Será que Deus poderia encarnar múltiplas vezes?
A ideia de uma divindade que encarna e se faz homem não é peculiar do Cristianismo. Na mitologia grega temos muitas instâncias de deuses que descem à terra com forma humana. De igual forma, alguns faraós do antigo Egipto por vezes diziam ser encarnações dos deuses Rá e Hórus. Nalgumas versões de Hinduísmo também se acredita que o deus Vishnu teve várias encarnações (mas não todas humanas). Então o que o Cristianismo tem de diferente? Uma das várias diferenças relevantes tem a ver com a singularidade da encarnação: o facto de que é suporto ter ocorrido só uma vez. É também essa singularidade que os cristãos celebram no Natal.
Todavia, esta singularidade na doutrina da encarnação Cristã pode originar a seguinte objecção de carácter moral: se o propósito da encarnação foi Deus salvar a humanidade ao entrar numa maior e mais próxima relação com a humanidade do que foi até aí possível, então, ao escolher encarnar apenas uma vez, Deus falharia ao entrar numa relação próxima com toda a raça humana e em diversos momentos históricos, fazendo-o apenas com um particular grupo histórico. Parece que essa salvação seria mais efectiva caso houvesse encarnações múltiplas para diferentes grupos históricos e tempos.
Por que resistir então à ideia de encarnações múltiplas? Haverá um bom argumento para se resistir a essa ideia? Um dos argumentos foi sugerido pelo filósofo Brian Hebblethwaite ao tentar mostrar que as encarnações múltiplas seriam lógica ou metafisicamente impossíveis. No seu livro The Incarnation: Collected Essays in Christology de 1987, Hebblethwaite argumenta que a encarnação de Deus requer identidade numérica entre Deus (mais precisamente, a segunda pessoa da Trindade) e o ser que é a encarnação de Deus na terra, e uma vez que tal identidade com Deus não pode ser multiplamente instanciada, segue-se que pode haver no máximo uma só encarnação. Seguindo Le Poidevin (2011), para se construir o argumento de forma mais rigorosa suponha-se, para a reductio, que Jesus e um outro humano, p.e. Josué, são ambos encarnações do Filho (i.e. da segunda pessoa da Trindade), com base nisso pode-se argumentar que:
- Se o Filho encarnou em x, então o Filho = x.
- A identidade é tanto simétrica como transitiva, assim ((x = y) & (x = z)) → (y = z).
- Se x e y são encarnações diferentes, então x ≠ y.
- ∴ Se o Filho encarnou tanto em Jesus como em Josué, então Jesus = Josué. [De 1 e 2]
- ∴ Mas como Jesus e Josué são encarnações diferentes, então Jesus ≠ Josué. [De 3]
- ∴ No máximo apenas um, Jesus ou Josué, é o Filho encarnado. [De 4 e 5]
Ao generalizar-se a conclusão (6) pode-se deduzir que pode haver no máximo uma encarnação e, dessa forma, Deus não poderá encarnar várias vezes. Ou seja, a múltipla encarnação é impossível. Mas será este argumento válido e sólido? Ou seja, será que a conclusão se segue das premissas e serão as suas premissas verdadeiras?
Começando pela validade, caso se invoque a noção de “identidade relativa” que é por vezes utilizada para resolver problemas sobre a trindade, então o argumento contra as encarnações múltiplas será inválido. A ideia principal desta noção de identidade relativa é que as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. De um modo mais formal, a identidade relativa sustenta que:
(IR) É possível que existam x, y, F, e G, tal que x é um F, y é um F, x é um G, y é um G, x é o mesmo F que y, mas x não é o mesmo G que y.
Este princípio IR tem várias aplicação em filosofia, como no seguinte caso: considere-se uma estátua de bronze, A, que é derretida e moldada numa diferente estátua, B. Então, A é o mesmo pedaço de bronze que B, mas não a mesma estátua que B. O filósofo Peter Geach utiliza IR para resolver o problema consistência lógica da trindade: o Filho é o mesmo Deus que o Pai, mas não a mesma pessoa. Todavia, ao aplicarmos IR ao argumento em consideração temos as seguintes premissas:
(1’) Se o Filho encarnou em x, então o Filho é a mesma pessoa que x.
(3’) Se x e y são encarnações (humanas) diferentes, então x não é o mesmo ser humano que y.
Mas, assim, com tais premissas a conclusão (6) já não se segue e, por isso, com a IR o argumento contra as múltiplas encarnações é inválido. Em vez de (6), o máximo que se pode concluir é que Jesus e Josué são a mesma pessoa, mas seres humanos diferentes. Para resistir a isto ter-se-ia que rejeitar IR; o problema é que com isso também se rejeita formas elegantes para se defender a consistência trindade.
Mas suponhamos que o argumento é válido. Serão as suas três premissas verdadeiras? Plausivelmente a premissa (2) não tem qualquer problema. Todavia, podem-se levantar algumas dúvidas com respeito às premissas (1) e (3). É verdade que a premissa (1) é implicada pela doutrina tradicional da encarnação em que tal é entendida em termos de identidade. Porém, essa premissa será falsa caso adoptemos um modelo composicional da encarnação que é bastante defendido actualmente, tal como o fazem Brian Leftow (2002) e Eleonore Stump (2002). Esse é um modelo da encarnação em que um único ser composto tem uma parte divina e uma parte humana. Isto permite resolver alguns paradoxos filosóficos sobre a natureza de Cristo uma vez que cada natureza residirá numa parte diferente de um todo composto, que em face disso não será mais contraditório do que uma maça que tem casca vermelha mas a sua parte interior branca. Contudo, dado este modelo, a premissa (1) é falsa, pois daí não se segue que o Filho é idêntico (no sentido de identidade numérica) com o que se torna encarnado. Para se resistir a isso terá de se negar esse modelo, mas tem um custo: também terá de se negar uma plausível resposta para alguns paradoxos sobre a consistência da encarnação.
Quanto à premissa (3): será que temos de aceitar que encarnações diferentes seriam indivíduos diferentes? Uma forma de resistir a essa premissa seria adoptar um critério neo-lockeano de continuidade psicológica para a identidade pessoal. Por exemplo, considere-se a possibilidade de encarnações sucessivas. Mesmo se x e y não são psicologicamente contínuos entre si, eles podem ser psicologicamente contínuos com Deus, o Filho, e isso seria suficiente, dadas as propriedades lógicas da identidade, para garantir a identidade de um com o outro. Com esta estratégia, as encarnações sucessivas seriam logicamente possíveis, mas não as encarnações simultâneas (uma vez que o critério neo-lockeano de continuidade psicológica exclui casos de ramificação - para ver esse pormenor clique aqui). Como objecção talvez se possa dizer que esta estratégia de resposta só funciona com o critério da continuidade psicológica, mas que há várias objecções para esse critério, tal como explora Jeff McMahan (2002). Pode-se igualmente defender outro critério para identidade pessoal, como o animalista ou da mente incorporada que não seja susceptível de montar uma estratégia para negar a premissa (3). Portanto, a plausibilidade ou não da premissa (3) parece depender de uma longa discussão sobre os vários critérios de identidade pessoal.
Tal como se pode constatar o Natal é fértil em problemas e puzzles filosóficos. Será que Deus poderia encarnar múltiplas vezes? Temos alguma boa razão para resistir à ideia de múltiplas encarnações de Deus? O problema continua em aberto. Feliz Natal :)