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    A lógica silogística e o problema dos termos singulares

    Ainda a propósito da discussão sobre a possível revisão do programa de filosofia para o ensino secundário, outro problema que tenho notado tem a ver com a leccionação da própria lógica aristotélica, o que pode constituir mais uma razão para abandonar a opção por leccionar esta lógica ou antes por pensar seriamente em reformular o modo como é leccionada. Por exemplo, já recebi e-mails em que que me dizem que alguns professores usam nos testes casos como o seguinte:

    “O Sócrates é mortal porque todos os homens são mortais e o Sócrates é homem”.

    A pergunta no teste é a de colocar este argumento na sua forma canónica, bem como a de determinar se é válido ou inválido. Como correcção deste exercício dizem que a resposta é a seguinte: “(1) Todo o homem é moral, (2) Todo o Sócrates é homem, (3), Logo, todo o Sócrates é mortal. O argumento é do modo AAA da primeira figura e, por isso, é válido”. Mas, em primeiro lugar, quero salientar que a lógica aristotélica, pelo menos como está apresentada nos “primeiros analíticos”, parece trabalhar apenas com termos gerais e não com termos singulares. Ou seja, rigorosamente na lógica de Aristóteles não há termos singulares, como “Sócrates”, mas apenas termos gerais. Por isso, não é apropriado usar termos singulares quando se está a leccionar a lógica original de Aristóteles. Já agora, quanto à lógica aristotélica, o lógico poláco Lukasiewicz sublinha o seguinte no seu livro Aristotle’s Syllogistic:

    “Aristotle does not introduce into his logic singular or empty terms or quantifiers. He applies his logic only to universal terms, like ‘man’ or ‘animal’ (…) Singular, empty, and also negative terms are excluded as values” (p. 130).

    Em segundo lugar, é verdade que na época medieval alguns lógicos tentaram adaptar a lógica aristotélica para tratar termos singulares; mas para essa extensão da lógica funcionar, em vez de se interpretar “Sócrates” como um termo singular deve-se interpretar como um termo geral. Assim, quando se vê “Sócrates é mortal” deve ler-se “Todo o Sócrates é mortal”. Mas quero ressaltar que isto é apenas um manobra da lógica medieval e não da lógica original de Aristóteles. Assim, se o professor de filosofia está a dar apenas a lógica de Aristóteles e não uma extensão medieval da lógica silogística, então não deveria colocar estes casos de termos singulares que são interpretados como termos gerais. Além disso, com esta manobra surgem problemas como o seguinte: se “Sócrates é mortal” é uma proposição do tipo A, qual é a negação dessa proposição? Talvez a resposta mais natural seja dizer que a sua negação é uma proposição do tipo O (que é a contraditória da proposição do tipo A). Mas, nesse caso, por que razão “Sócrates é mortal” é uma proposição universal e “Sócrates não é mortal” é uma proposição particular? No primeiro caso estamos a falar da totalidade do Sócrates mas no segundo caso já não estamos a falar da totalidade do Sócrates? Esta parece ser uma manobra bastante ad hoc. (O Ricardo Miguel também sublinha esse problema aqui e o Desidério Murcho aponta para esse problema aqui).

    Mais recentemente, e em terceiro lugar, alguns filósofos contemporâneos tentaram fazer uma expansão da lógica silogística para lidar apropriadamente com os termos singulares. O caso que melhor conheço é o do filósofo Harry Gensler que acrescenta à lógica silogística as constantes individuais; assim, para além das tradicionais proposições categóricas: “todo A é B”, “nenhum A é B”, “algum A é B”, e “algum A não é B”, temos igualmente as seguinte fórmulas lógicas: “x é A”, “x não é A”, “x é y”, e “x não é y”. Com isto já podemos tratar de forma apropriada os termos singulares e é mais plausível que o método medieval que expus em cima. O Gensler explica como o seu método funciona numa entrevista que lhe fiz recentemente e que se pode ler aqui.

    Portanto, os professores de filosofia que leccionam a lógica silogística devem-se perguntar: mas afinal que lógica silogística se deve ensinar? Apenas a lógica silogística original de Aristóteles que não lida com termos singulares? A extensão medieval da lógica silogística que trata os termos singulares como termos gerais? Ou alguma extensão mais contemporânea da lógica silogística que tem novas formas lógicas para proposições com termos singulares?

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    Swinburne e uma comunicação polémica sobre a homossexualidade

    No passado dia 23 de Setembro de 2016 o filósofo Richard Swinburne proferiu uma comunicação com o título “Christian Moral Teaching on Sex, Family, and Life” no encontro da Sociedade de Filósofos Cristãos (Society of Christian Philosophers [SCP])1que foi largamente contestada e algumas pessoas ficaram seriamente ofendidas. O motivo da polémica parece estar relacionado com o facto do Swinburne alegar que a homossexualidade é uma deficiência que precisa de ser prevenida e curada2. Isto foi por muitos interpretado como roçando a homofobia. Tal situação levou a que o presidente da SCP, o filósofo Michael Rea, escrevesse o seguinte comunicado no seu mural do facebook:

    “Quero expressar o meu pesar pela dor causada no recente encontro da Sociedade de Filósofos Cristãos. As opiniões expressas no discurso do Professor Swinburne não são as da própria SCP. Embora a nossa sociedade seja amplamente unida pelo meio da fé religiosa, as opiniões dos nossos membros são diversificadas. Como presidente da SCP, estou empenhado a promover a vida intelectual da nossa comunidade filosófica. Consequentemente (entre outras razões), estou comprometido com os valores da diversidade e da inclusão. (…)”.

