Problema lógico da encarnação

No Natal celebra-se a encarnação. Mas será essa uma doutrina logicamente consistente? O problema lógico da encarnação surge da constatação de que o seguinte conjunto de proposições é inconsistente:

  1. Tudo o que é Deus é perfeito.
  2. Nenhum humano é perfeito.
  3. Cristo é Deus e humano.

Nesse conjunto, em vez do predicado “perfeito,” pode-se utilizar os predicados “impassível,” “imutável,” “imaterial,” “omnipotente,” “omnisciente,” etc. Podemos ver a inconsistência desse conjunto ao formalizarmos essas proposições na lógica de predicados de primeira ordem. Interpretando “Dx” como x é Deus, “Hx” como x é humano, e “c” como Cristo, temos a seguinte formalização:

  1. ∀x(Dx→Px)
  2. ¬∃x(Hx∧Px)
  3. (Dc∧Hc)

Este conjunto é inconsistente, dado que essas três proposições não podem ser simultaneamente verdadeiras. Pelo contrário, se aceitarmos duas delas como verdadeiras, a outra terá de ser falsa. Por exemplo, se aceitarmos as duas primeiras proposições, temos de negar a terceira de forma a termos um conjunto consistente. Aliás, se tivermos como premissas 4 e 5, podemos concluir validamente que não é verdade que Jesus Cristo é Deus e humano e, dessa forma, a doutrina da encarnação é falsa. Ou seja, é uma consequência lógica de 4 e 5 a falsidade da doutrina da encarnação: ¬(Dc∧Hc).

Como resolver este problema? Se não se quiser adotar uma lógica paraconsistente, uma solução possível é defender que a formalização correta de 3 não é 6. Aceitando-se a tese da identidade relativa, advogada pelo filósofo Peter Geach, pode-se sustentar que coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisa, mas distintas relativamente a outro tipo de coisa. Assim, pode-se alegar que Cristo é a mesma pessoa que o Cristo humano e o Cristo divino, mas estes não são seres idênticos. Ou seja, a encarnação apresenta-nos com um pluralidade de seres que são a mesma pessoa; nomeadamente há duas substâncias ou seres distintos: o totalmente divino Filho de Deus e o totalmente humano filho da Virgem Maria que são a mesma pessoa, Jesus Cristo. Por outras palavras, embora o Filho de Deus não seja da mesma substância que o filho da Virgem Maria (e, por isso, podem ter propriedades diferentes e contrárias), são ainda assim a mesma pessoa (o mesmo “eu” ou “tu” ou “ele”). Por isso, a proposição 3 deve ser lida como atribuindo uma propriedade à pessoa de Cristo que envolve atribuir essa propriedade a alguém que é pessoalmente idêntico (mas não substancialmente idêntico) com o Filho de Deus e também com o filho da Virgem Maria. Assim, sendo “Fx” a abreviatura para x é Filho de Deus, “Mx” a abreviatura para x é filho da Virgem Maria, e “Sxy” a abreviatura para x é a mesma pessoa que y, a proposição 3 (tal como proposto por Peter van Inwagen) é formalizada desta forma:

  1. ∃x[∃y(Fy∧Sxy)∧∃y(My∧Sxy)∧Hx]∧∃x[∃y(Fy∧Sxy)∧∃y(My∧Sxy)∧Dx]

Em 7 pretende-se captar a ideia de que o Filho de Deus é a mesma pessoa (ou seja, Jesus Cristo) que o Filho da Virgem Maria, embora não a mesma substância. Mais especificamente diz-se que é simultaneamente o caso que, alguma coisa x é tal que: alguma coisa que é Filho de Deus é a mesma pessoa que x, e alguma coisa que é Filho da Virgem Maria é a mesma pessoa que x, e x é humano; bem como alguma coisa x é tal que: alguma coisa que é Filho de Deus é a mesma pessoa que x, e alguma coisa que é Filho da Virgem Maria é a mesma pessoa que x, e x é Deus. Nesta leitura, se x é a mesma pessoa que y, e x tem a propriedade ϕ, não se segue que ytem ϕ. Por isso, pelo facto do Filho de Deus ter a propriedade da omnisciência ou da perfeição, daí não se segue que o Filho da Virgem Maria tenha tais propriedades (embora sejam a mesma pessoa). Ora, se juntarmos as proposições 4, 5, e 7 já não obtemos um conjunto inconsistente. No máximo o que podemos concluir é que Cristo é perfeito qua Deus e Cristo não é perfeito qua Humano. Por isso, pode-se pelo menos defender, do ponto de vista lógico, que a doutrina da encarnação é coerente. Mas esta solução tem os seus custos: em primeiro lugar envolve a rejeição da Lei de Leibniz de que se x=y, então para qualquer propriedade ϕ, x é ϕ se, e só se, y é ϕ. Em segundo lugar, parece ser difícil dar sentido metafísico para a ideia de que é possível x ser a mesma pessoa que y mas não a mesma substância. Feliz Natal!

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