2017.03.07 | Metafísica |

Um modelo da Eucaristia filosoficamente inteligível

Tipicamente no Cristianismo entende-se a Eucaristia como um processo pelo qual Cristo se torna realmente presente nas espécimes do pão e do vinho consagrados. Essa presença de Cristo não é entendida metaforicamente, mas sim como real e objectiva. Esta ideia deu origem a muitos puzzles filosóficos difíceis de resolver: como pode o corpo e sangue de Cristo estar simultaneamente presente em múltiplos e desconexos lugares? Como pode estar Cristo todo presente em cada um dos lugares em que se celebra a Eucaristia? Haverá um modelo filosoficamente consistente e plausível para a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia? Começarei por apresentar o modelo da transubstanciação, como milagre metafísico, e as suas dificuldades. Por fim argumentarei que há um modelo mais simples e inteligível da Eucaristia: o modelo do facto institucional (baseado na ontologia social do filósofo John Searle).

Começando pelo modelo de Tomás de Aquino, conhecido como modelo da transubstanciação, durante a consagração do pão e vinho ocorrem dois milagres para explicar como Cristo está realmente presente e como persistem as propriedades empíricas do pão e do vinho. O primeiro milagre consiste em substituir os elementos do pão e vinho por Corpo e Sangue de Cristo e o segundo consiste em manter todos os acidentes do pão e do vinho. Ou seja, no acto de consagração a substância muda, mas os acidentes permanecem. Designe-se a essa ocorrência por milagre metafísico, isto é, um evento que altera as características do mundo material sem fazer qualquer diferença empírica.

O filósofo Alexander Pruss, no artigo “The Eucharist: real presence and real absence” de 2009, concebeu duas formas logicamente possíveis no qual esse modelo da transubstanciação, com o milagre metafísico, pode acomodar a ideia de que Cristo está totalmente localizado em múltiplas regiões que não se cruzam. Uma solução seria Deus deformar o espaço de tal forma que todas as regiões que parecem estar ocupadas pelo pão e vinho consagrados são a mesma região. Neste caso Cristo não está multiplamente localizado uma vez que as regiões do pão e vinho consagrados são de facto uma só região. Alexander Pruss procura defender que é logicamente possível que o espaço esteja dessa forma estruturado por Deus. Mas será que no mundo actual poderia ocorrer isso sem se fazer qualquer mudança empírica à forma como as coisas são? Uma outra solução apresentada por Alexander Pruss é a sugestão mereológica em que se sustenta que é logicamente possível que os objectos ocupem o espaço de diferentes formas, ou melhor, é possível que os objectos estendam as regiões em que estão localizados (tal como os fractais). Ora, Cristo seria um objecto desse tipo, permitindo-se sustentar que Cristo está totalmente localizado em cada região que se está a celebrar a Eucaristia. Contudo, não parece nada intuitivo entender Cristo como um objecto estendido desse tipo.

Mas será a própria ideia de milagre metafísico possível? Ou seja, será a transubstanciação logicamente possível? Seguindo o filósofo católico Michael Dummett, no artigo “The intelligibility of eucharistic doctrine” publicado em 1987, o modelo da transubstanciação conduz a um dilema: Por um lado, suponha-se que é possível que Deus transforme um objecto de algum tipo F, num objecto de algum outro tipo, G, ao alterar a sua substância-F pela substância-G sem fazer qualquer outra alteração. Ora, nesse caso estamos a utilizar uma noção degenerada de substância que exclui qualquer critério para responder à pergunta “o que é isso?”. Além disso, não é nada claro que Deus possa transformar F em G ao substituir a sua substância-F pela substância-G mas sem haver qualquer mudança microfísica no objecto. Isto porque intuitivamente se uma coisa parece como café, sabe e cheira a café, e é uma réplica microfísica de um café, então estamos diante de um café. Contudo, pelo modelo de Aquino e Pruss é logicamente possível que não seja um café - o que parece muito controverso. Mas, por outro lado, suponha-se que não é possível que Deus transforme F em G ao substituir a substância-F pela substância-G; nesse caso a substância (se há uma tal coisa) não tem qualquer relevância para o problema filosófico em consideração. Por isso, de uma forma ou de outra, este modelo da transubstanciação enfrenta grandes dificuldades.

