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    A possibilidade lógica dos zombies contra o materialismo

    O materialismo (ou fisicalismo) é a perspetiva de que todos os factos sobre o mundo são físicos, que o mundo é inteiramente composto de factos físicos. Vários filósofos têm procurado refutar esta perspetiva (como Kripke, Chalmers, Plantinga, etc); por exemplo, David Chalmers formulou o seguinte argumento contra o materialismo:

    1. No nosso mundo, há experiências conscientes.
    2. Há um mundo logicamente possível que é fisicamente idêntico ao nosso, em que factos positivos sobre a consciência no nosso mundo não então incluídos.
    3. Assim, factos sobre a consciência são factos adicionais sobre o nosso mundo, além dos factos físicos.
    4. Se o materialismo é verdadeiro, então não há factos adicionais sobre o nosso mundo, além dos factos físicos.
    5. Logo, o materialismo não é verdadeiro.

    A premissa (1) está fora de disputa, na medida em que significa que pensamentos, sentimentos, perceções, etc, existem (sem assumir se eles são físicos ou não). A premissa (2) diz que um mundo exatamente como o nosso (que é fisicamente idêntico ao nosso), mas sem consciência, é logicamente possível. Ou seja, nós podemos conceber e descrever um tal mundo sem cair em contradição.

    Para a defesa desta premissa (2) Chalmers recorre, entre outros, ao argumento dos zombies. Chalmers define um zombie como ‘alguém ou alguma coisa fisicamente idêntica a mim (ou a qualquer outro ser consciente), mas em que lhe falta completamente experiências conscientes’. Ora, se os zombies são logicamente possíveis, então o mental não sobrevém logicamente sobre o físico e a premissa (2) é verdadeira, i.e., há um mundo possível fisicamente idêntico ao nosso mas sem consciência. Todavia, Chalmers concorda que, com toda a probabilidade, os zombies não são fisicamente possíveis (pois, é muito provável que haja lei naturais que conectem estados físicos e estados mentais pelo que nenhum ser poderia ter a minha exata constituição física e não ser consciente). Charmers concorda então que a consciência sobrevém naturalmente sobre físico. Deste modo, o ponto do Chalmers é apenas que tais conexões não são logicamente necessárias. Por isso, os zombies são logicamente possíveis (isso é uma descrição obviamente coerente e sem contradição) e, assim, a premissa (2) é verdadeira. O passo (3) segue-se das premissas (1) e (2). A partir daí e com a definição de materialismo, presente na premissa (4), pode-se concluir validamente em (5) que o materialismo é falso.

    Será este um argumento sólido? Toda a sua solidez parece residir na premissa (2) e na possibilidade lógica dos zombies. Serão então os zombies logicamente possíveis? Além disso, mesmo se eles forem logicamente possíveis (i.e. concebíveis), será que daí se segue que eles são metafisicamente possíveis?

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    A evolução natural é incompatível com o teísmo?

    Será que a evolução natural darwinista implica que não pode haver um Deus que guie o processo da evolução? Tanto os teístas criacionistas como os ateístas evolucionistas parecem responder afirmativamente a essa questão. Por um lado, os teístas criacionistas, como Michael Behe, alegam que o processo evolutivo é incapaz de produzir as complexas e irredutíveis características adaptativas que os organismos têm (como o caso dos cílios e dos flagelos) e que tais características têm de ser o resultado da direta intervenção de Deus na natureza. Por outro lado, os ateus evolucionistas, como Richard Dawkins, insistem que a evolução natural é um processo cego, inconsciente, sem qualquer propósito e por isso não há espaço para qualquer Deus. Apesar destas duas posições serem opostas, de forma geral tanto teístas criacionistas como ateístas evolucionistas concordam com a seguinte premissa, sendo ‘E’ a abreviatura de ‘evolução natural darwinista’ e ‘D’ a abreviatura de ‘Deus teísta existe’:

    (1) □(E→¬D)

    Ou seja, necessariamente, se num mundo há E, então não há D. Ou, por outras palavras, em todos os mundos possíveis a conjunção de E e D é falsa. No entanto, enquanto os teístas criacionistas fazem modus tollens a partir de (1) para concluírem que o evolucionismo é falso:

    (2) D

    (3) ∴ ¬E

    Os ateístas fazem modus ponens a partir de (1) para concluírem que Deus não existe:

    (2’) E

    (3’) ∴ ¬D

    Todavia, os teístas evolucionistas discordam das duas posições anteriores uma vez que negam a premissa (1); assim sustentam a seguinte premissa:

    (1*) ◊(E∧D)

    Ou seja, é (logicamente) possível a conjunção da evolução e de Deus. Mais concretamente os teístas evolucionistas sustentam que Deus fez os organismos e as suas complexas características adaptativas ao colocar o processo evolutivo em andamento. Neste caso, Deus produz os organismos indiretamente.

    Mesmo assim, quando falamos da teoria da evolução, para além da seleção natural, também falamos da mutação genética aleatória. Ora, a ideia de que as mutações são “aleatórias” pode parecer um ponto de conflito entre E e D; pois a mutação aleatória sugere “acaso cego”. Porém, de acordo com o teísmo, o que Deus causa não ocorre por acaso cego, uma vez que os teístas frequentemente pensam a evolução como sendo guiada por Deus. Mas como pode isto ser verdade se as mutações não são guiadas?

    Parece haver portanto aqui um conflito; mas tal conflito é ilusório uma vez que quando os evolucionistas dizem que as mutações ocorrem ao acaso ou aleatoriamente, eles não querem dizer que as mutações não são causadas. Em vez disso, como salienta o filósofo da ciência Elliott Sober (2011), “o seu ponto é que as mutações não ocorrem porque elas seriam úteis para os organismos nos quais elas ocorrem. É bem conhecido que há eventos físicos, como a radiação, que influenciam as probabilidades das mutações. Alguns desses eventos causam o aumento das taxas de mutação (…)”. Na mesma linha de raciocínio, Ernst Mayr (1988) alega que “quando é dito que a mutação ou variação é aleatória, a afirmação simplesmente significa que não há correlação entre a produção de novos genótipos e as necessidades adaptacionais de um organismo num dado ambiente”. Todavia, de acordo com este sentido, uma mutação pode ser aleatória e também pretendida e causada (indiretamente) por Deus, de tal forma que a teoria da evolução é compatível tanto com um Deus deísta como com um Deus teísta, tal como defende Sober:

    “Teístas evolucionistas podem claro ser deístas, sustentando que Deus coloca o universo em movimento e, depois, recusa-se sempre a intervir. Mas não há contradição em adotar um Deus mais ativo cujas interversões pós-criação passem sob o radar da biologia evolutiva. A intervenção divina não é parte da ciência, mas a teoria da evolução não implica que isso não ocorra”.

    O filósofo e ateu Michael Ruse também defende que o processo da evolução é aleatório, mas não no sentido de não-causado, sendo logicamente possível que, caso Deus exista, Deus pode causar por vezes as mutações num nível quântico ou sub-atómico. Ou seja, defende que a evolução natural e um Deus teísta que intervém é uma conjunção logicamente possível. Isto é igualmente defendido por cientistas, como Kenneth Miller ou Robert John Russell. Não são apenas os teístas que advogam a verdade de (1), mas também há vários ateístas insuspeitos que defendem que a premissa (1) é verdadeira ou plausível, como é o caso de Michael Ruse, Elliott Sober ou até mais recentemente Daniel Dennett.