    Mas afinal qual é o argumento do Swinburne que criou toda esta polémica? Não posso dizê-lo com precisão, uma vez que não assisti a essa comunicação. Contudo essas ideias de Swinburne já estão presentes no seu livro Revelation: From Metaphor to Analogy de 2007. Por exemplo, na página 303 desse livro podemos ler o seguinte:

    “A primeira coisa a reconhecer é que a homossexualidade é uma deficiência. Pois um homossexual é incapaz de entrar numa relação de amor em que o amor é como tal procriativo. É uma grande benção, a condição humana normal importante para a continuidade da nossa raça, ter filhos que são o fruto de actos amorosos dos pais entre si”.

    Na página seguinte, continua a dizer que “as deficiências precisam de ser prevenidas e curadas”. Daí, conclui que a homossexualidade deve ser prevenida e curada onde for possível e faz uma lista de algumas recomendações para se colocar em vigor essa conclusão. A estrutura geral do argumento pode ser formulada da seguinte forma:

    1. Os homossexuais são incapazes de entrar numa relação de amor em que o amor é como tal procriativo.
    2. É de grande valor ter filhos que são o fruto de actos amorosos dos pais entre si.
    3. A incapacidade de fazer alguma coisa de grande valor é uma deficiência.
    4. ∴ A homossexualidade é uma deficiência. [De 1 a 3]
    5. As deficiências precisam de ser prevenidas e curadas onde for possível.
    6. Em certa medida, é possível prevenir e curar a homossexualidade.
    7. ∴ Em certa medida, a homossexualidade deve ser prevenida e curada. [De 4 a 6]

    Será este um bom argumento? O argumento é válido, mas não é sólido. Num outro texto, já defendi que argumentos deste estilo não são procedentes e levam a consequências contraintuitivas. Mas vale a pena agora levantar brevemente outras objecções. Em primeiro lugar, é surpreendente notar que Swinburne não dá razões que suportem as premissas 1, 2, e 5. Em segundo lugar, nas duas primeiras premissas, quando se diz que os homossexuais são incapazes de ter crianças que são o fruto dos seus actos de amor, o Swinburne parece estar a fundir os conceitos de amor e de sexo/procriação. Todavia, tais conceitos não são coextensionais; pois, há muitos actos sexuais que não são actos de amor, bem como há actos de amor que não são actos sexuais. Por exemplo, as carícias, olhares, ou até a partilha das tarefas domésticas não são afinal “actos de amor”? Mas terão esses actos de estar fundidos ou ligados com actos sexuais? Parece óbvio que não. Além disso, por que razão não devemos contar também como um acto de amor a adopção de crianças? Se tal for o caso, como é muito plausível, então a criança adoptada por duas pessoas do mesmo sexo seria, utilizando as palavras de Swinburne, “o fruto dos seus actos de amor”. Nesse caso, a conclusão 4 já não se segue das premissas, sendo a premissa 2 completamente falsa. Ou seja, se a adopção é um acto de amor, então os homossexuais são capazes de ter crianças que são fruto do seu acto de amor.

    Em terceiro lugar, se tal argumento fosse sólido, então teríamos igualmente de afirmar que os casais inférteis são deficientes, pois não são capazes de “de entrar numa relação de amor em que o amor é como tal procriativo”. Mas não seriam apenas os casais inférteis que seriam deficientes, mas também os celibatários que focam toda a sua atenção numa dada missão (seja ela científica, académica, caritativa, ou religiosa) uma vez que não seriam capazes de entrar nessa relação procriativa (biologicamente). Mas se uma tal consequência é intuitivamente inaceitável (pois, um casal infértil ou celibatário pode ainda a ser fértil de uma forma não biológica), então o argumento de Swinburne não é sólido.

    Em quarto lugar, se analisarmos com cuidado a premissa 1, constataremos que também é falsa. Isto porque nessa premissa diz-se que os homossexuais são incapazes de entrar numa relação procriativa. Todavia, no sentido comum de ser capaz de fazer algo (entendido num sentido modal), a maioria dos homossexuais é capaz de ter relações heterossexuais, de casar com alguém do sexo oposto, de ter filhos biológicos, etc. Por outras palavras, podemos imaginar um mundo possível ou uma situação contrafactual em que um homossexual entra numa relação procriativa. Uma analogia: pode-se imaginar que alguém tem mais satisfação ao saltar do que a andar lentamente e para ir de um sítio para o outro anda sempre a saltar. Mas daí não se segue que esse sujeito, que anda sempre a saltar, seja incapaz de andar lentamente.

