2020.12.23 | Lógica |

Problema lógico da encarnação

No Natal celebra-se a encarnação. Mas será essa uma doutrina logicamente consistente? O problema lógico da encarnação surge da constatação de que o seguinte conjunto de proposições é inconsistente:

  1. Tudo o que é Deus é perfeito.
  2. Nenhum humano é perfeito.
  3. Cristo é Deus e humano.

Nesse conjunto, em vez do predicado “perfeito,” pode-se utilizar os predicados “impassível,” “imutável,” “imaterial,” “omnipotente,” “omnisciente,” etc. Podemos ver a inconsistência desse conjunto ao formalizarmos essas proposições na lógica de predicados de primeira ordem. Interpretando “\(Dx\)” como \(x\) é Deus, “\(Hx\)” como \(x\) é humano, e “\(c\)” como Cristo, temos a seguinte formalização:

  1. \(\forall x (Dx \to Px)\)
  2. \(\neg \exists x (Hx \wedge Px)\)
  3. \((Dc \wedge Hc)\)

Este conjunto é inconsistente, dado que essas três proposições não podem ser simultaneamente verdadeiras. Pelo contrário, se aceitarmos duas delas como verdadeiras, a outra terá de ser falsa. Por exemplo, se aceitarmos as duas primeiras proposições, temos de negar a terceira de forma a termos um conjunto consistente. Aliás, se tivermos como premissas 4 e 5, podemos concluir validamente que não é verdade que Jesus Cristo é Deus e humano, tal como se pode ver aqui, e, dessa forma, a doutrina da encarnação é falsa. Ou seja, é uma consequência lógica de 4 e 5 a falsidade da doutrina da encarnação: \(\neg (Dc \wedge Hc)\).

Como resolver este problema? Se não se quiser adotar uma lógica paraconsistente, uma solução possível é defender que a formalização correta de 3 não é 6. Aceitando-se a tese da identidade relativa, advogada pelo filósofo Peter Geach, pode-se sustentar que coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisa, mas distintas relativamente a outro tipo de coisa. Assim, pode-se alegar que Cristo é a mesma pessoa que o Cristo humano e o Cristo divino, mas estes não são seres idênticos. Ou seja, a encarnação apresenta-nos com um pluralidade de seres que são a mesma pessoa; nomeadamente há duas substâncias ou seres distintos: o totalmente divino Filho de Deus e o totalmente humano filho da Virgem Maria que são a mesma pessoa, Jesus Cristo. Por outras palavras, embora o Filho de Deus não seja da mesma substância que o filho da Virgem Maria (e, por isso, podem ter propriedades diferentes e contrárias), são ainda assim a mesma pessoa (o mesmo “eu” ou “tu” ou “ele”). Por isso, a proposição 3 deve ser lida como atribuindo uma propriedade à pessoa de Cristo que envolve atribuir essa propriedade a alguém que é pessoalmente idêntico (mas não substancialmente idêntico) com o Filho de Deus e também com o filho da Virgem Maria. Assim, sendo “\(Fx\)” a abreviatura para \(x\) é Filho de Deus, “\(Mx\)” a abreviatura para \(x\) é filho da Virgem Maria, e “\(Sxy\)” a abreviatura para \(x\) é a mesma pessoa que \(y\), a proposição 3 (tal como proposto por Peter van Inwagen) é formalizada desta forma:

  1. \(\exists x[\exists y(Fy \wedge Sxy) \wedge \exists y(My \wedge Sxy) \wedge Hx] \wedge \exists x[\exists y(Fy \wedge Sxy) \wedge \exists y(My \wedge Sxy) \wedge Dx]\)

Em 7 pretende-se captar a ideia de que o Filho de Deus é a mesma pessoa (ou seja, Jesus Cristo) que o Filho da Virgem Maria, embora não a mesma substância. Mais especificamente diz-se que é simultaneamente o caso que, alguma coisa \(x\) é tal que: alguma coisa que é Filho de Deus é a mesma pessoa que \(x\), e alguma coisa que é Filho da Virgem Maria é a mesma pessoa que \(x\), e \(x\) é humano; bem como alguma coisa \(x\) é tal que: alguma coisa que é Filho de Deus é a mesma pessoa que \(x\), e alguma coisa que é Filho da Virgem Maria é a mesma pessoa que \(x\), e \(x\) é Deus. Nesta leitura, se \(x\) é a mesma pessoa que \(y\), e \(x\) tem a propriedade \(\phi\), não se segue que \(y\) tem \(\phi\). Por isso, pelo facto do Filho de Deus ter a propriedade da omnisciência ou da perfeição, daí não se segue que o Filho da Virgem Maria tenha tais propriedades (embora sejam a mesma pessoa). Ora, se juntarmos as proposições 4, 5, e 7 já não obtemos um conjunto inconsistente. No máximo o que podemos concluir é que Cristo é perfeito qua Deus e Cristo não é perfeito qua Humano. Por isso, pode-se pelo menos defender, do ponto de vista lógico, que a doutrina da encarnação é coerente. Mas esta solução tem os seus custos: em primeiro lugar envolve a rejeição da Lei de Leibniz de que se \(x=y\), então para qualquer propriedade \(\phi\), \(x\) é \(\phi\) se, e só se, \(y\) é \(\phi\). Em segundo lugar, parece ser difícil dar sentido metafísico para a ideia de que é possível \(x\) ser a mesma pessoa que \(y\) mas não a mesma substância. Feliz Natal!