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  • Domingos Faria Avatar

    Argumento da ocultação divina e as principais objeções

    Há quem procure argumentar que a escassez de evidência para o teísmo constitui evidência a favor do ateísmo. Um dos argumentos que visa esse objetivo é o argumento da ocultação divina. Uma versão desse argumento, apresentado por Schellenberg (1993), pode ser formulada do seguinte modo:

    1. Se Deus existe, então um Deus perfeito em amor existe.
    2. Se um Deus perfeito em amor existe, então não ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus.
    3. Mas ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus.
    4. Portanto, um Deus perfeito em amor não existe. [Por modus tollens, de 2 e 3]
    5. Logo, Deus não existe. [Por modus tollens, de 1 e 4]

    A ideia principal do argumento é a seguinte: de acordo com o teísmo a realização última dos seres humanos consiste em entrar numa relação pessoal com Deus. Assim, se Deus é amor, então é razoável pensar que ele procurará fazer o que for necessário para que as suas criaturas entrem numa tal relação pessoal com ele. Ora, para Deus tornar isso possível, Deus terá de fazer que a sua existência seja conhecida pelas suas criaturas de tal forma que elas não poderiam razoavelmente não saber disso. Isto porque parece óbvio que uma pessoa P1 não pode entrar numa relação pessoal de amor com uma pessoa P2 a não ser que P1 conheça que P2 existe. Daqui se segue que uma condição necessária para haver relação pessoal de amor entre Deus e as suas criaturas consiste em Deus dar a conhecer a sua existência de um modo claro a todas as suas criaturas, de modo que não ocorra uma razoável não-crença na sua existência. No entanto, para muitas pessoas a existência de Deus não é minimamente clara e óbvia, não estando para além da dúvida razoável. E isso não ocorre não só com agnósticos e ateus, mas também com os teístas que relatam períodos dolorosos de “noite escura da alma” em que se sentem completamente abandonados e inseguros sobre a existência de Deus (por exemplo, no livro dos salmos 22, 1-2, pode-se ler o seguinte: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste, rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro? Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes”). Mas perante tal manifesta ocultação divina, é razoável uma não-crença na existência de Deus. Todavia, se tal sucede, então parece que não há um Deus perfeito em amor que pretende uma relação pessoal com todas as suas criaturas, o que permite concluir que Deus não existe.

    O que dizer deste argumento? O argumento é claramente válido, mas será sólido? Para os teístas, a premissa (1) parece verdadeira por definição, pois se Deus é um ser perfeito, então será igualmente perfeito em amor. Como os passos (4) e (5) do argumento são uma consequência lógica das premissas anteriores, sobram as premissas (2) e (3) para exame. E são precisamente essas duas premissas que costumam ser criticadas pelos teístas. Por um lado, Michael Murray (2002), Swinburne (2004) e Peter Van Inwagen (2006), entre outros, têm criticado a premissa (2) ao apresentarem uma defesa em que Deus tem razões para a sua ocultação. A ideia geral é que se Deus se manifestasse de forma indubitável, então a crença em Deus poderia tornar-se coerciva para os seres humanos e não um ato de liberdade. Nesta estratégia argumentativa reconhece-se que Deus pretende que todas as pessoas estejam numa certa relação com ele e, assim, acreditar em Deus é uma condição necessária para estar nessa relação; todavia, acreditar em Deus não é uma condição suficiente para se estar nesse tipo de relação, pois pelo menos é igualmente necessário que se escolha livremente entrar nessa relação. Por outro lado, pode-se aceitar a premissa (2) e alegar que Deus quer que todos os seres humanos conheçam de facto a sua existência, mas negar-se a premissa (3) ao defender-se que a não-crença em Deus deve-se ao efeitos noéticos do pecado (não de pessoas concretas mas da humanidade como um todo) e tais efeitos podem comprometer a função apropriada do ‘sensus divinitatis’, como procura argumentar Plantinga (2000). Outra forma, talvez mais radical, para se criticar essa premissa (3) pode ser recorrer a um desvio mooreano. Por exemplo, um teísta pode aceitar a premissa (2); além disso, pode também estar justificado a aceitar que existe um Deus perfeito em amor; i.e., a negação do passo (4). Mas ao aceitar (2) conjuntamente com a negação de (4) implica a falsidade da premissa (3).