    Em quinto lugar, relativamente ao conceito de deficiência utilizado na premissa 3, parecem haver grandes problemas. Pois, Swinburne define esse conceito como a incapacidade para fazer alguma coisa de grande valor. Mas assim caracterizado, o conceito de deficiência é bastante contraintuitivo, uma vez que há muitas actividades que são de grande valor e haverá sempre pessoas que serão incapazes de as realizar. Por exemplo, os homens são incapazes de dar à luz; desse modo, os homens são deficientes por causa do alto valor da gravidez de que não são capazes. Além disso, se fizermos uma conjunção dessa premissa 3 com a premissa 5, deduzimos que toda a incapacidade de fazer algo de grande valor precisa de ser prevenido e curado. Porém, seria tolo dizer que os homens precisam de ser curados para terem o grande valor da gravidez ou que são simplesmente deficientes por causa de não serem capazes de dar à luz. Isto indicia também que Swinburne está a utilizar na premissa 3 e 5 de forma diferente o conceito de “deficiência”; enquanto na premissa 3 está a utilizá-lo como incapacidade de fazer algo de grande valor, na premissa 5 parece que está a utilizá-lo antes como sinónimo doença grave (p.e. dolorosa ou letal) e que para tal precisa de ser prevenida e curada. Mas, assim, o argumento de Swinburne comete simplesmente a falácia da equivocidade e, por isso, é um mau argumento.

    Em sexto lugar, a caracterização de deficiência utilizado por Swinburne difere em muito daquela que é utilizada comummente e que está mais relacionada com alguma deformação física ou insuficiência mental. Ainda sobre esta premissa 3 e conclusão 4, vale a pena salientar que a Associação Americana de Psiquiatria removeu em 1973 a homossexualidade do DSM (O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), sendo que essa decisão foi fundamentada por investigação científica que indicou que os homossexuais não são diferentes dos heterossexuais intelectualmente e psicologicamente; por isso, eles não têm nenhuma deficiência. Deste modo, a sugestão de Swinburne de que a homossexualidade é uma deficiência e até uma doença (como ele afirma na nota 21 da página 303) está em contradição flagrante com o consenso da comunidade científica.

    Talvez ainda mais grave são as recomendações de Swinburne para prevenir e curar a homossexualidade que se podem ver a partir da página 304, bem como no anexo final do livro a partir da página 361. As recomendações de Swinburne são tão surreais, como: discriminação legal contra a prática homossexual, mudança do clima social para que a homossexualidade não seja aceite, intervenção genética e biológica, terapia correctiva, etc. Por isso, as acusações daqueles que dizem que o Swinburne está a roçar a homofobia parecem acusações legítimas. Os danos psicológicos e físicos que tais recomendações produziriam nas pessoas com inclinações homossexuais seriam bastante graves e eticamente inaceitáveis (pense-se por exemplo nos casos conhecidos de Alan Turing, entre outros). Além disso, penso que tais discriminações contra os homossexuais são anti-cristãs; a mensagem central do Cristianismo (que está presente no Sermão da Montanha) parece ser completamente contra tais atitudes de discriminação, exclusão, e injustiça.

    Para terminar quero realçar que pessoalmente admiro muito o trabalho intelectual do Richard Swinburne, mas neste âmbito sobre a moralidade da homossexualidade reconheço que ele não tem qualquer razão e os seus argumentos envolvem falhas muito graves. Por causa desses equívocos de Swinburne que poderiam ser facilmente confundidos com a posição oficial da Sociedade de Filósofos Cristãos (SCP), penso que o Michael Rea (presidente da SCP) esteve muito bem ao demarcar a SPC daquilo que Swinburne estava a defender. Também a esse propósito a filósofa católica Eleonore Stump (uma especialista no tomismo analítico) comentou no seu mural de facebook que:

    “Ele [Swinburne] assumiu uma posição forte sobre um tema altamente controverso, que causa discórdia mesmo entre os Cristãos, e ele expressou os seus pontos de vista de uma forma incendiária, de tal modo que aqueles que não concordavam com ele ficaram feridos e irritados e, até mesmo, alguns daqueles que concordaram ficaram consternados. A Sociedade de Filósofos Cristãos não é uma igreja. Não tem um credo. (…) Mas uma série de comentários indignados após o discurso do Prof. Swinburne atribuiu os seus pontos de vista aos cristãos em geral ou à Sociedade de Filósofos Cristãos em particular. Nessas circunstâncias, cabia ao Presidente da SCP, Michael Rea, esclarecer a posição da SCP. (…) Ele lamentou somente a mágoa que a palestra do Prof. Swinburne causou”.

    Para além da mágoa causada, poder-se-ia lamentar igualmente do argumento completamente falacioso que Swinburne apresentou. Neste caso ele terá de repensar melhor as suas ideias e a forma como as apresenta.


    1. Para ver informações sobre este encontro, clique aqui.↩︎
    2. Um exemplo dessas críticas pode ler-se aqui, mas muitas outras críticas foram surgindo em vários murais do facebook de alguns filósofos que participaram nesse encontro.↩︎

    Actualização – 04/10/16:

    • Entretanto o texto e o vídeo da comunicação do Swinburne foram publicados online. O texto pode ser lido aqui e o vídeo pode ser visualizado aqui.
    • O que se pode ver no texto e no vídeo é muito parecido ao argumento que Swinburne apresentou no seu livro Revelation: From Metaphor to Analogy. Aliás, ele começa precisamente a comunicação a dizer que o que vai defender coincide largamente com o capítulo 11 daquele livro. Por isso, as críticas que fiz com base nesse livro podem-se aplicar igualmente ao texto e vídeo de Swinburne entretanto publicados online.
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    Hume, Fátima, e o Milagre do Sol

