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    O Problema do Livre-Arbítrio e o Argumento da Consequência

    O problema do livre-arbítrio surge do conflito entre duas perspetivas que podemos ter de nós próprios e do nosso lugar no universo. Por um lado, temos a crença no livre-arbítrio – a ideia de que temos uma vontade livre, ou seja, podemos controlar pelo menos algumas das coisas que fazemos ou escolhemos fazer. Assim, algumas das nossas escolhas ou ações dependem, em última análise, de nós, da nossa vontade. Por outro lado, temos a crença no determinismo – a ideia de que tudo o que acontece é uma consequência necessária do passado e das leis da natureza, tal como aprendemos na ciência. Assim, tal como os simples acontecimentos, as ações e decisões são inteiramente determinados por fatores que os agentes não controlam (nomeadamente são causadas por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza).

    Contudo, a nossa crença no livre-arbítrio e a nossa crença no determinismo parecem entrar em conflito, pois se o determinismo é verdadeiro, parece que não depende dos agentes o que eles escolhem a partir de uma variedade de possibilidades alternativas (uma vez que apenas um único futuro seria possível, dado o passado e as leis da natureza). Além disso, se o determinismo é verdadeiro, a fonte ou origem das nossas escolhas ou ações não está nos próprios agentes, mas em algo fora do seu controlo (que determina as suas escolhas e ações), como os acontecimentos anteriores e as leis da natureza.

    Com base nas informações anteriores, o problema do livre-arbítrio pode ser formulado desta forma: será o livre-arbítrio compatível com o determinismo?Como resposta a este problema os compatibilistas sustentam que o livre-arbítrio e o determinismo são compatíveis. Assim, é possível que o determinismo seja verdadeiro e exista livre-arbítrio. Por sua vez, os incompatibilistas acreditam que o livre-arbítrio e determinismo não são compatíveis. Portanto, se o determinismo é verdadeiro, então não há livre-arbítrio. Mas quem tem razão: compatibilistas ou imcompatibilistas?

    Os incompatibilistas para defenderem a sua tese usam o famoso argumento da consequência. Peter van Inwagen defende este argumento no seu livro An Essay on Free Will (1983) apresentado-o desta forma:

    “Se o determinismo é verdadeiro, então as nossas ações são consequências das leis da natureza e de acontecimentos que ocorreram num passado remoto. Mas tanto as leis da natureza como aquilo que aconteceu antes de termos nascido não dependem de nós. Logo, as consequências destas coisas (incluindo os atos que realizamos agora) não dependem de nós.”

    A ideia é que se o determinismo é verdadeiro, ninguém pode agir de um modo diferente daquele que efetivamente agiu (dado que, segundo o determinismo, há apenas um único futuro possível e não depende de nós alterar o passado nem as leis da natureza); mas, se o livre-arbítrio requer a capacidade ou habilidade de agir de forma diferente, ou possibilidades alternativas, então ninguém tem livre-arbítrio. Assim, o determinismo e o livre-arbítrio são incompatíveis. Em suma, o argumento da consequência pode ser formulado deste modo:

    1. Se o determinismo é verdadeiro, então as nossas ações são a consequência das leis da natureza e de eventos que ocorreram num passado remoto.
    2. Não somos capazes de alterar as leis da natureza nem os eventos que ocorreram num passado remoto.
    3. Se as nossas ações são a consequência das leis da natureza e de eventos que ocorreram num passado remoto, e se não somos capazes de alterar as leis da natureza nem os eventos que ocorreram num passado remoto, então não temos possibilidades alternativas.
    4. Se não temos possibilidades alternativas, então não somos livres.
    5. Logo, se o determinismo é verdadeiro, então não somos livres.

    Será este um bom argumento? Este argumento é válido. Porém, os compatibilistas, como não aceitam a conclusão 5, tentam negar alguma das premissas. Mas qual? Uma possibilidade é negar a premissa 3, como fazem os compatibilistas clássicos (por exemplo, Thomas Hobbes, David Hume, e Stuart Mill). A ideia dessa estratégia é defender uma análise hipotética ou condicional do que significa possibilidades alternativas compatível com o determinismo. De acordo com essa interpretação ou análise condicional, temos livre-arbítrio, no sentido relevante para a responsabilidade moral, na medida em que poderíamos ter escolhido agir de modo diferente daquele que agimos, se tivéssemos crenças e desejos diferentes daqueles que efetivamente temos. Nessa interpretação, a premissa 3 é falsa, pois ainda que tudo esteja determinado, é verdade que por vezes poderíamos ter agido de modo diferente daquele que agimos se as nossas crenças e desejos fossem diferentes daquilo que efetivamente são.