    Sobre este tema vale a pena ler:

    • Elliott Sober (2008) Evidence and Evolution – the Logic Behind the Science.
    • Kenneth Miller (2007) Finding Darwin’s God: A Scientist’s Search for Common Ground Between God & Evolution.
    • Michael Ruse (2000) Can a Darwinian Be a Christian? The Relationship Between Science and Religion.
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    Um breve exame à ética sexual católica

    Na ética sexual católica defende-se que tanto os atos homossexuais, como a masturbação, ou ainda a contraceção artificial, etc, não são atos moralmente apropriados. Mais concretamente defende-se que “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados (…) não podem, em caso algum, ser aprovados” (Catecismo da Igreja Católica, 2357); além disso, advoga-se que “a masturbação é um ato intrínseca e gravemente desordenado” seja qual for o motivo (Catecismo da Igreja Católica, 2352); do mesmo modo, sustenta-se que a contraceção artificial (como preservativos ou a pílula) “é intrinsecamente má” (Catecismo da Igreja Católica, 2370). Mas qual é o argumento que se apresenta para se defender tais teses? Há várias linhas argumentativas, umas mais teológicas (como encíclicas como a Humanae Vitae) e outras mais filosóficas (como a argumentação apresentada pela filósofa Elizabeth Anscombe ou mais recentemente por Alexander Pruss). Mas no fundo penso que se podem resumir todas essas linhas argumentativas num único argumento que pode ser formulado do seguinte modo:

    1. Os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos são projetados pela evolução, ou por Deus, ou por ambos.
    2. Ora, um dos propósitos naturais ou biológicos dos órgãos sexuais é a abertura à reprodução.
    3. Um ato é moralmente apropriado só se tal ato realiza os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos.
    4. Portanto, um ato sexual é moralmente apropriado só se tal ato está aberto à reprodução. [De 1 a 3]
    5. Os atos sexuais X não estão abertos à reprodução.
    6. Logo, os atos sexuais X não são moralmente apropriados. [De 4 e 5]

    Onde se lê “atos sexuais X”, pode-se substituir X por qualquer ato homossexual, ou ato de masturbação, ou ato que utilize métodos contracetivos, ou outras práticas sexuais (como sexo oral ou anal). Assim, mostra-se que tais atos não são moralmente apropriados. O argumento é válido, mas será sólido?

    A fundamentação das duas primeiras premissas não parece muito problemática, pois o principal ponto dessas premissas consiste em reconhecer que os órgãos têm propósitos ou funções que são projetados pela evolução natural, ou talvez por Deus, (por exemplo, o propósito do coração é bombear o sangue, o propósito dos pulmões é oxigenar o sangue, etc) e que, além disso, um dos propósitos dos órgãos genitais ou sexuais é a reprodução.

    E quanto à premissa 3? Essa é a premissa central do argumento e quem defende que é verdadeira está a pressupor que a teoria ética da «lei natural» é melhor do que as teorias éticas rivais (como é o caso da deontologia, do utilitarismo do atos, do consequencialismo das regras, ou da teoria das virtudes). A lei natural é uma teoria ética, fundada por Tomás de Aquino, que vê os princípios morais básicos como objetivos, baseados na natureza, em vez de basearem na convenção, e que são passíveis de serem conhecidos por todos através da razão natural humana. Tomás de Aquino procura argumentar que através do nosso intelecto nós podemos conhecer os princípios básicos do certo e errado que são fixos e imutáveis (não precisando de ser baseados numa revelação especial de Deus). Além disso, para Tomás de Aquino, os nossos deveres morais são baseados na nossa natureza como seres racionais e biológicos; deste modo, devemos buscar bens do corpo (como comida, sobrevivência e reprodução), bens da mente (como conhecimento) e bens sociais (como a cooperação). Portanto, a moralidade humana é o que é por causa da nossa natureza humana. Ora, se isto é verdadeiro, então parece que será errado agir de forma contrária à natureza humana e aos seus propósitos; uma vez que um dos propósitos da relação sexual é a reprodução, será errado qualquer outro uso da sexualidade que impeça esse propósito natural e biológico dos órgãos sexuais.