    Uma grande parte dos católicos acredita que em 13 de Outubro de 1917, na localidade de Fátima (em Portugal), aconteceu o “milagre do Sol” e que nossa senhora apareceu e transmitiu uma mensagem de fé relevante a três pastorinhos. Esse milagre do Sol foi testemunhado por uma grande multidão composta tanto por crentes e cépticos. É importante também referir que a Igreja Católica reconheceu oficialmente o “milagre de Fátima” em 13 de Outubro de 1930. No entanto, ao longo dos anos surgiram várias objecções interessantes ao milagre do Sol que vale a pena considerar e avaliar criticamente. Por exemplo, Richard Dawkins (ver aqui) defende o seguinte:

    “Por um lado, é-nos pedido que acreditemos numa alucinação em massa, num artifício de luz ou numa mentira colectiva envolvendo 70 000 pessoas. Isto é reconhecidamente improvável, mas é menos improvável do que a alternativa: que o Sol realmente se moveu. O Sol que estava sobre Fátima não era, afinal, um Sol privado: era o mesmo Sol que aquecia todos os outros milhões de pessoas no lado do planeta em que era dia. Se o Sol se moveu de facto, mas o acontecimento só foi visto pelas pessoas de Fátima, então teria de se ter dado um milagre ainda mais notável: teria de ter sido encenada uma ilusão de não-movimento relativamente a todos os milhões de testemunhas que não estavam em Fátima. E isso se ignorarmos o facto de que, se o Sol se tivesse realmente deslocado à velocidade referida, o sistema solar se teria desintegrado”.

    Com base nesta passagem, bem como no argumento de David Hume sobre os milagres, os autores de um dos blogues mais importantes e interessantes sobre o ensino da filosofia em Portugal, o blog “A Dúvida Metódica”, sustentam que “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade” (para ver o post completo clique aqui). Serão estas críticas plausíveis? Irei defender que estas objecções não são procedentes e que cometem falhas graves.

    Em primeiro lugar, o Richard Dawkins (como costuma fazer com alguma frequência) está a apresentar, nessa citação exposta acima, uma clara falácia do “homem de palha”. Isto porque ninguém que investigou seriamente e que procura defender racionalmente esse fenómeno de Fátima sustenta que “o Sol realmente se moveu”. Por exemplo, o padre e físico Stanley Jaki no livro “God and the sun at Fatima” (de 1999) afirma que muito provavelmente o fenómeno que ocorreu em 13 de Outubro de 1917 é de natureza meteorológica e não de natureza astronómica, sendo completamente passível de ser explicado de um ponto de vista naturalista (pela conjunção de nuvens do tipo cirro, de nuvens de baixa altitude, de ventos, etc…). Mas, então, onde está o milagre? Caso exista realmente milagre, ele parece estar na previsão impressionante desse fenómeno meteorológico (pois os pastorinhos anunciaram com antecedência e precisão o dia, hora, e local desse fenómeno; foi aliás por causa disso que estava tanta gente naquele local naquele dia). É claro que é muito disputável se isto, entendido desta forma, é realmente um milagre. Mas, dada a existência de Deus, isso não será impossível nem talvez bastante improvável. Mas quer tenha havido ou não milagre, é preciso salientar que a crítica do Dawkins falha completamente no alvo e que está, mais uma vez, a cometer uma falácia óbvia.

    Além disso, é importante questionar: será que de facto a Igreja Católica defende que no fenómeno de Fátima “o Sol realmente se moveu”? Onde é que a Igreja Católica (papa, bispos, padres que sejam crediveis) sustentam que o fenómeno de Fátima de 1917 é um fenómeno de natureza astronómica em vez de ser de natureza meteorológica? Aquilo que conheço da Igreja Católica (e se ela procura conciliar fé e a razão/ciência, como costuma alegar), então ela segue e defende aquilo que o padre e físico Stanley Jaki sustenta no seu livro “God and the sun at Fatima” (de 1999), ou seja, que muito provavelmente o fenómeno que ocorreu em 13 de Outubro de 1917 em fátima é de natureza meteorológica e não de natureza astronómica, sendo completamente passível de ser explicado de um ponto de vista naturalista (sendo que, a haver milagre, esse milagre não está nesse fenómeno meteorológico mas na previsão clara e precisa dos pastorinhos desse fenómeno). Aliás, esta versão do fenómeno de fátima (como evento meteorológico e não como astronómico) parece corresponder aos testemunhos escritos supostamente imparciais e objectivos de várias pessoas credíveis que presenciaram directamente a esse fenómeno, como o testemunho de Gonçalo Xavier de Almeida Garret que era professor de matemáticas e especialista de astronomia na Universidade de Coimbra. Portanto, mais uma vez realço que o Dawkins está a bater num espantalho (pelo menos não atinge minimamente a Igreja Católica e os crentes que procuram boas razões para a sua fé, bem como conciliar a fé com a ciência, mesmo neste fenómeno de Fátima).