    Outra possibilidade para os compatibilistas é negar a premissa 4, sendo esta uma estratégia utilizada pelo novos compatibilistas, tal como Harry Frankfurt, Daniel Dennett, e Susan Wolf. Aqui a ideia é rejeitar a necessidade de possibilidades alternativas para haver livre-arbítrio. Ou seja, mesmo não havendo possibilidades alternativas, podemos ter livre-arbítrio. Para defender esta ideia Harry Frankfurt concebeu uma experiência mental em que um determinado agente não tem possibilidades alternativas, mas ainda assim tal agente tem livre-arbítrio (no sentido relevante para a responsabilidade moral). Por exemplo:

    Maria tem um dispositivo que lhe permite controlar o cérebro de José à distância, ainda que agora não esteja a fazê-lo. Ela quer que José realize um certo ato: votar no partido democrata. Suponha-se que Maria tem câmaras ocultas para a observar todos os comportamentos do José. Caso perceba que José não pretende votar no partido democrata mas sim no partido republicano, ela ativará o dispositivo. Intervirá na situação e, controlando o cérebro de José, levá-lo-á a mudar de ideias e a votar no partido democrata. Contudo, Maria acaba por não intervir, pois José vota no partido democrata sem que ela ative o dispositivo.

    Neste caso temos uma situação em que existe uma circunstância tal que José toma, por si mesmo, a decisão de votar no partido democrata. Se José não decidisse, por si mesmo, votar no partido democrata, Maria acionaria um dispositivo ligado ao cérebro o qual forçaria José a tomar essa decisão. E a presença do dispositivo no cérebro de José em nada contribui para a sua decisão de votar no partido democrata. Com base nesse caso pode-se dizer que o José é moralmente responsável por votar no partido democrata e, portanto, pode dizer-se que o agente é dotado de livre-arbítrio num sentido relevante. Mas o José, dadas as circunstâncias, não tem genuinamente ao seu dispor quaisquer possibilidades alternativas, pois não poderia ter agido de outra forma (dado que Maria teria intervido de modo a fazê-lo votar no partido democrata, caso a intervenção se tivesse justificado). Em suma, para os defensores deste tipo de perspetiva compatibilista podemos ter livre-arbítrio (no sentido relevante para a responsabilidade moral), ainda que não possamos escolher agir de modo diferente daquele que agimos. Se isto for plausível, a premissa 4 é falsa.

    Para um exame crítico da versão mais rigorosa do argumento da consequência a favor do incompatibilismo e de objeções a esse argumento, pode ler o artigo que escrevi aqui. A estratégia de Harry Frankfurt também pode ser aplicada na epistemologia; explorei isso neste artigo.

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    Aposta de Pascal

    No livro Pensamentos, Blaise Pascal escreve o seguinte:

    “Examinemos este ponto, e digamos: «Deus existe ou não existe». Para que lado nos inclinaremos? A razão [epistémica] não o pode determinar. Mas é preciso apostar. Não é coisa que dependa da vontade. Já estais embarcados. Que escolha fareis? A vossa razão não será mais lesada por escolherdes uma coisa de preferência à outra, pois é necessariamente forçoso escolher. Eis um ponto assente. Mas a vossa felicidade eterna? Ponderemos o ganho e a perda, escolhendo Deus. Ponderemos estes dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada. Apostai, pois, que Deus existe, sem hesitardes.”

    Tal como se pode constatar, Pascal tenta dar aos ateus e agnóstico, que atribuem uma probabilidade baixa à existência de Deus, razões prudenciais para se acreditar em Deus. Para isso, argumenta que um agente que segue a sua estratégia maximiza a sua utilidade esperada. Com essa estratégia calcula-se a utilidade esperada de um ato ϕ ao (I) multiplicar a utilidade e a probabilidade de cada resultado associado com ϕ, ao (II) subtrair os custos respetivos, e (III) ao somar o total. Este cálculo está associado a decisões sob risco.