    Será então esse argumento sólido? Penso que não; para sustentar isso apresento as seguintes razões: o primeiro problema no argumento da ética sexual católica é que não é nada claro que a teoria da lei natural (tal como defendida por Tomás de Aquino ou mais recentemente por John Finnis ou pela Igreja Católica) seja a teoria ética mais plausível quando comparada com as teorias éticas rivais. Uma das principais críticas que se pode apontar à teoria da lei natural é que parece confundir o “ser” com o “dever ser”; por exemplo, do facto do sexo produzir frequentemente bebés daí não se segue que o sexo deve ser praticado para esse propósito; pois, uma coisa são os factos e outra são os valores. Em segundo lugar, mesmo que se admita alguma plausibilidade a essa teoria, daí não se segue facilmente que a premissa 3 seja verdadeira. O próprio Tomás de Aquino admite que a aplicação da sua ética a situações específicas é frequentemente muito difícil (e vale a pena realçar que existem adeptos da lei natural que não aceitam a premissa 3 como verdadeira). Em terceiro lugar, existem muito contraexemplos para as premissas 3 e 4 que mostram que não há nada de moralmente errado em usar os órgãos para outra função que não são o seu propósito natural ou biológico. Por exemplo, mesmo que o propósito biológico dos pés seja para nos permitir caminhar, correr e saltar, não há nada de errado na ação de chutar uma bola ou em usar o pé para carregar no travão do carro. Além disso, mesmo que o propósito dos nossos olhos seja para ver, nada há de moralmente errado em usá-los para piscar um olho ou “fazer olhinhos” a uma rapariga. Ou mesmo que a finalidade natural dos nossos dedos seja para pegar em coisas, é absurdo alegar que seria imoral estalar os nossos dedos para fazer música. Também não há nada de errado em andar por aí a assobiar mesmo se esse não é o propósito natural e biológico dos lábios e da boca. Do mesmo modo, mesmo que o propósito biológico dos órgãos sexuais seja a reprodução, não há nada de moralmente errado ao usá-los para promover o prazer ou para fortalecer uma relação de amor. Assim, é falsa a ideia de que não podemos usar os nossos órgãos para outras finalidade ou propósitos que não são biológicas ou naturais. Portanto, toda a argumentação da ética sexual católica assenta em duas premissas falsas, nomeadamente a 3 e a 4. Ou seja, tal como tentei ilustrar, um ato pode ser moralmente apropriado e não realizar qualquer propósito biológico ou natural.

    Outros problemas com o argumento em análise evidenciam-se com as suas consequências absurdas. Para isso suponha-se que o argumento é sólido. Ora, se esse argumento é sólido, não são apenas os atos sublinhados em cima que são imorais mas também aqueles atos sexuais permitidos pela ética sexual católica. Por exemplo, a ética sexual católica sustenta que não é imoral recorrer aos métodos contracetivos naturais (como o método Billings) em situações em que é pertinente por exemplo espaçar o nascimento dos filhos; mas ao utilizar-se esses métodos está a fugir-se ao períodos fecundos e, por isso, pessoas que se relacionam sexualmente ao utilizarem tais métodos estão a ter outro propósito que não é o reprodutivo. Assim, seria imoral recorrer aos métodos naturais. Mas, pela mesma linha de raciocínio, seria imoral um casal que é biologicamente infértil ter relações sexuais, pois tais atos sexuais não estão abertos à reprodução. O mesmo sucede com as mulheres que têm atos sexuais depois da menopausa ou até mesmo com casais que utilizam por exemplo a masturbação ou o sexo oral como foreplay (preliminares) ou como afterplay: em todos esses atos sexuais não há abertura à reprodução e, por isso, são imorais caso o argumento fosse sólido. Já agora talvez se possa alegar que os próprios padres e bispos estariam a ter atos imorais, pois têm ações de sexualidade (a castidade é uma forma de agir sexualmente) que não é aberta à reprodução nem realizam os propósitos naturais e biológicos dos seus órgãos sexuais. Mas, perante todas estas consequências absurdas o argumento da ética sexual católica não é sólido e parece claramente mau.

