nossa espécie do que seres de outras espécies. Será que isto permite salvar o argumento da humanidade? Essa é uma questão a discutir.

    Uma versão reformulada do argumento da humanidade do feto, procura mostrar que embora os fetos não sejam efetivamente dotados de racionalidade e de consciência de si, eles geralmente têm a potencialidade de se tornarem racionais e conscientes de si. Por outras palavras, os fetos geralmente são pessoas potencialmente. Além disso, pode-se alegar que todas as pessoas têm o direito moral à vida e que se as entidades X têm um certo direito moral, então os potenciais X têm igualmente tal direito. Daqui se segue que os fetos têm direito moral à vida e que o aborto é eticamente inaceitável. No entanto, o problema deste argumento, de acordo com o autor, é que a premissa que alega que ‘se as entidades X têm um certo direito moral, então os potenciais X têm igualmente tal direito’ é falsa, pois existem vários contraexemplos para essa premissa. Por exemplo, de acordo com essa premissa, se um adulto tem direito à liberdade sem uma interferência paternalista, então as crianças, que são potenciais adultos, também teriam tal direito; porém, parece que não há nada de errado na interferência paternalista na vida das crianças para o bem delas. Ora, se essa premissa for falsa, então o máximo que conseguimos concluir é que os fetos têm o direito à vida ‘potencialmente’, mas não ‘efetivamente’.

    Para efeitos de discussão pode-se admitir que o direito à vida em questão não é atual mas apenas potencial; no entanto, mesmo assim não será que a mera potencialidade pode ter alguma relevância moral (pelo facto de haver um embrião ou feto em desenvolvimento)? Recorrendo a um exemplo extremo, imagine-se que o nosso país está a desenvolver uma central nuclear; atualmente essa central nuclear não tem lixo nuclear, mas potencialmente há lixo nuclear. Ora, ainda que o lixo nuclear seja meramente potencial, parece que tendemos a ter agora a preocupação com o destino que daremos a esse potencial lixo ou se vale realmente a pena continuar com a construção da central dado que haverá tal lixo. Também podemos questionar: será que vale a pena interromper um organismo em desenvolvimento dado que tal organismo terá efetivamente direito à vida? Não será que as consequências/resultados futuros ou potenciais do que se está a construir ou do que deixamos ou não desenvolver tem relevância moral?

    O segundo argumento que o autor examina contra a moralidade do aborto baseia-se na regra de ouro, tal como defendida pelo filósofo e padre jesuíta Henry Gensler. A formulação da regra de ouro de Gensler é a seguinte: ‘se pensarmos que seria aceitável fazer uma ação A a um sujeito X, mas não admitirmos que alguém nos fizesse A caso estivéssemos no lugar de X, estaremos a ser inconsistentes’. Partindo desta regra de ouro, o argumento contra o aborto é construído a partir de uma analogia. Assim, pode-se concluir, a partir da regra de ouro, que não é permissível infligir danos pré-natais, como cegar um feto. Isto porque agora, perante uma situação hipotética de a nossa mãe tomar uma substância que nos cegue quando eramos um feto, temos normalmente uma atitude de reprovação e não seríamos consistentes caso admitíssemos que seria aceitável fazer isso aos outros mas não a nós próprios. Do mesmo modo, agora, perante uma situação hipotética de a nossa mãe tomar uma substância que nos mate (que nos aborte) quando eramos um feto, temos normalmente uma atitude de reprovação e não seríamos consistentes caso admitíssemos que seria aceitável fazer isso aos outros mas não a nós próprios. Portanto, se somos consistentes, não pensamos que normalmente é permissível abortar.

    Para o autor este argumento não é convincente, pois há um problema com a analogia: por um lado, não é admissível que nos tivessem cegado dentro do útero; mas, por outro lado, é admissível que nos tivessem abortado. Mas porquê? Porque se nos tivessem cegado, mais tarde isso viria a prejudicar muito a nossa qualidade de vida; no entanto, se nos tivessem abortado, tal não ocorreria uma vez que nunca teríamos chegado a nascer. Todavia, nunca termos chegado a nascer não é algo mau? Se admitirmos isso, temos também de nos opor por exemplo à contraceção ou à abstinência sexual, pois tais atos também poderiam levar a que não tivéssemos nascido. Mas parece não haver nada de errado com a contraceção ou com a abstinência, mesmo que tais atos não permitam o nascimento de incontáveis humanos.

    Uma possível crítica a esta objeção do autor pode consistir em argumentar que existe uma desanalogia entre o aborto e a contraceção. Ou seja, enquanto no aborto elimina-se diretamente um determinado organismo (que em princípio, caso não seja danificado, continuará progressivamente a evoluir), na contraceção não é isso o que sucede. No caso da contraceção só se impede a formação futura de um possível organismo ou organismos. Deste modo, no aborto é um organismo concreto que é eliminado, na contraceção ainda não há qualquer organismo concreto, com uma DNA específico, que possa evoluir progressivamente ao ponto de ter cérebro e consciência. No aborto parece que se está a privar a evolução do organismo num sentido forte, enquanto na conceção essa privação seria num sentido muito fraco (pois nem sequer temos organismo em evolução ou em desenvolvimento). Será que isto permitirá salvar o argumento do Gensler? Mais uma questão para discutir.

