2021.03.10 | Epistemologia |

Argumentos de Descartes a favor do dualismo de substâncias

Em relação ao problema mente-corpo, Descartes está comprometido com duas teses:

  1. Dualismo de substâncias: qualquer substância com propriedades mentais não tem propriedades físicas e qualquer substância com propriedades físicas não tem propriedades mentais.
  2. Distinção real entre mente e corpo: a mente e o corpo são substâncias numericamente distintas.

Para defender estas teses, Descartes apresenta vários argumentos:

Argumento da dúvida

O argumento da dúvida é apresentado por Descartes nas Meditações II e também na parte VI do Discurso do Método:

“(…) examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existia; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que se deixasse somente de pensar, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que eu existisse: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ele não deixaria de ser tudo que é.”

Neste argumento começa-se por sustentar que posso duvidar da existência do meu corpo. A este propósito Descartes afirma que pode imaginar não ter de todo corpo enquanto a sua vida mental persiste. Assim, ter uma mente deve ser distinto de ter um corpo porque podemos imaginar um sem a existência do outro. Contudo, não posso duvidar da existência dos meus pensamentos, ou seja, da minha mente. Isto porque enquanto posso duvidar que existe o mundo à minha volta, não posso duvidar da existência da minha mente, dado que a minha mente tem de existir para haver dúvida.

Mas para se alcançar a conclusão dualista falta ainda a premissa de que duas coisas são iguais (uma e a mesma coisa) se, só se, elas partilham as mesmas propriedades. Esta premissa é a conhecida “Lei de Leibniz” (também conhecido como “Princípio da Indiscernibilidade dos Idênticos”). Por exemplo, se duas bolas de snooker partilham as propriedades de serem vermelhas, terem o mesmo diâmetro e peso, mas se não partilham as mesmas propriedades no espaço, então são diferentes. Outro exemplo: se Eça de Queiroz e ‘o autor dos Maias’ partilham as mesmas propriedades, então eles são o mesmo. De forma análoga, se a mente e corpo são a mesma coisa, então partilham as mesmas propriedades. Contudo, mente e corpo não partilham as mesmas propriedades, porque (i) pode-se duvidar da existência do corpo mas (ii) não se pode duvidar da existência da mente. Assim, pode-se concluir com base na Lei de Leibniz que a minha mente é fundamentalmente diferente do meu corpo. Em suma, o argumento de Descartes pode ser formalizado desta forma:

  1. Posso duvidar da existência do meu corpo.
  2. Não posso duvidar da existência dos meus pensamentos, ou seja, da minha mente.
  3. Duas coisas são iguais (uma e a mesma coisa) se, só se, elas partilham as mesmas propriedades.
  4. Logo, a minha mente é fundamentalmente diferente do meu corpo.

Será este um bom argumento? Como crítica pode-se defender que o argumento de Descartes comete a falácia do homem mascarado. Para se perceber isso imagine-se que desconheço que o Clark Kent é o Super Homem. Nesse caso, posso imaginar um cenário em que o Super Homem salva o jornalista Clark Kent de um terrível vilão. Mas imaginar isso não me informa que é de facto possível terem propriedades diferentes. Em vez disso releva limitações do meu conhecimento (de que não estou ciente), dado que na realidade são a mesma pessoa. Ou seja, quando utilizamos verbos psicológicos como acreditar, saber, duvidar, pensar, etc, a Lei de Leibniz pode-nos enganar (dadas as nossas limitações cognitivas). Assim, ainda que possa duvidar que tenho corpo e não possa duvidar que tenho mente, isso não é suficiente para mostrar que são coisas distintas. Em suma, não se pode aplicar a Lei de Leibniz nos contextos intencionais (ou seja, quando se está a usar verbos psicológicos).

Argumento da indivisibilidade

Nas Meditações, VI, Descartes apresenta um argumento com a mesma estrutura, mas que não parece cometer a falácia anterior:

“Há uma grande diferença entre a mente e o corpo, pelo facto do corpo, pela sua natureza, ser sempre divisível e a mente ser inteiramente indivisível. Pois, quando considero a minha mente, ou seja, eu mesmo na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, nele não posso distinguir nenhuma parte, mas concebo-me como uma coisa única e inteira. E, embora todo a mente pareça estar unida a todo o corpo, quando um pé, um braço, ou qualquer outra parte é cortada, estou consciente que nada foi foi tirado da minha mente.”