    Em segundo lugar, e filosoficamente mais relevante, é importante salientar que o argumento de Hume não é metafísico mas sim epistémico. Assim ele não está a argumentar que os milagres são falsos ou até impossíveis; pelo contrário, só está a argumentar que não é razoável ou racional acreditar em milagres apenas com base do testemunho. Por isso não entendo como os autores do blog “Dúvida Metódica” possam defender que, com base em David Hume, “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade”. No máximo o que se pode concluir com uma argumentação humeana é o seguinte: os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam em algo que é, do ponto de vista epistémico, irrazoável ou irracional. Mas daí não se segue que o milagre em questão seja falso ou sequer impossível. Para se mostrar isso seria necessário outro tipo de argumento. É também relevante salientar que o argumento do Hume está a pressupor uma concepção reducionista do testemunho. Agora a questão interessante a discutir é a de saber se o argumento continua a correr com uma concepção não-reducionista do testemunho (na linha de Thomas Reid). E já agora é importante discutir que concepção de testemunho será a mais plausível (a reducionista, ou não-reducionista, ou uma híbrida, ou ainda uma abordagem pluralista do testemunho caso-a-caso). Cada uma destas concepções terá consequências diferentes para se aceitar um dado testemunho(s) como racional ou irracional.

    Mas, afinal, qual é o argumento de David Hume? No seu argumento (presente na secção 10 do livro “Enquiry Concerning Human Understanding”), Hume está comprometido com a tese epistémica de que não é razoável acreditar em milagres apenas via testemunho uma vez que é mais razoável acreditar, dada a evidência ou indícios de que dispomos, que as testemunhas estão equivocadas do que o contrário. Vale a pena reler o livro do Hume e tentar formular com precisão e clareza o seu argumento, avaliando se é um argumento cogente ou não. Aqui fica uma proposta de formulação que me parece bastante rigorosa:

    1. Em qualquer caso em que estamos perante o testemunho que um milagre M ocorreu, devemos pesar essa evidência testemunhal a favor da ocorrência de M contra a nossa evidência que M não ocorreu.
    2. Mas se M é um milagre, então (dada a definição humeana de milagre) M deve entrar em conflito com uma lei da natureza L, para a qual a nossa evidência deve ser excelente. (E a nossa evidência para L deve ser excelente, caso contrário L não seria uma evidente lei da natureza).
    3. Todavia, a nossa evidência testemunhal a favor da ocorrência de M será sempre menor do que excelente. (Isto porque o testemunho a favor de milagres tem tudo menos um histórico excelente: por exemplos, conhecemos muitos casos onde o testemunho que algum milagre ocorreu foi fraudulento, em que as testemunhas se enganaram ou foram desonestas, etc).
    4. Portanto, em qualquer caso em que estamos perante o testemunho que algum M ocorreu, a nossa evidência testemunhal a favor da ocorrência de M será sempre mais fraca do que a nossa evidência inductiva contra a ocorrência de M. (De 1 a 3).
    5. Logo, será sempre irrazoável acreditar, meramente com base da evidência testemunhal, que um milagre ocorreu. (De 4).

    Acho que esta formulação é uma boa reconstrução do argumento de Hume. Mas caso se aceite a reconstrução proposta do argumento de Hume, não se pode concluir que “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade”. O que se pode concluir é que “os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima, meramente com base da evidência testemunhal, acreditam nalgo irrazoável”. Essa é uma diferença relevante. Além disso, vale a pena considerar e levar a sério possíveis objecções a esse argumento humeano. Por um lado, é possível criticar a premissa (2), atacando a definição humeana de milagre como violação de uma lei da natureza, mostrando-se que essa condição não é necessária nem suficiente para algo ser milagre. Por outro lado, é possível criticar a premissa (3), pois para essa premissa ser verdadeira a concepção reducionista de testemunho terá de ser a mais plausível. Mas será a mais plausível? Isso é muito disputável na epistemologia do testemunho contemporânea. Ora, se a concepção não-reducionista do testemunho for a mais plausível, como muitos epistemólogos actuais procuram defender, então já não será nada claro nem evidente que essa premissa (3) é verdadeira. Por isso, não podemos dar de barato, como os autores do “Dúvida Metódica” parecem pressupor implicitamente no seu blog, que o argumento do Hume é o melhor ou é à prova de bala. Isso está muito longe de ser consensual e ainda hoje este é um argumento que continua a ser muito debatido com novas objecções e contra-objecções. Em suma, o problema e a discussão continua em aberto. Mas, apesar do problema continuar em aberto, parece que ficou claro que as críticas ao milagre do Sol, tanto de Richard Dawkins como dos autores da Dúvida Metódica, falham completamente o alvo.


    Actualização – 12/10/16:

    • Para além da recomendação do livro do físico e padre Stanley Jaki, recomendo também agora um artigo em português de 1960, do católico e professor universitário Diogo Pacheco de Amorim, que argumenta que temos a melhor evidência e indícios a favor da interpretação metereológica e que, a haver milagre, esse está apenas na impressionante previsão. O artigo pode ser consultado aqui entre as páginas 145-204. Este artigo do professor Diogo Pacheco de Amorim reúne do mesmo modo os mais importantes e credíveis testemunhos directos deste fenómeno de Fátima. E todos esses testemunhos indiciam que o que ocorreu foi de natureza meteorológica e não astronómica.
    • Além disso, se lermos a “Documentação Crítica de Fátima em 13 volumes” que está presente no Santuário de Fátima veremos igualmente argumentação para esta mesma conclusão. Portanto, o Dawkins está completamente errado quando diz que a posição da Igreja é a de que o evento foi de natureza astronómica. Em suma, se a posição da Igreja é que o evento não é de natureza astronómica (e toda a bibliografia relevante da Igreja indica que o fenómeno foi de natureza meteorológica e não astronómica), e se o Dawkins diz que é de natureza astronómica, estão o Dawkins está a deturpar completamente a posição da Igreja e a cometer uma falácia do espantalho.
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    Problema Lógico da Trindade

