2014.09.26 | Metafísica |

Argumento da ocultação divina e as principais objeções

Há quem procure argumentar que a escassez de evidência para o teísmo constitui evidência a favor do ateísmo. Um dos argumentos que visa esse objetivo é o argumento da ocultação divina. Uma versão desse argumento, apresentado por Schellenberg (1993), pode ser formulada do seguinte modo:

  1. Se Deus existe, então um Deus perfeito em amor existe.
  2. Se um Deus perfeito em amor existe, então não ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus.
  3. Mas ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus.
  4. Portanto, um Deus perfeito em amor não existe. [Por modus tollens, de 2 e 3]
  5. Logo, Deus não existe. [Por modus tollens, de 1 e 4]

A ideia principal do argumento é a seguinte: de acordo com o teísmo a realização última dos seres humanos consiste em entrar numa relação pessoal com Deus. Assim, se Deus é amor, então é razoável pensar que ele procurará fazer o que for necessário para que as suas criaturas entrem numa tal relação pessoal com ele. Ora, para Deus tornar isso possível, Deus terá de fazer que a sua existência seja conhecida pelas suas criaturas de tal forma que elas não poderiam razoavelmente não saber disso. Isto porque parece óbvio que uma pessoa P1 não pode entrar numa relação pessoal de amor com uma pessoa P2 a não ser que P1 conheça que P2 existe. Daqui se segue que uma condição necessária para haver relação pessoal de amor entre Deus e as suas criaturas consiste em Deus dar a conhecer a sua existência de um modo claro a todas as suas criaturas, de modo que não ocorra uma razoável não-crença na sua existência. No entanto, para muitas pessoas a existência de Deus não é minimamente clara e óbvia, não estando para além da dúvida razoável. E isso não ocorre não só com agnósticos e ateus, mas também com os teístas que relatam períodos dolorosos de “noite escura da alma” em que se sentem completamente abandonados e inseguros sobre a existência de Deus (por exemplo, no livro dos salmos 22, 1-2, pode-se ler o seguinte: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste, rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro? Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes”). Mas perante tal manifesta ocultação divina, é razoável uma não-crença na existência de Deus. Todavia, se tal sucede, então parece que não há um Deus perfeito em amor que pretende uma relação pessoal com todas as suas criaturas, o que permite concluir que Deus não existe.

O que dizer deste argumento? O argumento é claramente válido, mas será sólido? Para os teístas, a premissa (1) parece verdadeira por definição, pois se Deus é um ser perfeito, então será igualmente perfeito em amor. Como os passos (4) e (5) do argumento são uma consequência lógica das premissas anteriores, sobram as premissas (2) e (3) para exame. E são precisamente essas duas premissas que costumam ser criticadas pelos teístas. Por um lado, Michael Murray (2002), Swinburne (2004) e Peter Van Inwagen (2006), entre outros, têm criticado a premissa (2) ao apresentarem uma defesa em que Deus tem razões para a sua ocultação. A ideia geral é que se Deus se manifestasse de forma indubitável, então a crença em Deus poderia tornar-se coerciva para os seres humanos e não um ato de liberdade. Nesta estratégia argumentativa reconhece-se que Deus pretende que todas as pessoas estejam numa certa relação com ele e, assim, acreditar em Deus é uma condição necessária para estar nessa relação; todavia, acreditar em Deus não é uma condição suficiente para se estar nesse tipo de relação, pois pelo menos é igualmente necessário que se escolha livremente entrar nessa relação. Por outro lado, pode-se aceitar a premissa (2) e alegar que Deus quer que todos os seres humanos conheçam de facto a sua existência, mas negar-se a premissa (3) ao defender-se que a não-crença em Deus deve-se ao efeitos noéticos do pecado (não de pessoas concretas mas da humanidade como um todo) e tais efeitos podem comprometer a função apropriada do ‘sensus divinitatis’, como procura argumentar Plantinga (2000). Outra forma, talvez mais radical, para se criticar essa premissa (3) pode ser recorrer a um desvio mooreano. Por exemplo, um teísta pode aceitar a premissa (2); além disso, pode também estar justificado a aceitar que existe um Deus perfeito em amor; i.e., a negação do passo (4). Mas ao aceitar (2) conjuntamente com a negação de (4) implica a falsidade da premissa (3).

Ainda existe uma possibilidade bastante diferente e prometedora para se criticar o argumento da ocultação divina e que parece estar atualmente bastante em moda entre vários filósofos: recorrer ao “teísmo cético” defendido, entre outros, por Bergmann (2012) ou por Wykstra (2012). Com o teísmo cético tenta-se desenvolver razões para suspender a crença sobre se Deus criaria ou não um mundo em que ocorre uma razoável não-crença na existência de Deus; assim, mostrar-se-ia que não estamos justificados para acreditar na premissa (2). A ideia geral do teísmo cético é a de que, dada a nossa situação epistémica limitada e o hiato cognitivo entre o nosso ponto de vista e o ponto de vista de Deus, não há razão para acreditar que estamos na posição de saber que razão Deus poderia ter ou não para realizar uma determinada ação particular; i.e. Deus tem razões para agir em qualquer caso particular que estão para além do nosso alcance. Assim, se refletirmos cuidadosamente sobre as diferenças cognitivas entre Deus e nós próprios, adquirimos um anulador para as crenças que podemos ter sobre as razões para Deus agir e, dessa forma, devemos estar comprometidos com um ceticismo acerca dos nossos julgamentos sobre o que Deus faria numa situação particular. Ou seja, não podemos dizer com qualquer grau sério de confiança por que razão Deus faz o que faz ou por que ele faria ou não faria uma certa coisa em qualquer caso particular. Esta estratégia argumentativa parece não só conseguir bloquear com alguma plausibilidade o argumento da ocultação divina como também o argumento indiciário do mal. Mas talvez o preço a pagar pelo teísmo cético seja demasiado alto: por exemplo, se o teísmo cético bloqueia argumentos contra a existência de Deus ao destacar o facto de que sabemos muito pouco acerca de como Deus agiria, então será que também não se poderia argumentar, com um raciocínio similar, que o teísmo cético bloqueia os argumentos a favor da existência de Deus?