Aqui o argumento de Descartes é o seguinte:

  1. O corpo é sempre divisível.
  2. A mente é indivisível.
  3. Duas coisas são iguais (uma e a mesma coisa) se, só se, elas partilham as mesmas propriedades.
  4. Logo, a mente é diferente do corpo.

Será este um bom argumento? Apesar de não cometer a falácia do homem mascarado, esta versão tem problemas com a premissa 2. Nomeadamente pode-se colocar as seguintes questões: será que a mente não se poderá dividir? A mente não poderá ser dividida em faculdade como a memória, imaginação, cálculo, emoção, vontade, e em distintos pensamentos? O que dizer de pessoas com o problema das múltiplas personalidades? Nesse caso a mente não está dividida? Outros problemas foram apontados pela princesa Elisabeth: como é que duas coisas tão diferentes como a mente e o corpo podem interagir?

Argumento modal

Descartes nas Meditações VI apresenta um argumento adicional a favor do dualismo de substâncias, conhecido como argumento modal:

“(…) porque sei que todas as coisas que concebo clara e distintamente podem ser produzidas por Deus tais como as concebo, basta que eu possa conceber clara e distintamente uma coisa sem uma outra para estar certo de que uma é distinta ou diferente da outra, porque podem ser postas separadamente, pelo menos pela omnipotência de Deus; e não importa por qual poder se faça essa separação para obrigar-me a julgá-las diferentes. E, portanto, pelo facto de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, não noto que pertença necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência a não ser que sou uma coisa que pensa, concluo muito bem que a minha essência consiste apenas nisto: sou uma coisa que pensa, ou uma substância cuja essência ou natureza é somente pensar. E, embora talvez (ou melhor, certamente, como logo direi) eu tenha um corpo ao qual sou muito estritamente ligado, não obstante, porque de um lado tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa e não extensa, e que, do outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que ele é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que esse eu, ou seja, a minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo e pode ser ou existir sem ele.”

Este argumento modal de Descartes pode ser formulado desta forma:

  1. Se concebo clara e distintamente \(X\) sem \(Y\), então é possível que \(X\) exista sem \(Y\).
  2. Se é possível que \(X\) exista sem \(Y\), então \(X\) e \(Y\) são numericamente distintos.
  3. Eu concebo clara e distintamente a mente sem corpo.
  4. Logo, é possível que a mente exista sem corpo. [de 1 e 3]
  5. Logo, mente e corpo são numericamente distintos. [de 2 e 4]

Será este um bom argumento? Como crítica pode-se sustentar que do facto de que se possa conceber clara e distintamente que uma coisa é diferente de outra, daí não se segue que tais coisas possam existir separadamente. Por exemplo, pode-se conceber clara e distintamente um triângulo retângulo sem conceber que o quadrado da hipotenusa seja igual à soma do quadrado dos catetos. Porém, daí não se segue que uma coisa possa existir sem a outra (dado o teorema de Pitágoras). Do mesmo modo, posso conceber clara e distintamente a Estrela da Manhã separada da Estrela da Tarde e vice-versa; mas daí não se segue que Estrela da Manhã e Estrela da Tarde podem existir separadamente (dado que se referem ao mesmo planeta Vénus). Além disso, dado que não temos conhecimento exaustivo da mente, pode suceder que o corpo é uma condição necessária para a mente sem que tenhamos conhecimento disso.

Assim, contra a premissa 1 pode-se alegar que conceber uma coisa não implica que ela seja possível. Por exemplo, a conjetura de Goldbach (CG) afirma que: qualquer número par \(> 2\) é a soma de dois números primos. Se a CG for verdadeira, é impossível que seja falsa. Mas nós podemos conceber a sua falsidade. Se a CG for falsa, é impossível que seja verdadeira. Mas nós podemos conceber a sua verdade. Assim, pelo facto de algo ser concebível daí não se segue, sem mais, que seja possível. Estará então a argumentação de Descartes condenada ao fracasso? Pelo menos as intuições cartesianas têm motivado outros tipos de dualismos mais contemporâneos, veja-se aqui e aqui.