Haverá um outro modelo da presença real de Cristo na Eucaristia que seja mais plausível e que não enfrente tantas dificuldades? Com base na ontologia social do filósofo John Searle podemos conceber um modelo minimalista, sem as noções metafisicamente controversas do modelo anterior, e que consegue acomodar a presença real e objectiva de Cristo na Eucaristia. Para isso, pode-se começar por uma ideia muito simples: Quando vamos à nossa carteira buscar uma nota de 5€ temos apenas um pedaço de papel e nada mais? Podemos fazer uma análise química muito rigorosa e só encontramos papel. Mas o que faz com que esse pedaço de papel nos permita comprar um café? Uma resposta plausível será dizer que por causa de convenções institucionais esse pedaço de papel é realmente 5€. Também por causa de convenções similares há realmente coisas que são casamentos, fronteiras geográficas, obras de arte, governos, países, etc, e até (imagine-se!) pode haver uma convenção (instituída por Cristo na última ceia) em que num pedaço de pão está realmente presente Cristo na Eucaristia, tal como defendem os filósofos cristãos Michael Dummett e Harriet Baber, e que também me parece à primeira vista plausível.

De acordo com esse modelo, a acção de consagração na Eucaristia é uma acção convencionalmente gerada p.e. de forma análoga ao acto de passar um cheque. Esse passar um cheque ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita convencionalmente (2) por um agente legitimamente credenciado (3) com a intenção de escrever um cheque (4) usando materiais apropriados (5) tal como requerido por convenções institucionais em que um cheque que reúne essas condições torna-se dinheiro. Quando eu passo um cheque para comprar alguma coisa digo verdadeiramente: “Aqui estão os meus 200€!”. Todavia, à luz das melhores investigações em físico-química, um pedaço de papel com números e letras não vale literalmente nada mais do que um pedaço de papel. Ainda assim, dadas certas condições constituídas por particulares convenções sociais e institucionais, uma cheque que alguém passa por 200€ é realmente 200€ (desde que respeite as condições 1-5 e não seja um “cheque em branco”). Por outras palavras, em determinadas circunstâncias o significado de um objecto está para além da sua composição ontológica.

Quanto à Eucaristia podemos contar uma história muito similar. Ou seja, a Eucaristia e o momento da consagração ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita convencionalmente instituída por Cristo, (2) por um agente legitimamente credenciado pela Igreja, como um sacerdote, (3) com a intenção de fazer o que foi instituído na última ceia (4) usando materiais apropriados, como pão e vinho, especificados pela Igreja (5) tal como requerido por essa convenção instituída por Cristo na última ceia, na quinta-feira santa, em que pão e vinho que reúnem essas condições tornam-se na presença real de Cristo. Assim, na Eucaristia temos a presença do corpo de Cristo qua facto institucional que é similar a outras convenções sociais, tal como casamento, dinheiro, países, governos, etc. Até um ateu pode aceitar sem grandes problemas este modelo da Eucaristia.

É verdade que Jesus Cristo poderia ter escolhido outro tipo de matéria para constituir a presença real de Cristo na Eucaristia. Todavia, o pão e o vinho são os elementos da Eucaristia porque ele declarou que seriam esses elementos. Do mesmo modo, o governo de Portugal ou a Comissão Europeia poderiam ter declarado que as conchas e as penas de águia como veículo para as transacções financeiras. Mas não o fizeram. Pelo contrário as moedas e notas específicas contam como dinheiro porque um dado governo declarou-as como dinheiro. Algo similar pode ocorrer com a Eucaristia: Cristo declarou o pão e vinho em circunstâncias apropriadas como a sua presença real. Portanto, na Eucaristia o pão e vinho contam como presença real de Cristo em virtude da sua própria declaração na última ceia na quinta-feira santa. E essa ideia de que factos institucionais são criados por declarações está bem defendido p.e. pelo filósofo John Searle no livro Making the social world (de 2009).