    De acordo com Pascal, a utilidade esperada que um agente tem para a sua crença em Deus é infinita, uma vez que a utilidade de acreditar em Deus, dado a suposição que Deus existe, é infinita, e a utilidade de acreditar em Deus, sob a suposição que Deus não existe, é alguma quantidade finita. Pelo contrário, a utilidade esperada de não se acreditar em Deus é meramente finita, uma vez que apenas os crentes irão maximizar a possibilidade de uma vida eterna, numa perfeita felicidade com Deus e com os outros, sem fim; além disso, ao ser crente há mais probabilidade de se estar consciente do amor de Deus, de ajudar os outros a alcançar a salvação, etc. Pelo contrário, o descrente não irá maximizar tais resultados.

    Com base nestas ideias pode-se formular o argumento, conhecido como a “Aposta de Pascal,” da seguinte forma:

    1. Ou Deus existe ou Deus não existe, e S acredita em Deus (aposta na sua existência) ou S não acredita em Deus; sendo que a utilidade resultante de cada uma destas possibilidades é a seguinte, onde f1, f2 e f3 são valores de utilidade finitos que não precisam de ser especificados:
    Deus existeDeus não existe
    S acredita em Deusf1
    S não acredita em Deusf2f3
    1. A racionalidade prudencial requer que a probabilidade que S atribui à existência de Deus seja > 0. [Mesmo que existam fortes evidências contra a existência de Deus, S está prudencialmente justificado a atribuir p.e. a probabilidade de 0.00001 à existência de Deus].
    2. A racionalidade prudencial requer que S realize o ato com a máxima utilidade esperada (caso houver).
    3. Sendo p a probabilidade que Deus existe, a utilidade esperada UE, dado 1 e 2 de S acreditar em Deus e de S não acreditar em Deus é a seguinte:
      • UE(S acredita em Deus) = (∞ × p) + (f1 × (1 – p)) = ∞
      • UE(S não acredita em Deus) = (f2 × p) + (f3 × (1 – p)) = f4
    4. ∴ Uma vez que ∞ > f4, o ato com a máxima utilidade esperada é S acreditar em Deus. [De 4]
    5. ∴ A racionalidade prudencial requer que S acredite em Deus. [De 3 e 5]

    Será este um bom argumento? Como crítica à premissa 1 pode-se questionar a tabela em consideração de duas formas: por um lado, seguindo a teoria do teísmo cético, vale a pena questionar sobre como se pode saber que a recompensa é ∞ quando Deus existe e S acredita em Deus. Talvez Deus tenha uma razão também para recompensar todos com ∞, mesmo quem não acredita em Deus. Pode-se questionar igualmente se Deus beneficia de igual forma com ∞ os crentes que têm fé apenaspor interesse mesquinho da recompensa e aqueles crentes que têm fé de forma desinteressada ou honesta. A tabela formulada por Pascal não permite dar conta destas subtilezas.

    Por outro lado, a tabela em consideração apenas considera o Deus teísta, mas por que razão não se considera igualmente muitas outras hipóteses, como algum Deus deísta (que p.e. não dava qualquer recompensa mas que poderia castigar infinitamente os teístas), ou um Deus malévolo (que só dava recompensa infinita aos maus ou aos descrentes)? Com esta objeção dos vários deuses sustenta-se que a tabela apresentada por Pascal é muito incompleta uma vez que não considera outras possíveis hipóteses de divindade e os seus respetivos valores de utilidade; todavia, caso se considere essas várias hipóteses, já não será nada óbvio que a máxima utilidade esperada é acreditar no Deus teísta.

    Quanto à premissa 2, alguns ateus argumentam, como o caso de Michael Martin (2010), que a existência de Deus teísta é de alguma forma conceptualmente impossível. Este tipo de argumentação visa fundamentar que um dos atributos divinos é em si incoerente ou que a combinação de atributos é inconsistente. Ora, se tais argumentos forem bem-sucedidos, então a probabilidade da existência de Deus é zero, isto é, p = 0. Mas, assim, os cálculos da utilidade esperada de se acreditar em Deus e não acreditar em Deus serão ambos finitos e sem diferença relevante; ou seja,

    • UE(S acredita em Deus) = (∞ × 0) + (f1 × (1 – 0)) = f1
    • UE(S não acredita em Deus) = (f2 × 0) + (f3 × (1 – 0)) = f3

    Como nada nesses cálculos implica que f1 > f3, então não se segue que S tem um requisito prudencial para acreditar em Deus.

