2014.10.15 | Ética |

Um breve exame à ética sexual católica

Na ética sexual católica defende-se que tanto os atos homossexuais, como a masturbação, ou ainda a contraceção artificial, etc, não são atos moralmente apropriados. Mais concretamente defende-se que “os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados (…) não podem, em caso algum, ser aprovados” (Catecismo da Igreja Católica, 2357); além disso, advoga-se que “a masturbação é um ato intrínseca e gravemente desordenado” seja qual for o motivo (Catecismo da Igreja Católica, 2352); do mesmo modo, sustenta-se que a contraceção artificial (como preservativos ou a pílula) “é intrinsecamente má” (Catecismo da Igreja Católica, 2370). Mas qual é o argumento que se apresenta para se defender tais teses? Há várias linhas argumentativas, umas mais teológicas (como encíclicas como a Humanae Vitae) e outras mais filosóficas (como a argumentação apresentada pela filósofa Elizabeth Anscombe ou mais recentemente por Alexander Pruss). Mas no fundo penso que se podem resumir todas essas linhas argumentativas num único argumento que pode ser formulado do seguinte modo:

  1. Os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos são projetados pela evolução, ou por Deus, ou por ambos.
  2. Ora, um dos propósitos naturais ou biológicos dos órgãos sexuais é a abertura à reprodução.
  3. Um ato é moralmente apropriado só se tal ato realiza os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos.
  4. Portanto, um ato sexual é moralmente apropriado só se tal ato está aberto à reprodução. [De 1 a 3]
  5. Os atos sexuais X não estão abertos à reprodução.
  6. Logo, os atos sexuais X não são moralmente apropriados. [De 4 e 5]

Onde se lê “atos sexuais X”, pode-se substituir X por qualquer ato homossexual, ou ato de masturbação, ou ato que utilize métodos contracetivos, ou outras práticas sexuais (como sexo oral ou anal). Assim, mostra-se que tais atos não são moralmente apropriados. O argumento é válido, mas será sólido?

A fundamentação das duas primeiras premissas não parece muito problemática, pois o principal ponto dessas premissas consiste em reconhecer que os órgãos têm propósitos ou funções que são projetados pela evolução natural, ou talvez por Deus, (por exemplo, o propósito do coração é bombear o sangue, o propósito dos pulmões é oxigenar o sangue, etc) e que, além disso, um dos propósitos dos órgãos genitais ou sexuais é a reprodução.

E quanto à premissa 3? Essa é a premissa central do argumento e quem defende que é verdadeira está a pressupor que a teoria ética da «lei natural» é melhor do que as teorias éticas rivais (como é o caso da deontologia, do utilitarismo do atos, do consequencialismo das regras, ou da teoria das virtudes). A lei natural é uma teoria ética, fundada por Tomás de Aquino, que vê os princípios morais básicos como objetivos, baseados na natureza, em vez de basearem na convenção, e que são passíveis de serem conhecidos por todos através da razão natural humana. Tomás de Aquino procura argumentar que através do nosso intelecto nós podemos conhecer os princípios básicos do certo e errado que são fixos e imutáveis (não precisando de ser baseados numa revelação especial de Deus). Além disso, para Tomás de Aquino, os nossos deveres morais são baseados na nossa natureza como seres racionais e biológicos; deste modo, devemos buscar bens do corpo (como comida, sobrevivência e reprodução), bens da mente (como conhecimento) e bens sociais (como a cooperação). Portanto, a moralidade humana é o que é por causa da nossa natureza humana. Ora, se isto é verdadeiro, então parece que será errado agir de forma contrária à natureza humana e aos seus propósitos; uma vez que um dos propósitos da relação sexual é a reprodução, será errado qualquer outro uso da sexualidade que impeça esse propósito natural e biológico dos órgãos sexuais.