    Ainda existe uma possibilidade bastante diferente e prometedora para se criticar o argumento da ocultação divina e que parece estar atualmente bastante em moda entre vários filósofos: recorrer ao “teísmo cético” defendido, entre outros, por Bergmann (2012) ou por Wykstra (2012). Com o teísmo cético tenta-se desenvolver razões para suspender a crença sobre se Deus criaria ou não um mundo em que ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus; assim, mostrar-se-ia que não estamos justificados para acreditar na premissa (2). A ideia geral do teísmo cético é a de que, dada a nossa situação epistémica limitada e o hiato cognitivo entre o nosso ponto de vista e o ponto de vista de Deus, não há razão para acreditar que estamos na posição de saber que razão Deus poderia ter ou não para realizar uma determinada ação particular; i.e. Deus tem razões para agir em qualquer caso particular que estão para além do nosso alcance. Assim, se refletirmos cuidadosamente sobre as diferenças cognitivas entre Deus e nós próprios, adquirimos um anulador para as crenças que podemos ter sobre as razões para Deus agir e, dessa forma, devemos estar comprometidos com um ceticismo acerca dos nossos julgamentos sobre o que Deus faria numa situação particular. Ou seja, não podemos dizer com qualquer grau sério de confiança por que razão Deus faz o que faz ou por que ele faria ou não faria uma certa coisa em qualquer caso particular. Esta estratégia argumentativa parece não só conseguir bloquear com alguma plausibilidade o argumento da ocultação divina como também o argumento indiciário do mal. Mas talvez o preço a pagar pelo teísmo cético seja demasiado alto: por exemplo, se o teísmo cético bloqueia argumentos contra a existência de Deus ao destacar o facto de que sabemos muito pouco acerca de como Deus agiria, então será que também não se poderia argumentar, com um raciocínio similar, que o teísmo cético bloqueia os argumentos a favor da existência de Deus?

  • Domingos Faria Avatar

    Sistema dedutivo aristotélico

    Aristóteles foi o primeiro a empreender um estudo sistemático de inferências dedutivas, sendo por isso considerado o fundador da lógica. No coração da sua teoria lógica reside a silogística assertórica, que está presente nos capítulos 1.1-2 e 1.4-7 do livro “Analíticos Anteriores”. A silogística assertórica lida com proposições não-modais tais como “Todo homem é mortal” ou “Alguns homens não são gregos”. Normalmente Aristóteles representa estas proposições por meio de uma certa construção artificial usando o verbo “pertence a”. Por exemplo, ele usa a frase “A pertence a todo B” em vez de “Todo B é A”, e “A não pertence a algum B” em vez de “Algum B não é A”. Aristóteles foca-se em quatro tipos de proposições assertóricas, que são habitualmente identificadas pelas letras “a” (universal afirmativa), “e” (universal negativa), “i” (particular afirmativa) e “o” (particular negativa). Além disso, costuma-se usar a letra “X” para indicar que uma proposição é não-modalizada. (Para indicar proposições modalizadas necessárias utiliza-se a letra “N”, para indicar a modalidade do que não é impossível utiliza-se a letra “M”, e para o que não é necessário nem impossível utiliza-se a letra “Q”). Assim, utilizando a notação de Marko Malink (2013) e de outros especialistas, podemos escrever as quatro proposições da lógica assertórica da seguinte forma:

    AaxB  =  A pertence a todo B  =  Todo B é A

    AexB  =  A não pertence a nenhum B = Nenhum B é A

    AixB  =  A pertence a algum B  = Algum B é A

    AoxB  =  A não pertence a algum B =  Algum B não é A

    Nesta notação, “A” representa o termo predicado, “B” o termo sujeito, e expressões como “ax”, “ex”, etc, representam a cópula. Nos primeiros sete capítulo do livro “Analíticos Anteriores” desenvolve-se um sistema dedutivo dessas proposições baseado nas regras de conversão e nos silogismos perfeitos da primeira figura. Mas ainda no princípio, em 1.1-22, Aristóteles evidencia as três figuras de silogismo, as quais se podem representar usando “x”, “y” e “z” como símbolos para serem substituídos por uma cópula:

    Primeira Figura:   AxB, ByC ∴ AzC

    Segunda Figura:   Bxa, ByC ∴ AzC

    Terceira Figura:   AxB, CyB ∴ AzC

    Para Aristóteles só existiam estas três figuras (vale a pena salientar que a quarta figura, bem com as regras tradicionais de validade silogísticas, ou a distribuição dos termos, etc, são invenções posteriores a Aristóteles, sobretudo medievais). Ora, ao substituirmos “x”, “y” e “z” por cópulas concretas, obtemos os chamados “modos” do silogismo. E alguns desses modos são válidos de acordo com Aristóteles, enquanto outros são inválidos. Na lógica assertórica os modos válidos da primeira figura são os seguintes:

    Barbara:  AaxB, BaxC ∴ AaxC

    Celarent:  AexB, BaxC ∴ AexC

    Darii:  AaxB, BixC ∴ AixC

    Ferio:  AexB, BixC ∴ AoxC

    Nos “Analíticos Anteriores”, em 1.4, Aristóteles não só considera que estas quatro formas são válidas mas também perfeitas. Ou seja, ele considera a sua validade como evidente, não sendo preciso qualquer prova para mostrar a sua validade. Todavia, os modos que ele identifica como válidos na segunda e na terceira figura não são perfeitos e, por isso, precisam de prova. De forma a provar a sua validade, Aristóteles faz uso dos silogismos perfeitos da primeira figura e das seguintes regras de conversão:

    Conversão-ex:  AexB ∴ BexA

    Conversão-ix:  AixB ∴ BixA

    Conversão-ax:  AaxB ∴ BixA

    Através desse método, nos capítulos 1.5-6 dos “Analíticos Anteriores”, Aristóteles prova a validade dos seguintes modos:

    Segunda figura: Cesare, Camestres, Festino, Baroco.

    Terceira figura: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Ferison, Bocardo.

    A prova desses modos válidos é feita por Aristóteles por deduções diretas ou por deduções indiretas (i.e. com recurso à redução ao absurdo). Este sistema dedutivo aristotélico baseia-se em sete regras de dedução, nomeadamente: as três regras de conversão e os quatro silogismos perfeitos da primeira figura. Neste sistema, as deduções diretas começam com as proposições que são as premissas de um dado argumento, e cada uma das proposições subsequentes é derivada a partir das proposições precedentes por meio de alguma das sete regras de dedução. A última proposição será a conclusão da dedução. Por exemplo, em 1.5 27a9-14 dos “Analíticos Anteriores” existe uma dedução direta de Aristóteles para provar a validade do modo Camestres da segunda figura. Ou seja, quer provar-se que da premissa maior “BaxA” e da premissa menor “BexC” se pode concluir validamente “AexC”. Assim,

    1. BaxA  (premissa maior)
    2. BexC  (premissa menor)
    3. CexB  (de 2, por conversão-ex)
    4. CexA  (de 3 e 1, por Celarent)
    5. AexC  (de 4, por conversão-ex)

    Portanto, como se pode ver, a validade de Camestres foi provada, pois a partir das premissas 1 e 2, e utilizando as regras de dedução do sistema aristotélico, conseguimos chegar à conclusão da linha 5. No entanto, entre os vários silogismos válidos da lógica assertórica, existem dois em que não se consegue provar a sua validade por redução direta: o Baroco e o Bocardo. Apesar disso, Aristóteles consegue provar a validade desses silogismos por deduções indiretas, ou seja, utilizando o método de redução ao absurdo. Deste modo, nas reduções indiretas depois de se escreverem as premissas coloca-se logo de seguida a negação da conclusão, ou seja, a contraditória da conclusão. Por exemplo, “AaxB” é contraditória de “AoxB” e vice-versa; do mesmo modo, “AexB” é a contraditória de “AixB” e vice-versa. A esse passo de se colocar a contraditória da conclusão chama-se “suposição”. A partir daí procede-se a várias derivações, utilizando algumas das sete regras de dedução, até se encontrar duas proposições que são contraditórias ou incompatíveis. Deste modo, se derivamos a partir da suposição inicial proposições contraditórias ou incompatíveis, então essa suposição é falsa e por isso devemos concluir a negação da suposição. Vejamos, então, por exemplo a prova para Baroco (da segunda figura) em que se tenta mostrar que as premissas “BaxA” e “BoxC” implicam a conclusão “AoxC”:

    1. BaxA  (premissa maior)
    2. BoxC  (premissa menor)
    3. AaxC  (suposição; negação da conclusão de Baroco)
    4. BaxC  (de 1 e 3, por Barbara)
    5. ⊥  (2 e 4, contraditórias)
    6. AoxC  (de 3 e 5, por reductio)

    Nesta prova, na linha 3, começou-se pela suposição para a redução ao absurdo. Por conseguinte, a linha 4 é justificada por Barbara (que é uma das regras de dedução deste sistema). Depois encontramos proposições contraditórias nas linhas 2 e 4; por isso, a suposição inicial é falsa e, assim, concluímos no final a negação dessa suposição. QED! Mostramos dessa forma que a conclusão “AoxC” se segue validamente das premissas; portanto Baroco é válido. Com este sistema de deduções diretas e indiretas consegue-se provar todos os restantes silogismos válidos da lógica assertórica. É fantástico ver como é que Aristóteles inventou todo este sistema dedutivo para a lógica assertórica silogística (sobretudo se pensarmos que este sistema tem mais de 2300 anos e ainda hoje mantém a sua relevância). Mas, além disso, no campo da lógica Aristóteles também criou o seu sistema de lógica modal silogística deixando em aberto alguns problemas que ainda hoje continuamos a tentar resolver. Uma das mais recentes respostas a esses problemas encontra-se no excelente livro “Aristotle’s Modal Syllogistic”, de Marko Malink, que foi publicado no ano passado. A lógica aristotélica continua bem viva!

    Um desafio para o leitor: tente resolver as restantes deduções (diretas ou indiretas) que provam os silogismos válidos da lógica aristotélica e deixe a sua resolução nos comentários a este texto.

  • Domingos Faria Avatar

    O problema dos dois Barbaras

    Na obra “Analíticos Anteriores” Aristóteles não só desenvolveu a lógica silogística assertórica, como também concebeu a lógica silogística modal. Em 1.9-11 da sua obra, Aristóteles analisa silogismos com uma das premissas assertórica e a outra necessária. Neste esquema de inferência, alguns desses pares de premissas implicam uma proposição necessária como conclusão. Por exemplo, ele considera que o seguinte esquema, conhecido como BarbaraNXN, é válido:

    AanB

    BaxC

    ∴ AanC

    Ou seja, BarbaraNXN permite-nos inferir uma proposição necessária a partir de uma premissa maior necessária e de uma premissa menor assertórica. Todavia, Aristóteles nega que a proposição necessária possa ser inferida quando a premissa maior é assertórica; ou seja, considera que BarbaraXNN é inválido:

    AaxB

    BanC

    ∴ AanC

    Aristóteles, em 30a23-32 dos “Analíticos Anteriores”, rejeita a validade deste último silogismo ao apresentar um contraexemplo, em que A representa o termo “estar em movimento”, B o termo “animal” e C o termo “homem”. Assim:

    1. Estar em movimento pertence a todo o animal.
    2. Animal necessariamente pertence a todo o homem.
    3. Logo, estar em movimento necessariamente pertence a todo o homem.

    Para Aristóteles este silogismo é inválido, pois é possível conceber uma circunstância em que ambas as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. Ou seja, mesmo que seja verdade que todo o animal está em movimento e que necessariamente todo o homem é animal, pode não ser verdade que necessariamente todo o homem está em movimento.

    No entanto, o tratamento que Aristóteles dá a estes dois silogismos tem sido muito disputada desde da antiguidade e sujeito a imensa controvérsia até aos dias de hoje. Por exemplo, os alunos de Aristóteles, como Teofrasto e Eudemo, começaram logo a negar a validade do BarbaraNXN. Para mostrarem isso, conceberam alguns contraexemplos para essa estrutura silogística e argumentaram que nenhuma proposição necessária pode seguir-se a partir de um par de premissas em que uma delas seja uma proposição assertórica; isto é, rejeitam os dois Barbaras. A ideia é que se o BarbaraXNN é inválido, então pelo mesmo raciocínio o BarabaraNXN também é inválido. Aliás, o que Teofrastro faz é usar os mesmos termos do contraexemplo de Aristóteles para BarbaraXNN e aplica-os ao BarbaraNXN. Deste modo, sendo A “animal”, B “homem” e C “estar em movimento”, obtemos o seguinte silogismo:

    (2) Animal necessariamente pertence a todo o homem.