    Por fim, pode-se ainda fazer uma objeções de caráter moral, seguindo William James (2010: 143):

    “sentimos que uma fé (…) adotada voluntariamente depois de um cálculo tão mecânico careceria de alma interior da realidade da fé; e se estivéssemos nós próprios no lugar da divindade, provavelmente teríamos um prazer especial em impedir a crentes deste calibre o acesso à recompensa infinita”

    Mas serão estas objeções plausíveis? Não haverá forma de contornar estas objeções? Para uma discussão dessas questões clique aqui.

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    Argumentos de Descartes a favor do dualismo de substâncias

    Em relação ao problema mente-corpo, Descartes está comprometido com duas teses:

    1. Dualismo de substâncias: qualquer substância com propriedades mentais não tem propriedades físicas e qualquer substância com propriedades físicas não tem propriedades mentais.
    2. Distinção real entre mente e corpo: a mente e o corpo são substâncias numericamente distintas.

    Para defender estas teses, Descartes apresenta vários argumentos:

    Argumento da dúvida

    O argumento da dúvida é apresentado por Descartes nas Meditações II e também na parte VI do Discurso do Método:

    “(…) examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existia; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que se deixasse somente de pensar, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que eu existisse: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ele não deixaria de ser tudo que é.”

    Neste argumento começa-se por sustentar que posso duvidar da existência do meu corpo. A este propósito Descartes afirma que pode imaginar não ter de todo corpo enquanto a sua vida mental persiste. Assim, ter uma mente deve ser distinto de ter um corpo porque podemos imaginar um sem a existência do outro. Contudo, não posso duvidar da existência dos meus pensamentos, ou seja, da minha mente. Isto porque enquanto posso duvidar que existe o mundo à minha volta, não posso duvidar da existência da minha mente, dado que a minha mente tem de existir para haver dúvida.

    Mas para se alcançar a conclusão dualista falta ainda a premissa de que duas coisas são iguais (uma e a mesma coisa) se, só se, elas partilham as mesmas propriedades. Esta premissa é a conhecida “Lei de Leibniz” (também conhecido como “Princípio da Indiscernibilidade dos Idênticos”). Por exemplo, se duas bolas de snooker partilham as propriedades de serem vermelhas, terem o mesmo diâmetro e peso, mas se não partilham as mesmas propriedades no espaço, então são diferentes. Outro exemplo: se Eça de Queiroz e ‘o autor dos Maias’ partilham as mesmas propriedades, então eles são o mesmo. De forma análoga, se a mente e corpo são a mesma coisa, então partilham as mesmas propriedades. Contudo, mente e corpo não partilham as mesmas propriedades, porque (i) pode-se duvidar da existência do corpo mas (ii) não se pode duvidar da existência da mente. Assim, pode-se concluir com base na Lei de Leibniz que a minha mente é fundamentalmente diferente do meu corpo. Em suma, o argumento de Descartes pode ser formalizado desta forma:

    1. Posso duvidar da existência do meu corpo.
    2. Não posso duvidar da existência dos meus pensamentos, ou seja, da minha mente.
    3. Duas coisas são iguais (uma e a mesma coisa) se, só se, elas partilham as mesmas propriedades.
    4. Logo, a minha mente é fundamentalmente diferente do meu corpo.

    Será este um bom argumento? Como crítica pode-se defender que o argumento de Descartes comete a falácia do homem mascarado. Para se perceber isso imagine-se que desconheço que o Clark Kent é o Super Homem. Nesse caso, posso imaginar um cenário em que o Super Homem salva o jornalista Clark Kent de um terrível vilão. Mas imaginar isso não me informa que é de facto possível terem propriedades diferentes. Em vez disso releva limitações do meu conhecimento (de que não estou ciente), dado que na realidade são a mesma pessoa. Ou seja, quando utilizamos verbos psicológicos como acreditar, saber, duvidar, pensar, etc, a Lei de Leibniz pode-nos enganar (dadas as nossas limitações cognitivas). Assim, ainda que possa duvidar que tenho corpo e não possa duvidar que tenho mente, isso não é suficiente para mostrar que são coisas distintas. Em suma, não se pode aplicar a Lei de Leibniz nos contextos intencionais (ou seja, quando se está a usar verbos psicológicos).