    Uma nota final: a Igreja Católica continua a insistir neste tipo de ética sexual que parece ser cada vez mais irrelevante para uma percentagem significativa de católicos, para não falar da sociedade em geral (e já agora qual é a relação deste tipo de ética sexual com a ética geral proposta por Jesus por exemplo no Sermão da Montanha?!). E apesar de uma linguagem mais acolhedora do Papa Francisco, os problemas de fundo permanecem uma vez que continuam a basear-se numa ética normativa muito questionável (i.e. a teoria da lei natural) e a considerar que as premissas 3 e 4 são verdadeiras. Isto faz-me pensar que o sketch humorístico “Every sperm is sacred” (ver aqui) dos Monty Python ainda permanece bem atual.

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    Argumento da ocultação divina e as principais objeções

    Há quem procure argumentar que a escassez de evidência para o teísmo constitui evidência a favor do ateísmo. Um dos argumentos que visa esse objetivo é o argumento da ocultação divina. Uma versão desse argumento, apresentado por Schellenberg (1993), pode ser formulada do seguinte modo:

    1. Se Deus existe, então um Deus perfeito em amor existe.
    2. Se um Deus perfeito em amor existe, então não ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus.
    3. Mas ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus.
    4. Portanto, um Deus perfeito em amor não existe. [Por modus tollens, de 2 e 3]
    5. Logo, Deus não existe. [Por modus tollens, de 1 e 4]

    A ideia principal do argumento é a seguinte: de acordo com o teísmo a realização última dos seres humanos consiste em entrar numa relação pessoal com Deus. Assim, se Deus é amor, então é razoável pensar que ele procurará fazer o que for necessário para que as suas criaturas entrem numa tal relação pessoal com ele. Ora, para Deus tornar isso possível, Deus terá de fazer que a sua existência seja conhecida pelas suas criaturas de tal forma que elas não poderiam razoavelmente não saber disso. Isto porque parece óbvio que uma pessoa P1 não pode entrar numa relação pessoal de amor com uma pessoa P2 a não ser que P1 conheça que P2 existe. Daqui se segue que uma condição necessária para haver relação pessoal de amor entre Deus e as suas criaturas consiste em Deus dar a conhecer a sua existência de um modo claro a todas as suas criaturas, de modo que não ocorra uma razoável não-crença na sua existência. No entanto, para muitas pessoas a existência de Deus não é minimamente clara e óbvia, não estando para além da dúvida razoável. E isso não ocorre não só com agnósticos e ateus, mas também com os teístas que relatam períodos dolorosos de “noite escura da alma” em que se sentem completamente abandonados e inseguros sobre a existência de Deus (por exemplo, no livro dos salmos 22, 1-2, pode-se ler o seguinte: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste, rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro? Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes”). Mas perante tal manifesta ocultação divina, é razoável uma não-crença na existência de Deus. Todavia, se tal sucede, então parece que não há um Deus perfeito em amor que pretende uma relação pessoal com todas as suas criaturas, o que permite concluir que Deus não existe.