    No cristianismo para além de se sustentar a crença de que Deus existe também se defende crenças mais particulares, como a crença na ressurreição, a crença na encarnação de Deus, a crença na trindade , entre outras. Todas estas doutrinas cristãs levantam problemas filosóficos interessantes e desafiantes, como tentar determinar se tais doutrinas são logicamente coerentes ou consistentes. Caso não sejam consistentes, então terão de ser abandonadas. Vou fazer um pequeno esboço sobre o problema lógico da trindade e sobre as principais respostas filosóficas que se têm construído. Ora, de acordo com a doutrina da Santíssima Trindade (veja-se o Credo de Niceia [380] e o de Atanásio [500]) temos o seguinte conjunto T de afirmações:

    (1) O Pai é Deus.

    (2) O Filho é Deus.

    (3) O Espírito Santo é Deus.

    (4) O Pai não é o Filho.

    (5) O Pai não é o Espírito Santo.

    (6) O Filho não é o Espírito Santo.

    (7) Há exactamente um só Deus.

    Este conjunto T suscita vários puzzles filosóficos e muita discussão filosófica (pelo menos desde os séculos IV e V). Um desses puzzles é o problema de saber se o conjunto T é consistente ou inconsistente. Há duas formas de mostrar que T é inconsistente. A primeira forma consiste em ler a cópula “é”, nas frases de (1) a (6), como identidade estrita (como “=”). Ora, a identidade é uma relação de equivalência em que se seguem as seguintes regras:

    Reflexividade: ∀x(x=x)

    Simetria: ∀x∀y(x=y→y=x)

    Transitividade: ∀x∀y∀z((x=y∧y=z)→x=z)

    A partir daí podemos obter uma inconsistência, pois podemos deduzir:

    (8) Deus é o Filho. [de 2, por simetria]

    (9) O Pai é o Filho. [de 1 e 8, por transitividade]

    (10) O Pai não é o Filho e o Pai é o Filho. [de 4 e 9]

    Ora, como a partir do conjunto T se originou uma contradição em (10), esse conjunto T é inconsistente. Uma outra forma de mostrar a inconsistência consiste em ler a cópula “é”, nas frases de (1) a (3), como predicação, i.e., usar o “é” para atribuir uma propriedade a um objecto. Por exemplo, a frase “O Snoopy é um cão” não é uma frase de identidade, pois ‘um cão’ não selecciona um tipo particular de objecto. Assim, nessa frase o que se diz é que o Snoopy tem a propriedade de ser um cão. Apliquemos então a leitura predicativa às frases (1), (2), e (3). Ora, a partir daí não se pode concluir que “o Pai é o Filho”, pois de “x tem P” e “y tem P” não se segue que ‘x é idêntico a y’. Portanto, as afirmações de (1) a (6) com esta leitura não são inconsistentes. Todavia, o conjunto T ainda assim é inconsistente, pois das afirmações de (1) a (6) segue-se que:

    (11) Deus é (pelo menos) três em número, nomeadamente o Pai, o Filho, e o Espírito Santo, cada um distinto do outro. [de 1-6]

    (12) Deus é um em número e Deus não é um em número. [de 7 e 11]

    Ou seja, das afirmações (1) até (6) podemos concluir que há pelo menos três Deuses. Todavia, isso é inconsistente com o monoteísmo cristão que sustenta que há apenas um Deus. Ora, como em (12) chegamos novamente a uma contradição, o conjunto T é inconsistente e, dessa forma, a doutrina da trindade não é coerente. Pelo menos não é coerente enquanto se ler as frases do conjunto T desta forma predicativa ou com a identidade estrita.

    Como se pode, então, defender racionalmente a coerência da doutrina da trindade? Para isso, primeiro, não se poderá usar aquelas leituras predicativas e de identidade estrita, que analisamos acima, no conjunto T (pois como vimos isso levará a inconsistências). Segundo, a coerência da doutrina da trindade será mostrada só se houver ou for possível uma estratégia ou modelo em que T seja consistente. Mas haverá um tal estratégia ou modelo que seja plausível? Ao longo da história surgiram algumas propostas interessantes. Uma resposta imediata e possível, conhecida como modalismo, seria defender que na trindade o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são diferentes aspectos ou manifestações de Deus, i.e., diferentes modo de apresentação pelos quais Deus se dá a conhecer. Dessa forma, dizer que Deus é Pai, Filho, e Espírito Santo seria bastante análogo a dizer que Clark Kent é o namorado de Lois Lane, o filho biológico do kryptoniano Jor-El, e o Super Homem. Todavia, pode-se objectar com bastante plausibilidade que essa estratégia não parece coerente com a doutrina da trindade que sustenta explicitamente que na trindade existem três pessoas mas um só Deus.