    (1’) Homem pertence a tudo o que está em movimento.

    (3’) Logo, animal necessariamente pertence a tudo o que está em movimento.

    Ora, de acordo com Teofrasto, podemos imaginarmos uma situação em que as premissas (2) e (1’) são verdadeiras e a conclusão (3’) falsa – isto é, mesmo se supusermos que é verdade que necessariamente todo o homem é animal e que, além disso, é igualmente verdade que tudo o que está em movimento é homem, daí não se segue que necessariamente tudo o que está em movimento é animal (pois, em [1’], pode ser apenas contingente que aquilo que está em movimento é homem); por isso, esse silogismo também não seria válido. Esta crítica à validade de BarbaraNXN foi muito influente e foi aceite por neoplatonistas como Temístio, Siriano e Proclo. Mas, por outro lado, alguns Peripatéticos tentaram defender Aristóteles contra essas objeções.Todavia esta discussão, tal como quase todos problemas filosóficos, não ficou apenas na antiguidade, mas continuou contemporaneamente. Por exemplo, argumentou-se que para salvar Aristóteles, isto é, para se considerar válido BarbaraNXN e inválido BarbaraXNN, é preciso fazer uma leitura “de re” das proposições necessárias, como proposto por Albrecht Becker (1933) e outros. Aqui é preciso, então, fazer a distinção entre proposições necessárias interpretadas “de re” e “de dicto”. Por um lado, numa leitura “de re”, a proposição “AanB” é verdadeira se, e só se, para todo o indivíduo x, se x satisfaz B, então x satisfaz necessariamente A. Por outro lado, numa leitura “de dicto”, a proposição “AanB” é verdadeira se, e só se, necessariamente, para todo o indivíduo x, se x satisfaz B, então x satisfaz A. Desta forma:

    Leitura de re: “AanB” é verdadeira sse ∀x(Bx→□Ax)

    Leitura de dicto: “AanB” é verdadeira sse □∀x(Bx→Ax)

    Agora aplicando a leitura “de re” ao BarbaraNXN obtemos o seguinte resultado:

    ∀x(Bx→□Ax)

    ∀x(Cx→Bx)

    ∴ ∀x(Cx→□Ax)

    Como se pode constatar esse argumento é claramente válido. Do mesmo modo, esta leitura “de re” permite tornar inválido o BarbaraXNN:

    ∀x(Bx→Ax)

    ∀x(Cx→□Bx)

    ∴ ∀x(Cx→□Ax)

    Assim parece que se salvou Aristóteles, pois esta leitura “de re” permite ir ao encontro daquilo que Aristóteles defendeu, nomeadamente considerar BarbaraNXN válido e BarbaraXNN inválido. Porém, fazer uma leitura “de re” das proposições necessárias é problemático. Em primeiro lugar, parece que trivializa a lógica modal, tendo esta o mesmo resultado do que a assertórica (porém, parece que Aristóteles quando se debruça na lógica modal não quer meramente repetir o que defendeu relativamente à lógica silogística assertórica). Mas, ainda mais problemático é o facto de que com a leitura “de re” as regras de conversão para as proposições necessárias tornam-se inválidas. Por exemplo, a conversão de “AenB” para “BenA” é inválida se interpretada “de re”, pois

    ∀x(Bx→□¬Ax) ∴ ∀x(Ax→□¬Bx)

    é uma inferência inválida. Para essa regra de conversão ser válida é preciso uma leitura “de dicto”, ou seja,

    □∀x(Bx→¬Ax) ∴ □∀x(Ax→¬Bx)