    O que dizer deste argumento? O argumento é claramente válido, mas será sólido? Para os teístas, a premissa (1) parece verdadeira por definição, pois se Deus é um ser perfeito, então será igualmente perfeito em amor. Como os passos (4) e (5) do argumento são uma consequência lógica das premissas anteriores, sobram as premissas (2) e (3) para exame. E são precisamente essas duas premissas que costumam ser criticadas pelos teístas. Por um lado, Michael Murray (2002), Swinburne (2004) e Peter Van Inwagen (2006), entre outros, têm criticado a premissa (2) ao apresentarem uma defesa em que Deus tem razões para a sua ocultação. A ideia geral é que se Deus se manifestasse de forma indubitável, então a crença em Deus poderia tornar-se coerciva para os seres humanos e não um ato de liberdade. Nesta estratégia argumentativa reconhece-se que Deus pretende que todas as pessoas estejam numa certa relação com ele e, assim, acreditar em Deus é uma condição necessária para estar nessa relação; todavia, acreditar em Deus não é uma condição suficiente para se estar nesse tipo de relação, pois pelo menos é igualmente necessário que se escolha livremente entrar nessa relação. Por outro lado, pode-se aceitar a premissa (2) e alegar que Deus quer que todos os seres humanos conheçam de facto a sua existência, mas negar-se a premissa (3) ao defender-se que a não-crença em Deus deve-se ao efeitos noéticos do pecado (não de pessoas concretas mas da humanidade como um todo) e tais efeitos podem comprometer a função apropriada do ‘sensus divinitatis’, como procura argumentar Plantinga (2000). Outra forma, talvez mais radical, para se criticar essa premissa (3) pode ser recorrer a um desvio mooreano. Por exemplo, um teísta pode aceitar a premissa (2); além disso, pode também estar justificado a aceitar que existe um Deus perfeito em amor; i.e., a negação do passo (4). Mas ao aceitar (2) conjuntamente com a negação de (4) implica a falsidade da premissa (3).

    Ainda existe uma possibilidade bastante diferente e prometedora para se criticar o argumento da ocultação divina e que parece estar atualmente bastante em moda entre vários filósofos: recorrer ao “teísmo cético” defendido, entre outros, por Bergmann (2012) ou por Wykstra (2012). Com o teísmo cético tenta-se desenvolver razões para suspender a crença sobre se Deus criaria ou não um mundo em que ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus; assim, mostrar-se-ia que não estamos justificados para acreditar na premissa (2). A ideia geral do teísmo cético é a de que, dada a nossa situação epistémica limitada e o hiato cognitivo entre o nosso ponto de vista e o ponto de vista de Deus, não há razão para acreditar que estamos na posição de saber que razão Deus poderia ter ou não para realizar uma determinada ação particular; i.e. Deus tem razões para agir em qualquer caso particular que estão para além do nosso alcance. Assim, se refletirmos cuidadosamente sobre as diferenças cognitivas entre Deus e nós próprios, adquirimos um anulador para as crenças que podemos ter sobre as razões para Deus agir e, dessa forma, devemos estar comprometidos com um ceticismo acerca dos nossos julgamentos sobre o que Deus faria numa situação particular. Ou seja, não podemos dizer com qualquer grau sério de confiança por que razão Deus faz o que faz ou por que ele faria ou não faria uma certa coisa em qualquer caso particular. Esta estratégia argumentativa parece não só conseguir bloquear com alguma plausibilidade o argumento da ocultação divina como também o argumento indiciário do mal. Mas talvez o preço a pagar pelo teísmo cético seja demasiado alto: por exemplo, se o teísmo cético bloqueia argumentos contra a existência de Deus ao destacar o facto de que sabemos muito pouco acerca de como Deus agiria, então será que também não se poderia argumentar, com um raciocínio similar, que o teísmo cético bloqueia os argumentos a favor da existência de Deus?

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    Sistema dedutivo aristotélico