    Argumento da indivisibilidade

    Nas Meditações, VI, Descartes apresenta um argumento com a mesma estrutura, mas que não parece cometer a falácia anterior:

    “Há uma grande diferença entre a mente e o corpo, pelo facto do corpo, pela sua natureza, ser sempre divisível e a mente ser inteiramente indivisível. Pois, quando considero a minha mente, ou seja, eu mesmo na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, nele não posso distinguir nenhuma parte, mas concebo-me como uma coisa única e inteira. E, embora todo a mente pareça estar unida a todo o corpo, quando um pé, um braço, ou qualquer outra parte é cortada, estou consciente que nada foi foi tirado da minha mente.”

    Aqui o argumento de Descartes é o seguinte:

    1. O corpo é sempre divisível.
    2. A mente é indivisível.
    3. Duas coisas são iguais (uma e a mesma coisa) se, só se, elas partilham as mesmas propriedades.
    4. Logo, a mente é diferente do corpo.

    Será este um bom argumento? Apesar de não cometer a falácia do homem mascarado, esta versão tem problemas com a premissa 2. Nomeadamente pode-se colocar as seguintes questões: será que a mente não se poderá dividir? A mente não poderá ser dividida em faculdade como a memória, imaginação, cálculo, emoção, vontade, e em distintos pensamentos? O que dizer de pessoas com o problema das múltiplas personalidades? Nesse caso a mente não está dividida? Outros problemas foram apontados pela princesa Elisabeth: como é que duas coisas tão diferentes como a mente e o corpo podem interagir?

    Argumento modal

    Descartes nas Meditações VI apresenta um argumento adicional a favor do dualismo de substâncias, conhecido como argumento modal:

    “(…) porque sei que todas as coisas que concebo clara e distintamente podem ser produzidas por Deus tais como as concebo, basta que eu possa conceber clara e distintamente uma coisa sem uma outra para estar certo de que uma é distinta ou diferente da outra, porque podem ser postas separadamente, pelo menos pela omnipotência de Deus; e não importa por qual poder se faça essa separação para obrigar-me a julgá-las diferentes. E, portanto, pelo facto de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, não noto que pertença necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência a não ser que sou uma coisa que pensa, concluo muito bem que a minha essência consiste apenas nisto: sou uma coisa que pensa, ou uma substância cuja essência ou natureza é somente pensar. E, embora talvez (ou melhor, certamente, como logo direi) eu tenha um corpo ao qual sou muito estritamente ligado, não obstante, porque de um lado tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa e não extensa, e que, do outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que ele é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que esse eu, ou seja, a minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo e pode ser ou existir sem ele.”

    Este argumento modal de Descartes pode ser formulado desta forma:

    1. Se concebo clara e distintamente X sem Y, então é possível que X exista sem Y.
    2. Se é possível que X exista sem Y, então X e Y são numericamente distintos.
    3. Eu concebo clara e distintamente a mente sem corpo.
    4. Logo, é possível que a mente exista sem corpo. [de 1 e 3]
    5. Logo, mente e corpo são numericamente distintos. [de 2 e 4]

    Será este um bom argumento? Como crítica pode-se sustentar que do facto de que se possa conceber clara e distintamente que uma coisa é diferente de outra, daí não se segue que tais coisas possam existir separadamente. Por exemplo, pode-se conceber clara e distintamente um triângulo retângulo sem conceber que o quadrado da hipotenusa seja igual à soma do quadrado dos catetos. Porém, daí não se segue que uma coisa possa existir sem a outra (dado o teorema de Pitágoras). Do mesmo modo, posso conceber clara e distintamente a Estrela da Manhã separada da Estrela da Tarde e vice-versa; mas daí não se segue que Estrela da Manhã e Estrela da Tardepodem existir separadamente (dado que se referem ao mesmo planeta Vénus). Além disso, dado que não temos conhecimento exaustivo da mente, pode suceder que o corpo é uma condição necessária para a mente sem que tenhamos conhecimento disso.

    Assim, contra a premissa 1 pode-se alegar que conceber uma coisa não implica que ela seja possível. Por exemplo, a conjetura de Goldbach (CG) afirma que: qualquer número par >2 é a soma de dois números primos. Se a CG for verdadeira, é impossível que seja falsa. Mas nós podemos conceber a sua falsidade. Se a CG for falsa, é impossível que seja verdadeira. Mas nós podemos conceber a sua verdade. Assim, pelo facto de algo ser concebível daí não se segue, sem mais, que seja possível. Estará então a argumentação de Descartes condenada ao fracasso? Pelo menos as intuições cartesianas têm motivado outros tipos de dualismos mais contemporâneos.