    Uma outra estratégia é adoptar um modelo social (que tem raízes em Gregório de Nissa e que é actualmente defendido por Richard Swinburne) que segue a analogia de uma família ou sociedade. Assim, há três pessoas (Pai, Filho, e Espírito Santo) mas considerados conjuntamente formam uma só família, um só Deus. Como não há contradição ao pensar numa família como três e, simultaneamente, como unidade, esta analogia parece resolver o problema. Além disso, de acordo com este modelo, a unidade entre as pessoas divinas é assegurada por vários factos, como o caso das pessoas divinas partilharem as mesmas características essenciais (omnipotência, omnisciência, perfeição moral), com vontades necessariamente harmoniosas, com relações de amor perfeito e necessária interdependência mútua. Assim, há um só Deus porque a comunidade das pessoas divinas é tão intimamente interconectada que, apesar de serem três pessoas distintas, formam uma só unidade (tal como uma família). Como crítica, pode-se procurar argumentar que nesta perspectiva o tipo de unidade descrito não é suficientemente forte para assegurar o monoteísmo, e fica igualmente por discutir se neste modelo é assegurada a consubstancialidade entre o Pai e o Filho que se defende na doutrina da trindade.

    modelo psicológico (com raízes em Agostinho e com uma defesa contemporânea por Thomas Morris e Trenton Merricks) constitui uma outra estratégia para lidar com o problema lógico da trindade. Neste modelo atende-se a características da mente humana para tornar coerente a doutrina da trindade. Por exemplo, sugere-se que podemos encontrar uma analogia para a trindade na condição psicológica conhecida como “transtorno da personalidade múltipla”; deste modo, tal como um único ser humano pode ter personalidades múltiplas, assim também um único Deus pode existir em três pessoas (embora no caso de Deus seja uma virtude cognitiva e não um defeito). Também é possível fazer uma analogia com a comissurotomia; assim, tal como um único ser humano pode, devido à comissurotomia, ter duas esferas distintas de consciência, de forma similar um único ser divino pode existir em três pessoas, sendo que cada qual é uma esfera distinta de consciência. Com isso o presente modelo permite bloquear a conclusão de que há mais que um Deus. Todavia, como crítica pode-se defender que não é plausível tratar centros distintos de consciência como pessoas distintas; em vez disso, parece mais plausível tratá-las como um mero aspecto de um único sujeito ou pessoa.

    Por fim vale a pena considerar o modelo de constituição (que começou a ser desenvolvido com Peter Geach e é defendido actualmente por Peter van Inwagen e Michael Rea) que invoca a noção de “identidade relativa”. A ideia principal desta noção é que as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. De um modo mais formal, a identidade relativa sustenta que:

    (IR) É possível que existam x, y, F, e G, tal que x é um F, y é um F, x é um G, y é um G, x é o mesmo F que y, mas x não é o mesmo G que y.

    Este princípio IR tem várias aplicação em filosofia, como no caso do problema da identidade pessoal (ver aqui). Mas IR também pode ser aplicado com plausibilidade ao problema lógico da trindade. Assim, se IR é verdadeiro, podemos dizer que o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são o mesmo Deus mas pessoas distintas; e isso é tudo o que é preciso para a doutrina da trindade ser consistente. Ora, de acordo com este modelo e aplicando IR, para haver uma interpretação adequada do conjunto T, então nas afirmações de (1) a (3) a cópula “é” deve ser lida como “é o mesmo ser que”, enquanto que nas afirmações de (4) a (6) o “não é” deve ser lido como “não é a mesma pessoa que”. Dessa forma não há qualquer inconsistência em T. 

    Para este modelo de constituição ficar mais claro também é possível oferecer algumas analogias de forma a se perceber melhor o que significa dizer que Pai, Filho, e Espírito Santo estão numa relação de “identidade relativa”. Para isso podemos considerar casos de constituição material (como estátuas e os pedaços de matéria que as constituem) em que duas coisas podem ser o mesmo objecto material mas entidades diferentes. Por exemplo, considere-se a famosa estátua de bronze “O Pensador” de Rodin. Parece óbvio que é um único objecto material; mas também parece plausível descrevê-la como uma estátua (que é um tipo de coisa) e como um pedaço de bronze (que é outro tipo de coisa). É igualmente plausível dizer que a estátua é distinta do pedaço de bronze. Por exemplo, pense-se numa situação em que a estátua é derretida; nesse caso o pedaço de bronze permanece, apesar de ter uma forma diferente, mas “o Pensador” de Rodin já não existirá. Ora, isto parece mostrar que o pedaço de bronze é algo distinto da estátua (uma vez que uma coisa pode existir separada de outra só se são distintas). Assim, estamos perante um caso em que duas coisas distintas são o mesmo objecto material (por partilharem toda a sua matéria em comum). Mas, então, se isto está correcto, podemos dizer por analogia que o Pai, o Filho, e o Espírito Santo podem ser o mesmo Deus mas três pessoas diferentes, tal como uma estátua e o seu pedaço constitutivo são o mesmo objecto material mas ainda assim entidades diferentes. Como crítica pode-se questionar o modelo de constituição ao perguntar-se, no Pensador de Rodin, se existem apenas duas coisas (estátua e pedaço de bronze) ou existem muitas mais. E como se pode determinar quantas coisas existem? Um outro grande desafio deste modelo é mostrar que o princípio IR é coerente e plausível. 

    Em suma, tal como procurei deixar claro ao longo deste texto, há muita discussão filosófica relevante e interessante nos dias de hoje sobre o problema lógico da trindade. Por isso o leitor também se pode questionar: Será a doutrina da trindade consistente? Se sim, de que forma? E qual será o modelo mais plausível para defender a coerência da trindade divina? A discussão filosófica continua.