    Aristóteles foi o primeiro a empreender um estudo sistemático de inferências dedutivas, sendo por isso considerado o fundador da lógica. No coração da sua teoria lógica reside a silogística assertórica, que está presente nos capítulos 1.1-2 e 1.4-7 do livro “Analíticos Anteriores”. A silogística assertórica lida com proposições não-modais tais como “Todo homem é mortal” ou “Alguns homens não são gregos”. Normalmente Aristóteles representa estas proposições por meio de uma certa construção artificial usando o verbo “pertence a”. Por exemplo, ele usa a frase “A pertence a todo B” em vez de “Todo B é A”, e “A não pertence a algum B” em vez de “Algum B não é A”. Aristóteles foca-se em quatro tipos de proposições assertóricas, que são habitualmente identificadas pelas letras “a” (universal afirmativa), “e” (universal negativa), “i” (particular afirmativa) e “o” (particular negativa). Além disso, costuma-se usar a letra “X” para indicar que uma proposição é não-modalizada. (Para indicar proposições modalizadas necessárias utiliza-se a letra “N”, para indicar a modalidade do que não é impossível utiliza-se a letra “M”, e para o que não é necessário nem impossível utiliza-se a letra “Q”). Assim, utilizando a notação de Marko Malink (2013) e de outros especialistas, podemos escrever as quatro proposições da lógica assertórica da seguinte forma:

    AaxB  =  A pertence a todo B  =  Todo B é A

    AexB  =  A não pertence a nenhum B = Nenhum B é A

    AixB  =  A pertence a algum B  = Algum B é A

    AoxB  =  A não pertence a algum B =  Algum B não é A

    Nesta notação, “A” representa o termo predicado, “B” o termo sujeito, e expressões como “ax”, “ex”, etc, representam a cópula. Nos primeiros sete capítulo do livro “Analíticos Anteriores” desenvolve-se um sistema dedutivo dessas proposições baseado nas regras de conversão e nos silogismos perfeitos da primeira figura. Mas ainda no princípio, em 1.1-22, Aristóteles evidencia as três figuras de silogismo, as quais se podem representar usando “x”, “y” e “z” como símbolos para serem substituídos por uma cópula:

    Primeira Figura:   AxB, ByC ∴ AzC

    Segunda Figura:   Bxa, ByC ∴ AzC

    Terceira Figura:   AxB, CyB ∴ AzC

    Para Aristóteles só existiam estas três figuras (vale a pena salientar que a quarta figura, bem com as regras tradicionais de validade silogísticas, ou a distribuição dos termos, etc, são invenções posteriores a Aristóteles, sobretudo medievais). Ora, ao substituirmos “x”, “y” e “z” por cópulas concretas, obtemos os chamados “modos” do silogismo. E alguns desses modos são válidos de acordo com Aristóteles, enquanto outros são inválidos. Na lógica assertórica os modos válidos da primeira figura são os seguintes:

    Barbara:  AaxB, BaxC ∴ AaxC

    Celarent:  AexB, BaxC ∴ AexC

    Darii:  AaxB, BixC ∴ AixC

    Ferio:  AexB, BixC ∴ AoxC

    Nos “Analíticos Anteriores”, em 1.4, Aristóteles não só considera que estas quatro formas são válidas mas também perfeitas. Ou seja, ele considera a sua validade como evidente, não sendo preciso qualquer prova para mostrar a sua validade. Todavia, os modos que ele identifica como válidos na segunda e na terceira figura não são perfeitos e, por isso, precisam de prova. De forma a provar a sua validade, Aristóteles faz uso dos silogismos perfeitos da primeira figura e das seguintes regras de conversão:

    Conversão-ex:  AexB ∴ BexA

    Conversão-ix:  AixB ∴ BixA

    Conversão-ax:  AaxB ∴ BixA

    Através desse método, nos capítulos 1.5-6 dos “Analíticos Anteriores”, Aristóteles prova a validade dos seguintes modos:

    Segunda figura: Cesare, Camestres, Festino, Baroco.

    Terceira figura: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Ferison, Bocardo.