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    Paradoxo da Pedra

    O paradoxo da pedra constitui um dos desafios à omnipotência divina. Começa com uma questão: pode Deus criar uma pedra que ninguém consiga levantar? Qualquer que seja a resposta, a conclusão será que Deus não é omnipotente. De forma mais formal, pode ser apresentado desta forma:

    1. Ou Deus pode ou não pode criar uma pedra que ninguém consiga levantar.
    2. Se Deus pode criar uma pedra que ninguém consiga levantar, então ele não é omnipotente (uma vez que ele não pode levantar a pedra em questão).
    3. Se Deus não pode criar uma pedra que ninguém consiga levantar, então ele não é omnipotente (uma vez que não pode criar a pedra em questão).
    4. Logo, Deus não é omnipotente. [de 1-3]

    Este argumento anterior visa sobretudo refutar uma visão irrestrita de omnipotência. Sendo F uma predicado binário que representa a relação de x fazer/realizar/criar um evento y, pode-se formular desta forma a definição irrestrita de omnipotência (DIO):

    x é omnipotente ↔∀y◊Fxy

    Ou seja, um ser omnipotente x é tal que, para qualquer evento y, é possível para esse ser x fazer, realizar, criar o evento y. Por outras palavras, a omnipotência é ter a habilidade de fazer absolutamente qualquer coisa. Mas se (DIO) é a melhor definição de omnipotência, Deus não pode ser omnipotente e, por conseguinte, não há o Deus teísta. Como responder a este desafio?

    Este paradoxo da pedra é claramente válido (ver aqui), sendo p uma variável que representa o evento relevante de fabricação de uma pedra-não-levantável e d a variável que representa o Deus teísta, o argumento tem a seguinte estrutura lógica:

    1. Fdp∨¬Fdp
    2. Fdp→¬∀y◊Fdy
    3. ¬Fdp→¬∀y◊Fdy
    4. ∴¬∀y◊Fdy

    Que resposta dar a este argumento? A resposta tradicional de Tomás de Aquino (na Suma Teológica I, 25, a.3) é a seguinte:

    Todos confessam que Deus é omnipotente. Mas parece difícil explicar em que consiste precisamente a sua omnipotência. Pois pode haver uma dúvida sobre o conteúdo preciso da palavra “todo” quando dizemos que Deus pode fazer todas as coisas. Contudo, se consideramos bem, uma vez que o poder diz-se em referência a coisas possíveis, a frase Deus pode fazer todas as coisas é corretamente entendida como significando que Deus pode fazer todas as coisas que são possíveis; e por esta razão Deus diz-se omnipotente.

    Como se pode constatar, a resposta tradicional consiste em negar 3. Ou seja, não é exigido que Deus faça o que é logicamente impossível de forma a ser omnipotente. Ao negar-se 3 afirma-se que:

    ¬Fdp∧∀y◊Fdy

    Mas nesse caso é preciso redefinir omnipotência, apresentando uma definição restrita de omnipotência (DRO) nestes termos:

    x é omnipotente ↔(∀y◊∃zFzy→◊Fxy)

    Ou seja, um ser omnipotente é capaz de realizar qualquer evento que seja logicamente possível realizar. Mas será (DRO) plausível? Não haverá contraexemplos? Será que podemos encontrar um estado de coisas que seja logicamente possível mas que um ser omnipotente não o possa atualizar?

    Para enfrentar o paradoxo da pedra Descartes apresenta uma resposta completamente diferente. Na Carta a Mesland, datada 2 de maio de 1644, Descartes escreve o seguinte:

    Quanto à dificuldade de conceber como foi livre e indiferente para Deus fazer com que não fosse verdadeiro que os três ângulos de um triângulo fossem iguais a dois retos ou, em geral, que as contraditórias não possam ser conjuntamente, pode-se obter isso facilmente, considerando que o poder de Deus não pode ter nenhum limite; (…) Deus não pode ter sido determinado a fazer com que fosse verdadeiro que as contraditórias não possam ser conjuntamente e que, por conseguinte, ele podia fazer o contrário.