    O último argumento contra o aborto que o autor analisa criticamente é da autoria do filósofo Don Marquis. Para este filósofo matar uma pessoa é normalmente errado porque esse ato impõe-lhe a privação de um futuro significativamente valioso, ou seja, priva-a de um ‘futuro-com-valor’. Ora, se normalmente matar uma pessoa é errado uma vez que tal ato a priva de um futuro-com-valor, então de igual modo matar um feto humano é normalmente errado porque também fica privado de um futuro-com-valor. Portanto, matar um feto é normalmente errado. 

    Para o autor esse não é um bom argumento porque tem uma premissa falsa. Ou seja, é falso que os fetos têm normalmente um futuro-com-valor, bem como é falso que no aborto se está a privar um indivíduo a um futuro com valor (embora tal suceda no caso do aborto tardio). Mas porquê? Para fundamentar isto, o autor começa a debruçar-se sobre questões metafísicas da identidade pessoal, como as seguintes: quando começamos a nossa existência? O que somos nós? A teoria do animalismo é uma resposta bastante comum para esses problemas e está pressuposta no argumento da privação de Marquis. Segundo essa teoria, cada pessoa é um organismo da espécie Homo Sapiens e começa a existir quando o seu organismo começa a existir. Ora, se essa teoria for verdadeira, então será verdade que os fetos têm futuro-com-valor. Porém, o autor procura mostrar que o animalismo é falso porque leva a conclusões absurdas em que teríamos de admitir, por exemplo, que as gémeas dicéfalas Abigail e Brittany seriam apenas uma pessoa uma vez que têm apenas um único organismo [ver aqui]. Como crítica talvez se possa dizer que o autor está a criticar apenas uma versão fraca de animalismo e que a objeção não é procedente perante versões mais sofisticadas de animalismo, tal como aquela que é defendida por Peter van Inwagen ou mais recentemente por Andrew Bailey, entre outros. 

    Uma resposta mais plausível aos problemas metafísicos da identidade pessoal, de acordo com o autor deste livro, é teoria que defende que cada um de nós é uma certa mente, sendo que a mente de uma pessoa humana está realizada no seu cérebro e existe enquanto o cérebro conserva a capacidade da consciência, tal como proposto pelo filósofo Jeff McMahan. Deste modo, começamos a existir quando a nossa mente começa a existir, quando o nosso cérebro começa a gerar estados de consciência, como dores e outras sensações. Ora, de acordo com a investigação científica, no primeiro trimestre da gravidez um feto não tem essa capacidade de gerar estados de consciência. Deste modo, o começo da nossa existência não sucede nesse período e, por isso, se tivessem morto o nosso organismo durante essa fase inicial, não nos teriam morto nem nos teriam privado de uma futuro-com-valor (pois não teríamos sequer começado a existir). Pelo contrário, se nos matassem numa fase mais tardia da gravidez, ter-nos-iam morto, pois já tínhamos começado a existir, já teríamos a capacidade de gerar consciência e, por isso, já nos estariam a privar de um futuro-com-valor. Assim, temos razões para sermos contra o aborto tardio e, simultaneamente, razões a favor da permissividade do aborto quando realizado no primeiro trimestre.

    Como nota crítica quero salientar que parece haver um pressuposto central que é aceite sem argumentação e que é fundamental para a argumentação do autor funcionar, nomeadamente parece advogar-se que para se discutir apropriadamente a ética do aborto é preciso primeiro discutir questões metafísicas sobre a identidade pessoal. Ou seja, não se pode fazer ética sem fazer metafísica. Ora, se este pressuposto estiver correto e se a teoria de McMahan for de facto uma teoria da identidade correta, então parece que o autor talvez tenha razão ao defender a posição pró-escolha moderada em relação ao aborto. Mas por que razão devemos aceitar aquele pressuposto central do autor? Será que não se pode discutir com relevância o problema do aborto sem entrar em questões metafísicas? Pelo menos bastante literatura sobre o problema ético do aborto não parece dependente dessas questões metafísicas da identidade pessoal. Como este pressuposto é central para o argumento do autor ser bem-sucedido, penso que o autor deveria argumentar a favor dele e considerar possíveis objeções.

    Outro pormenor que não é discutido no livro e que é importante considerar diz respeito aos vários tipos de aborto e à forma como o aborto é praticado. Intuitivamente parece haver uma enorme diferença entre (i) abortar em casos de violação como no noticiado caso da menina de 12 anos [ver aqui] e (ii) abortar em casos de reincidência constante em que se usa o aborto como uma espécie de método contracetivo. Parece haver uma diferença moralmente relevante entre (i) e (ii). Mas será que a argumentação defendida pelo autor consegue dar conta destes casos? À primeira vista parece que não e aqui talvez seja necessário recorrer a uma ética das virtudes para acomodar essa diferença. De qualquer forma, quer se concorde quer se discorde com as várias teses e argumentos do autor, vale a pena ler este livro e entrar neste debate. Para isso, numa iniciativa do blog Crítica na Rede, convido o leitor a escrever aqui as suas objeções, críticas, comentários, dúvidas.