    Em suma, parece que para se salvar Aristóteles, por um lado, é preciso fazer uma leitura “de re” das formas silogísticas, como o BarbaraNXN, mas por outro lado as regras de conversão para as proposições necessárias não são válidas com a leitura “de re”, mas apenas com a “de dicto”. Ora, isto obrigaria a tratar as proposições necessárias com duas leituras diferentes, o que seria incoerente. Ou seja, a validade de BarbaraNXN não é consistente com as regras de conversão das proposições necessárias. Como resolver isto? Portanto, o desafio e o problema filosófico é o seguinte: será possível tornar a lógica modal silogística coerente? É possível defender com coerência que o BarbaraNXN é válido e o BarbaraXNN é inválido, bem como a validade das regras de conversão? Estes e outros problemas levaram alguns filósofos a afirmar, como Lukasiewicz (1957), que “a silogística modal de Aristóteles é quase incompreensível por causa das suas muitas faltas e inconsistências”; ou como mais recentemente Robin Smith (1995) alega que “os intérpretes têm gasto muita energia no esforço para encontrar alguma interpretação da silogística modal que seja consistente e, no entanto, preserve todos (ou quase todos) os resultados de Aristóteles; geralmente, o resultado de tal tentativa tem sido dececionante – acredito que isto simplesmente confirma que o sistema de Aristóteles é incoerente e que nenhum tipo de ajuste pode salvá-lo”.

    Mas, será que a lógica silogística modal tem salvação? Haverá uma solução plausível para o problema dos dois Barbaras? A resposta promete ser muito positiva depois do lançamento dos livros “Aristotle’s Modal Proofs: Prior Analytics A8-22 in Predicate Logic” (2011) de Adriane Rini, e “Aristotle’s Modal Syllogistic” (2013) de Marko Malink em que se procura defender que a lógica silogística modal é totalmente coerente e consistente. No caso concreto de Malink, abandona a leitura “de re”/“de dicto” e adota uma nova e poderosa interpretação para a silogística modal baseada na teoria da predicação e das categorias apresentada por Aristóteles nos “Tópicos”.

  • Domingos Faria Avatar

    Filosofia da Ressurreição

    Na Páscoa os cristãos celebram a ressurreição de Jesus. E os cristãos acreditam que a ressurreição de Jesus serve como um modelo para a ressurreição das pessoas no futuro. Se a doutrina cristã da ressurreição dos mortos for verdadeira, então haverá num futuro distante muitas pessoas que serão ressuscitadas. Mas surge um problema filosófico: cada uma destas pessoas ressuscitadas será numericamente a mesma que aquela que vivia antes de morrer? Com esta questão não se está a perguntar se elas são qualitativamente a mesma pessoa, mas sim se elas são numericamente idênticas a alguém que viveu no passado. Por um lado, a identidade numérica é aquela relação que cada coisa tem consigo mesma e com nenhuma outra coisa, apresentando uma relação reflexiva, simétrica e transitiva. Do mesmo modo, respeita o princípio da indiscernibilidade dos idênticos: ∀x ∀y (x=y → ∀P (Px ↔︎ Py). Por exemplo: Véspero e Fósforo são numericamente idênticos, pois são um e o mesmo objeto (i.e. o planeta Vénus). Por outro, existe identidade qualitativa entre x e y quando x e y são fortemente semelhantes com respeito a determinados aspetos. Por exemplo: dois exemplares do “Naming and Necessity” são qualitativamente idênticos, mas não numericamente idênticos, pois são dois e não um e o mesmo objeto.

    Dualistas de substâncias, como Richard Swinburne [que no livro “The Resurrection of God Incarnate” (2003) aplica o teorema de Bayes a um argumento para mostrar que a probabilidade da ressurreição de Jesus ronda os 97%], respondem à questão inicial defendendo que a pessoa permanece a mesma, uma vez que aquilo que lhe dá a identidade é a alma. E a alma é numericamente a mesma antes e depois da ressurreição, mesmo que o corpo não seja igual ou mesmo que a alma exista sem corpo.

    Mas será que se rejeitarmos o dualismo de substâncias abandonamos a possibilidade da ressurreição? Um materialista pode sustentar a doutrina da ressurreição? De facto, parece que é mais difícil para um materialista explicar a identidade numérica da pessoa antes e depois da ressurreição. Para isso vamos imaginar, como sugere Peter van Inwagen, um manuscrito escrito pelo próprio Santo Agostinho. Além disso, vamos supor que este manuscrito foi queimado e destruído nalgum momento passado. Mas o que alguém pensaria de um monge que alega que está agora na posse do mesmo manuscrito de Agostinho que foi queimado e destruído no passado? Van Inwagen nega que o monge possa possuir um manuscrito numericamente igual ao que foi queimado e destruído, apesar do monge poder ter uma cópia qualitativamente igual do manuscrito. Mesmo que Deus reconstrua o manuscrito, o tal manuscrito será apenas um duplicado, sendo este qualitativamente igual ao original mas não numericamente igual.