    Esta ideia também é defendida por Descartes na Carta a Arnauld escrita em 29 de julho de 1648:

    [O poder divino] envolve contradição no conceito, isto é, que não pode ser concebido por nós. A mim não parece, contudo, que de alguma coisa alguma vez se deva dizer que ela não possa ser feita por Deus; pois, já que toda razão do verdadeiro e do bom depende de sua omnipotência, nem mesmo ouso dizer que Deus não possa fazer com que o monte exista sem o vale ou que um e dois não sejam três; mas digo apenas que ele me atribuiu uma mente tal que não possa ser concebido por mim um monte sem vale ou uma soma de um e dois que não seja três etc, e que tais coisas implicam contradição no meu conceito.

    Nestas cartas Descartes parece aceitar que Deus tem prioridade ontológica sobre tudo o resto (inclusive sobre as leis da lógica e matemática que são estabelecidas por ele). Ora, se Deus tem prioridade em relação aos princípios lógicos e não “não pode ter sido determinado” a agir consistentemente pela lei da não-contradição, Deus é capaz de fazer estados de coisas inconsistentes. E se Deus pode fazer estados de coisas inconsistentes, por que não poderia Deus criar e levantar uma pedra que ninguém possa levantar? Assim, Descartes parece desenvolver uma solução paraconsistente e dialeteísta ao paradoxo da pedra, visando negar a premissa 2:

    Fdp∧∀y◊Fdy

    Mas será esta resposta plausível? Para mais informações sobre o paradoxo da pedra, clique aqui.

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    Paradoxo da Encarnação

    O cristianismo é a religião dos paradoxos. Veja-se a encarnação:

    1. Tudo o que é Deus é omnipotente.
    2. Nenhum humano é omnipotente.
    3. Jesus é Deus e humano.

    Em lógica de predicados:

    1. ∀x(Dx→Ox)
    2. ¬∃x(Hx∧Ox)
    3. (Dj∧Hj)

    E logicamente deriva-se facilmente uma contradição, tal como se pode constatar:

    1. Dj                                    [3,E∧]
    2. Hj                                    [3,E∧]
    3. (Dj→Oj)                    [1,E∀]
    4. Oj                                    [4,6,MP]
    5. ∀x¬(Hx∧Ox)                   [2,CQ]
    6. ¬(Hj∧Oj)                    [8,E∀]
    7. (¬Hj∨¬Oj)                    [9,DM]
    8. ¬Oj                                 [5,10,SD]
    9. (Oj∧¬Oj)                    [7,11,I∧]

    Dado que temos uma contradição em 12, será que isto significa que a doutrina da encarnação é falsa e, por conseguinte, o cristianismo não pode ser verdadeiro?

    O modelo composicional ou mereológico de Tomás de Aquino (que tem como defensores atuais Eleonore Stump e Brian Leftow) tem sido influente como resposta a este paradoxo da encarnação. Neste modelo defende-se que Jesus Cristo é uma entidade composta de propriedades divinas (possuídas pela parte divina) e propriedades humanas (possuídas pela parte humana). Ou seja, tal como não há contradição ao dizer-se p.e. que uma maça é vermelha enquanto casca e não é vermelha enquanto parte interior, também não há contradição ao dizer que enquanto natureza divina Jesus Cristo é omnipotente e enquanto natureza humana ele não é omnipotente.

    Contudo, este modelo do Tomás de Aquino é implausível por vários motivos. Em primeiro lugar, mesmo se concedermos que em Jesus Cristo a parte divina é omnipotente e a parte humana não é omnipotente, ainda surge a questão: mas afinal o sujeito de predicação, o Deus composicional encarnado, é ou não é omnipotente? E com isso o puzzle volta ao início. Em segundo lugar, de acordo com a ortodoxia, defende-se que a pessoa que é Filho de Deus é a mesma pessoa que é Filho da Virgem Maria. Mas, se seguirmos o modelo de Tomás de Aquino não se pode afirmar isso; pois, o Filho de Deus é, neste modelo composicional de Aquino, apenas uma parte do todo que é o Deus encarnado (e, dessa forma, parece facilmente cair em nestorianismo). Em suma, o modelo de Tomás de Aquino não consegue explicar que o Filho de Deus é a mesma pessoa que o Filho da Virgem Maria, mas não a mesma substância. Mas, consegue-se uma boa explicação disso, não com o modelo composicional de Aquino, mas sim com a lógica da identidade relativa de Peter Geach e de Peter van Inwagen. O problema nesse caso é que se fica sem a Lei de Leibniz. Nenhuma solução é isenta de custos.