Será então esse argumento sólido? Penso que não; para sustentar isso apresento as seguintes razões: o primeiro problema no argumento da ética sexual católica é que não é nada claro que a teoria da lei natural (tal como defendida por Tomás de Aquino ou mais recentemente por John Finnis ou pela Igreja Católica) seja a teoria ética mais plausível quando comparada com as teorias éticas rivais. Uma das principais críticas que se pode apontar à teoria da lei natural é que parece confundir o “ser” com o “dever ser”; por exemplo, do facto do sexo produzir frequentemente bebés daí não se segue que o sexo deve ser praticado para esse propósito; pois, uma coisa são os factos e outra são os valores. Em segundo lugar, mesmo que se admita alguma plausibilidade a essa teoria, daí não se segue facilmente que a premissa 3 seja verdadeira. O próprio Tomás de Aquino admite que a aplicação da sua ética a situações específicas é frequentemente muito difícil (e vale a pena realçar que existem adeptos da lei natural que não aceitam a premissa 3 como verdadeira). Em terceiro lugar, existem muito contraexemplos para as premissas 3 e 4 que mostram que não há nada de moralmente errado em usar os órgãos para outra função que não são o seu propósito natural ou biológico. Por exemplo, mesmo que o propósito biológico dos pés seja para nos permitir caminhar, correr e saltar, não há nada de errado na ação de chutar uma bola ou em usar o pé para carregar no travão do carro. Além disso, mesmo que o propósito dos nossos olhos seja para ver, nada há de moralmente errado em usá-los para piscar um olho ou “fazer olhinhos” a uma rapariga. Ou mesmo que a finalidade natural dos nossos dedos seja para pegar em coisas, é absurdo alegar que seria imoral estalar os nossos dedos para fazer música. Também não há nada de errado em andar por aí a assobiar mesmo se esse não é o propósito natural e biológico dos lábios e da boca. Do mesmo modo, mesmo que o propósito biológico dos órgãos sexuais seja a reprodução, não há nada de moralmente errado ao usá-los para promover o prazer ou para fortalecer uma relação de amor. Assim, é falsa a ideia de que não podemos usar os nossos órgãos para outras finalidade ou propósitos que não são biológicas ou naturais. Portanto, toda a argumentação da ética sexual católica assenta em duas premissas falsas, nomeadamente a 3 e a 4. Ou seja, tal como tentei ilustrar, um ato pode ser moralmente apropriado e não realizar qualquer propósito biológico ou natural.

Outros problemas com o argumento em análise evidenciam-se com as suas consequências absurdas. Para isso suponha-se que o argumento é sólido. Ora, se esse argumento é sólido, não são apenas os atos sublinhados em cima que são imorais mas também aqueles atos sexuais permitidos pela ética sexual católica. Por exemplo, a ética sexual católica sustenta que não é imoral recorrer aos métodos contracetivos naturais (como o método Billings) em situações em que é pertinente por exemplo espaçar o nascimento dos filhos; mas ao utilizar-se esses métodos está a fugir-se ao períodos fecundos e, por isso, pessoas que se relacionam sexualmente ao utilizarem tais métodos estão a ter outro propósito que não é o reprodutivo. Assim, seria imoral recorrer aos métodos naturais. Mas, pela mesma linha de raciocínio, seria imoral um casal que é biologicamente infértil ter relações sexuais, pois tais atos sexuais não estão abertos à reprodução. O mesmo sucede com as mulheres que têm atos sexuais depois da menopausa ou até mesmo com casais que utilizam por exemplo a masturbação ou o sexo oral como foreplay (preliminares) ou como afterplay: em todos esses atos sexuais não há abertura à reprodução e, por isso, são imorais caso o argumento fosse sólido. Já agora talvez se possa alegar que os próprios padres e bispos estariam a ter atos imorais, pois têm ações de sexualidade (a castidade é uma forma de agir sexualmente) que não é aberta à reprodução nem realizam os propósitos naturais e biológicos dos seus órgãos sexuais. Mas, perante todas estas consequências absurdas o argumento da ética sexual católica não é sólido e parece claramente mau.

Uma nota final: a Igreja Católica continua a insistir neste tipo de ética sexual que parece ser cada vez mais irrelevante para uma percentagem significativa de católicos, para não falar da sociedade em geral (e já agora qual é a relação deste tipo de ética sexual com a ética geral proposta por Jesus por exemplo no Sermão da Montanha?!). E apesar de uma linguagem mais acolhedora do Papa Francisco, os problemas de fundo permanecem uma vez que continuam a basear-se numa ética normativa muito questionável (i.e. a teoria da lei natural) e a considerar que as premissas 3 e 4 são verdadeiras. Isto faz-me pensar que o sketch humorístico “Every sperm is sacred” (ver aqui) dos Monty Python ainda permanece bem atual.