    Agora podemos fazer uma analogia com as pessoas. Para o materialista as pessoas são objetos materiais, tal como o manuscrito. Deste modo, se o corpo de uma pessoa que morre entra em decomposição e é destruído, então Deus (apesar de omnipotente) não pode reconstruir o corpo da pessoa na ressurreição para ser numericamente igual à anterior (o máximo que pode fazer é uma cópia qualitativamente igual), tal como no caso do manuscrito. Portanto, se o materialismo for correto, então a ressurreição de pessoas numericamente iguais parece colocada em causa.

    No entanto, Peter van Inwagen no artigo “The Possibility of Resurrection” (1978) argumenta a favor da possibilidade metafísica da ressurreição que é compatível com o materialismo. Então, de que forma van Inwagen ultrapassa o problema que foi levantado ao materialismo? A solução passa por ser possível haver uma ressurreição dos corpos antes destes serem deteriorados ou destruídos. Assim, é lógica e metafisicamente possível que no momento da morte de cada pessoa, Deus remova o cadáver e substitui-lo por um simulacro (imitação), que é aquilo que entra em decomposição e é destruído. Despois na ressurreição dos mortos, Deus toma o cadáver que tem preservado e restaura-o à vida. Esta teoria funciona como a defesa do livre-arbítrio em Alvin Plantinga: não tem de ser verdadeira, mas apenas possível e consistente.

    Será esta teria de Peter van Inwagen plausível? Podemos objetar que nesta perspetiva Deus é um enganador, pois quando enterramos ou cremamos cadáveres pensamos que estes são os originais e não meros simulacros. Então, se estamos errados acerca disto, parece que Deus nos anda constantemente a enganar. Apesar disso, van Inwagen no Postscript em 1997 concede que pode haver outras maneiras de um ser omnipotente poder realizar a ressurreição dos mortos sem recurso ao simulacro.

    Uma boa forma de passar o dia de Páscoa é discutir estes assuntos filosóficos sobre a ressurreição. Por isso deixo em anexo o artigo do filósofo Peter van Inwagen para que os leitores possam examiná-lo criticamente, apresentando tanto objeções como outras alternativas. Convido a escreverem as vossas opiniões críticas sobre isto nos comentários. Uma boa Páscoa!

    [Anexo: “The Possibility of Resurrection” de Peter van Inwagen]

  • Domingos Faria Avatar

    Teste de Lógica

    Qual resposta nesta lista é a resposta correta para esta pergunta?

    1. Todas as respostas abaixo.
    2. Nenhuma das respostas abaixo.
    3. Todas as respostas acima.
    4. Uma das respostas acima.
    5. Nenhuma das respostas acima.
    6. Nenhuma das respostas acima.

    Há várias estratégias para resolver o problema. Uma delas é com recurso à lógica proposicional clássica. Vou usar as variáveis P, Q, R, S, T, U para representar as 6 proposições, da seguinte forma:

    1. (P↔(Q∧(R∧(S∧(T∧U)))))
    2. (Q↔(¬R∧(¬S∧(¬T∧¬U))))
    3. (R↔(P∧Q))
    4. (S↔((P∧(¬Q∧¬R))∨((¬P∧(Q∧¬R))∨(¬P∧(¬Q∧R)))))
    5. (T↔(¬P∧(¬Q∧(¬R∧¬S))))
    6. (U↔(¬P∧(¬Q∧(¬R∧(¬S∧¬T)))))

    Se tomarmos as proposições de 1 a 6 como premissas, a única conclusão válida que se pode retirar é aquela em que 5 é verdadeira e as restantes são falsas. Ou seja,

    (¬P∧(¬Q∧(¬R∧(¬S∧(T∧¬U)))))

    Um inspetor de circunstâncias mostra isso.