    A prova desses modos válidos é feita por Aristóteles por deduções diretas ou por deduções indiretas (i.e. com recurso à redução ao absurdo). Este sistema dedutivo aristotélico baseia-se em sete regras de dedução, nomeadamente: as três regras de conversão e os quatro silogismos perfeitos da primeira figura. Neste sistema, as deduções diretas começam com as proposições que são as premissas de um dado argumento, e cada uma das proposições subsequentes é derivada a partir das proposições precedentes por meio de alguma das sete regras de dedução. A última proposição será a conclusão da dedução. Por exemplo, em 1.5 27a9-14 dos “Analíticos Anteriores” existe uma dedução direta de Aristóteles para provar a validade do modo Camestres da segunda figura. Ou seja, quer provar-se que da premissa maior “BaxA” e da premissa menor “BexC” se pode concluir validamente “AexC”. Assim,

    1. BaxA  (premissa maior)
    2. BexC  (premissa menor)
    3. CexB  (de 2, por conversão-ex)
    4. CexA  (de 3 e 1, por Celarent)
    5. AexC  (de 4, por conversão-ex)

    Portanto, como se pode ver, a validade de Camestres foi provada, pois a partir das premissas 1 e 2, e utilizando as regras de dedução do sistema aristotélico, conseguimos chegar à conclusão da linha 5. No entanto, entre os vários silogismos válidos da lógica assertórica, existem dois em que não se consegue provar a sua validade por redução direta: o Baroco e o Bocardo. Apesar disso, Aristóteles consegue provar a validade desses silogismos por deduções indiretas, ou seja, utilizando o método de redução ao absurdo. Deste modo, nas reduções indiretas depois de se escreverem as premissas coloca-se logo de seguida a negação da conclusão, ou seja, a contraditória da conclusão. Por exemplo, “AaxB” é contraditória de “AoxB” e vice-versa; do mesmo modo, “AexB” é a contraditória de “AixB” e vice-versa. A esse passo de se colocar a contraditória da conclusão chama-se “suposição”. A partir daí procede-se a várias derivações, utilizando algumas das sete regras de dedução, até se encontrar duas proposições que são contraditórias ou incompatíveis. Deste modo, se derivamos a partir da suposição inicial proposições contraditórias ou incompatíveis, então essa suposição é falsa e por isso devemos concluir a negação da suposição. Vejamos, então, por exemplo a prova para Baroco (da segunda figura) em que se tenta mostrar que as premissas “BaxA” e “BoxC” implicam a conclusão “AoxC”:

    1. BaxA  (premissa maior)
    2. BoxC  (premissa menor)
    3. AaxC  (suposição; negação da conclusão de Baroco)
    4. BaxC  (de 1 e 3, por Barbara)
    5. ⊥  (2 e 4, contraditórias)
    6. AoxC  (de 3 e 5, por reductio)

    Nesta prova, na linha 3, começou-se pela suposição para a redução ao absurdo. Por conseguinte, a linha 4 é justificada por Barbara (que é uma das regras de dedução deste sistema). Depois encontramos proposições contraditórias nas linhas 2 e 4; por isso, a suposição inicial é falsa e, assim, concluímos no final a negação dessa suposição. QED! Mostramos dessa forma que a conclusão “AoxC” se segue validamente das premissas; portanto Baroco é válido. Com este sistema de deduções diretas e indiretas consegue-se provar todos os restantes silogismos válidos da lógica assertórica. É fantástico ver como é que Aristóteles inventou todo este sistema dedutivo para a lógica assertórica silogística (sobretudo se pensarmos que este sistema tem mais de 2300 anos e ainda hoje mantém a sua relevância). Mas, além disso, no campo da lógica Aristóteles também criou o seu sistema de lógica modal silogística deixando em aberto alguns problemas que ainda hoje continuamos a tentar resolver. Uma das mais recentes respostas a esses problemas encontra-se no excelente livro “Aristotle’s Modal Syllogistic”, de Marko Malink, que foi publicado no ano passado. A lógica aristotélica continua bem viva!

    Um desafio para o leitor: tente resolver as restantes deduções (diretas ou indiretas) que provam os silogismos válidos da lógica aristotélica e deixe a sua resolução nos comentários a este texto.