Além disso, penso que um modelo de “convenção institucional” que estamos a expor capta bem a ideia das passagem bíblicas da última ceia, p.e. em Lucas (22, 19-20), sem recorrer a noções metafísicas mais sofisticadas e possivelmente mais controversas. Afinal por que razão o acto de consagração na Eucaristia não poderá ser uma acção convencionalmente gerada com raiz na última ceia e instituída por Cristo? Por que razão não pode a presença real do corpo de Cristo qua facto institucional ser similar a muitas outras convenções sociais? Por que razão não se pode conceber a consagração como uma acção convencionalmente gerada que induz uma mera mudança Cambridge nos elementos da Eucaristia? É verdade que, de acordo com o filósofo católico Peter Geach (1969, p. 71), uma mera mudança Cambridge não é real no sentido que não envolve qualquer mudança nas propriedades intrínsecas dos objectos em que elas ocorrem. Por exemplo, a Xantipa casada é microfisicamente igual à Xantipa viúva; do mesmo modo a hóstia não-consagrada é microfisicamente igual à hóstia consagrada na Eucaristia. Mas, ainda assim, há um sentido em que tais mudanças são reais na medida em que não são meramente subjectivas nem dependem de estados psicológicos. Então, por que razão não pode haver na Eucaristia uma mera mudança Cambridge nas propriedades do pão e do vinho? Isso é bem possível e plausível.

Pode suceder que um pessoa de uma tribo desconhecida venha ao mundo ocidental e não consiga identificar uma fronteira geográfica convencional, como um país ou uma cidade. Também posso deparar-me com duas pessoas e não saber se elas são casadas ou não. Para saber se elas são casadas precisava de saber se aquelas pessoas realizaram ou não um casamento válido. Por que razão o mesmo não se pode passar com a Eucaristia? Sim, se encontrarmos uma hóstia perdida, não conseguimos dizer se é hóstia-hóstia ou hóstia-presença-real-de-Cristo. Tudo bem! Mas quando me deparo com duas pessoas desconhecidas aos beijos também não sei se são casadas ou não. Não parece haver problema nisso. Como disse: tipicamente nos factos institucionais há uma mera mudança Cambridge (p.e. com respeito a uma pessoa casada ou viúva não iremos encontrar qualquer alteração nas propriedades intrínsecas, mas ainda assim são realidades diferentes). Por que razão não pode haver também uma mudança Cambridge no pão e vinho durante a consagração na Eucaristia?

É importante salientar que com este modelo filosófico da Eucaristia não estou a dizer que o corpo de Cristo, no seu sentido mais literal do termo, é uma convenção social. Aliás, dado o cristianismo, Jesus Cristo não passou a existir na medida em que um conjunto vasto de pessoas convergiram em estabelecer que ele tinha um corpo. Contudo, o que estou a tentar defender é uma tese diferente. O que estou a defender é o seguinte: a presença de Cristo na Eucaristia, nos elementos do pão e do vinho, é um facto institucional que se obtém em virtude da sua instituição na última ceia pela declaração (para usar o termo de Searle) do próprio Cristo. E isso é um evento novo que não ocorria antes dessa declaração. Ou seja, só passou a haver presença de Cristo na Eucaristia nos elementos do pão e do vinho depois dessa convenção institucional. Assim, tal como o dinheiro “não existia antes da tal convenção social”, também podemos afirmar que a presença de Cristo nos elementos do pão e do vinho não existia antes da tal convenção institucional da Eucaristia. Assim parece que a analogia corre sem problemas.

Com esta argumentação, se for plausível, temos um modelo filosoficamente inteligível da Eucaristia e evitamos compromissos com teorias metafísicas muito controversas. O objectivo é ter um modelo filosófica e religiosamente adequado, bem como ontologicamente minimalista. Mas será isto plausível?


Agradecimentos: estou grato ao António Rodrigues Gomes por me provocar a tratar filosoficamente deste problema da Eucaristia. Também estou muito grato ao Ludwig Krippahl e ao Aires Almeida por me apresentarem algumas objecções que me permitiram clarificar e refinar melhor o modelo da Eucaristia como facto institucional que aqui defendo. Para um “estado da arte” sobre as teorias e modelos mais contemporâneos da Eucaristia vale a pena ler o artigo “Recent Philosophical Work on the Doctrine of the Eucharist”, publicado em 2016 na revista Philosophy Compass, do filósofo James Arcadi.