  • Domingos Faria Avatar

    Argumento lógico do mal

    No argumento lógico do mal, como tentativa de se provar que Deus não existe, alega-se que as seguintes proposições são inconsistentes:

    (1) Há um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito;

    (2) Há mal.

    Mas para se mostrar que o conjunto {(1), (2)} é inconsistente, i.e. que os membros desse conjunto não podem ser ambos verdadeiros em qualquer circunstância ou mundo possível, será preciso mostrar que há uma contradição explícita nesse conjunto ou que daí se pode deduzir uma contradição explícita. P.e., considere-se o conjunto {P, ~Q, P→Q}. Ora, utilizando regras elementares da lógica, conseguimos chegar à contradição de P&~P ou de Q&~Q. Portanto, não basta afirmar que o conjunto {(1), (2)} é inconsistente; para se provar isso terá de se mostrar que esse conjunto tem uma contradição explícita, como P&~P, ou que desse conjunto se deduz uma contradição explícita. Ora, no conjunto {(1), (2)} não se tem uma contradição explícita, nem partindo apenas dos seus membros originais se deduz uma tal contradição. Deste modo, para se chegar a uma contradição será preciso acrescentar a esse conjunto outras proposições que sejam necessárias. Que proposições são essas? Uma proposta comum entre os ateus é acrescentar a seguinte proposição:

    (3) Um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito elimina todo o mal.

    Agora, o que se argumenta é que o conjunto {(1), (2), (3)} é inconsistente, pois leva a uma contradição explícita. Isto porque de (1) e (3) deduz-se que “não há mal” e juntamente com (2) deduz-se que “há mal e não há mal”, i.e., conclui-se uma contradição explícita. Mas será que isto mostra que o conjunto original {(1), (2)} é inconsistente? Só o mostrará se (3) for uma verdade necessária, pois (1) e (2) podem ainda assim ser ao mesmo tempo verdadeiras nas circunstâncias ou mundos possíveis em que (3) seja falsa. Assim, para se estabelecer a contradição no conjunto em questão, (3) terá de ser uma verdade necessária, i.e., a proposição (3) tem de ser tal que não seja possível uma circunstância, ou mundo possível, na qual ela seja falsa. 

    Mas será (3) uma verdade necessária? Parece que não, pois podemos facilmente conceber que há um estado de coisas bom B de tal forma relacionado com um estado de coisas mau M, e que supere esse mal, que é impossível que B exista e M não exista. Tal como, por exemplo, o ato de perdoar a alguém uma má acção pode ser um bem que supera o mal cometido que se perdoa, ou o ato de suportar corajosamente uma doença pode ser um bem que por vezes supera o mal dessa doença, entre outros. Ora, perante tais casos, se um ser bom e omnipotente eliminasse M, então eliminava B. Mas, é possível que um tal ser não pretenda eliminar B (pois esse B supera M, bem como pode suceder que seja melhor B existir do que não existir de todo); logo, um tal ser bom e omnipotente permite M. Com isto mostra-se que (3) não é uma verdade necessária e, assim, não fica provado que o conjunto original {(1), (2)} é inconsistente.

    Em suma, o argumento ou problema lógico do mal não parece funcionar uma vez que nem sequer se consegue mostrar com sucesso uma contradição explícita uma vez que a proposição (3) não parece uma verdade necessária. Isto porque há situações em que o mal é uma condição necessária para um determinado bem importante (como em casos de perdão, coragem, etc). Por isso, é falso dizer que Deus é incompatível com qualquer instância de mal ou sofrimento. Além disso, também se pode argumentar que Deus, se existe, pode ter uma razão moralmente justificada para permitir algum mal. Nesse caso, não é uma verdade necessária que Deus iria eliminar todo o mal. Assim, o argumento lógico do mal não é bem sucedido.

    É verdade que para contornar esta objecção ao argumento lógico do mal é possível que o ateu tente reformular o argumento e apresente uma nova proposição para se chegar à contradição, como a seguinte:

    (4) Um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito elimina todo o mal, a menos que tenha uma razão moralmente justificada para permitir o mal.

    Ora, esta proposição (4) leva à contradição explicita entre Deus e o mal só se a seguinte proposição é uma verdade necessária:

    (5) Não há uma razão moralmente justificada para um ser omnipotente, omnisciente, e moralmente perfeito permitir o mal.

    Contudo, dada a nossa situação epistémica e dado o que sabemos, nada impede a possibilidade de que:

    (6) Há uma razão moralmente justificada para Deus permitir o mal, uma razão que nós não conhecemos e ele permite que, por essa razão, ocorram instâncias de mal.

    Note-se que (6) implica a negação de (5). Assim, nada do que sabemos impede a possibilidade que (5) seja falsa. Ora, se isto é o caso, então a incompatibilidade entre (1) e (2), i.e., entre Deus e o mal, não é provada por (4) e (5). Além disso, uma vez que nada do que sabemos impede a possibilidade de (1) e (6) serem ambas verdadeiras, e a conjunção de (1) e (6) implica (2), segue-se que nada do que sabemos impede a possibilidade de (1) e (2) serem ambas verdadeiras. Deste modo, dado a nossa situação epistémica e aquilo que sabemos, (1) e (2) são compatíveis. Se isto é o caso, então mais uma vez o argumento lógico do mal não é bem sucedido.