2020.05.09 | Metafísica |

Argumento ontológico modal de Leibniz

Leibniz desenvolveu uma versão diferente e mais interessante do argumento ontológico que permite ultrapassar algumas dificuldades do argumento ontológico de Descartes, nomeadamente a crítica de Kant. No livro Monadologia, § 45, apresenta o seu argumento tal como se segue:

só Deus (ou o Ser Necessário) tem o privilégio de que, se ele é possível, tem de existir. E como nada pode impedir a possibilidade daquilo que não encerra quaisquer limites, nenhuma negação e, por conseguinte, nenhuma contradição, só isso basta para conhecer a existência de Deus a priori.

A estrutura central deste argumento é a seguinte:

  1. Se Deus é possível, então Deus existe.
  2. Deus é possível.
  3. Logo, Deus existe.

Ou em termos lógicos:

  1. \(\Diamond \exists x Dx \to \exists x D x\)
  2. \(\Diamond \exists x Dx\)
  3. \(\therefore \exists x D x\)

Esse argumento é válido (ver aqui), mas será sólido? Leibniz tentou suportar a premissa 1 sem referência à existência como perfeição (evitando dessa forma a crítica de Kant). Pelo contrário, para Leibniz, a essência de Deus envolve existência necessária. Isso significa que Deus, por definição, não é um ser contingente. Por isso, ou existe em todos os mundos possíveis ou não existe em qualquer mundo possível. Ou, por outras palavras, necessariamente, se Deus existe, então é necessário que Deus exista. Isso é o conhecido Princípio de Anselmo. Com base nesse Princípio, pode-se concluir que se Deus é possível, então Deus existe. Pois, se Deus é possível, então há algum mundo possível em que a sua existência é instanciada. Mas, dado o princípio de Anselmo, se a existência de Deus é instanciada em algum mundo, então tem de ser instanciada em todos os outros (dado que não é um ser contingente, mas sim necessário). Ora, aceitando uma relação simétrica de acessibilidade entre mundos, se a existência de Deus é instanciada em todos os mundos acessíveis a partir do atual, isso significa que também é instanciada no mundo atual. Por isso, se há um mundo possível em que a existência de Deus é instanciada, então a existência de Deus também é instanciada no mundo atual. Em termos mais formais a justificação da premissa 1 é a seguinte:

  1. \(\Box ( \exists x D x \to \Box \exists x D x)\) [Princípio de Anselmo]
  2. \(\therefore \Diamond \exists x Dx \to \exists x D x\) [Premissa 1]

A premissa 1 segue-se validamente do Princípio de Anselmo no sistema B de Lógica Modal com a relação de acessibilidade simétrica (ver aqui). Quanto à premissa 2, a estratégia de Leibniz para mostrar que Deus é possível consiste em argumentar que o conceito de Deus é consistente. Isto é \(\exists x D x\) não implica contradição. E não há contradição porque as propriedades de Deus são simples e positivas, sendo que uma propriedade simples não é analisável em termos de outras e uma propriedades positiva não é a negação de outra. Ora, segundo Leibniz, o que é puramente positivo não pode conter qualquer contradição formal. Mas, então, se não envolve contradição, isso significa que é possível. Assim, Leibniz justifica a premissa 2 desta forma:

  1. Se o conceito de Deus (de um ser sumamente perfeito) é inconsistente, então pelo menos duas das suas perfeições \(F\) e \(G\) são incompatíveis.
  2. Mas, dado que \(F\) e \(G\) são simples, positivas e absolutas, tais perfeições não são incompatíveis.
  3. Logo, o conceito de Deus é consistente.
  4. Se o conceito de Deus é consistente, então \(\Diamond \exists x Dx\).
  5. Logo, \(\Diamond \exists x Dx\).

Uma vez justificadas as premissas 1 e 2 pode-se concluir que Deus existe. Mas será essa fundamentação de Leibniz plausível?

A premissa mais difícil de justificar é a premissa 2. Na fundamentação dessa premissa aceita-se que “iv. Se o conceito de Deus é consistente, então \(\Diamond \exists x Dx\)”. Contudo, pode-se defender que algo é consistente e ainda assim não é metafisicamente possível. Por exemplo, é consistente pensar que a água não é H2O, mas isso não é realmente possível. Algo ser consistente, não-contraditório, concebível, não implica imediatamente possibilidade. Além disso, Leibniz aceita que “ii. dado que as perfeições \(F\) e \(G\) são simples, positivas e absolutas, tais perfeições não são incompatíveis”. Mas pode-se colocar isso em causa, pois ainda que cada propriedade seja em si mesma consistente, daí não se segue que sejam compatíveis entre si. Um argumento para colocar pressão sobre isso apela à incapacidade de Deus para pecar; pois, se Deus é omnipotente, então pode fazer tudo o que é logicamente possível; mas se é sumamente bom, então Deus não pode fazer tudo o que é logicamente possível (por exemplo, não pode pecar). Nesse raciocínio parece haver uma inconsistência entre omnipotência e suma bondade, colocando em causa a fundamentação de Leibniz. Para ver outras formas de fundamentar a premissa 2 consulte o meu artigo sobre o argumento ontológico modal (ver aqui).